“Carlão dos Direitos Humanos” transita entre periferia, criminosos e estruturas do Estado com a mesma desenvoltura e o mesmo objetivo: garantir o direito à vida com dignidade para todos

Cecília França
Lume Rede de Jornalistas

Carlos Enrique Santana tem opiniões e posicionamentos bem firmados. Para alguns, pode soar verborrágico, mas o fato é que sua atuação de mais de 20 anos em direitos humanos o credencia a tratar de temas delicados, como falta de moradia e segurança pública, com propriedade. E não se trata de uma atuação indireta ou burocrática, o “Carlão dos Direitos Humanos”, como é conhecido, já passou horas negociando com detentos e policiais em rebeliões em presídios; articula com Ministério Público, Defensoria, e qualquer outra estrutura de Estado com a mesma desenvoltura; mora na periferia de Londrina e vê de perto as carências dos sistemas públicos de saúde e educação.

Conversamos com o servidor municipal de carreira em um dia de semana, durante as férias dele, por mais de uma hora. Carlão tem uma visão bastante simples do que são os direitos humanos: a Constituição Federal de 1988. “Ela foi baseada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e dá algumas diretrizes de como o Estado constituído deve agir em relação ao cidadão comum”, explica. Para ele, “todo filho do ventre de uma mulher é um ser humano” e tem direito à vida. “Como você garante isso se um pai de família não tem emprego, não tem moradia, procura o Estado na saúde pública e não tem aporte nenhum; ele procura os direitos de Justiça e não tem”, questiona.

Carlão já atuou no Conselho Permanente de Direitos Humanos do Estado do Paraná (CODEP) e no Conselho Municipal. Agora está retomando as atividades como representante do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH) no Paraná, com o objetivo de rearticular o movimento no Estado. “No Paraná, os direitos humanos estão à deriva”, diz. Sua visão não é mais animadora quanto à conjuntura nacional: “Eu acho que os direitos humanos estão morrendo no Brasil”. Para ele, isto só mudará quando nós, cidadãos, recuperarmos o respeito uns pelos outros.

Democracia

Carlão questiona a vigência da democracia no Brasil. “Nós vivemos numa democracia? Acredito que não, porque quando você perde o poder num processo eleitoral você passa a ser um violado; quem está no poder tem o direito de escamotear os seus requerimentos, os seus pedidos”, explica. Para ele, o atual governo “vai acabar caindo porque é incompetente”. Ele direciona suas críticas também ao ministro da Justiça, Sérgio Moro.

“Acho ele um incompetente para atuar, principalmente, na área da segurança pública, que é muito grave no País”, diz. Para Carlão, o problema nesta área crucial começa quando um juiz determina uma sentença de privação de liberdade em um sistema que não tem condição de recuperar ninguém. “Ele determina uma pena, mas nunca foi numa cadeia do Brasil. Então quando você vê aquelas rebeliões, aquela situação de penúria – a gente já ficou 16 horas com preso rebelado aqui na Casa de Custódia, negociando – a gente já sabe disso”.

Carlão no dia da entrevista. Foto: Cecília França

De cara com os bandidos

Carlão acredita em uma atuação ativa na área de direitos humanos. Para ele, a burocracia só atrapalha neste campo porque “a questão da violação não é burocrática, é negocial”. “Eu sento na frente de bandido, marginal perigosíssimo, e converso. Eu já fui sequestrado. Esses dias os caras chegaram com fuzil e falaram ‘Vem com a gente’. Eles queriam que eu negociasse com juiz porque presos do PCC (Primeiro Comando da Capital) estariam sendo maltratados na penitenciária. Fiquei 2 horas conversando com eles e disse: Não negocio. Mas eles estão muito aparelhados. A polícia não consegue parar essa gente mais”, alerta.

Execuções

Graduado em História, Carlão esteve no Rio de Janeiro há alguns anos e conheceu de perto Marcelo Freixo (hoje deputado federal pelo PSOL) e Marielle Franco, assassinada quando era vereadora pela sigla. Para ele, a morte da vereadora não foi algo distante, mas ataques semelhantes acontecem “todo mês no Rio de Janeiro” – e, segundo ele, começaram a acontecer em Londrina também.

“Quer ver? Vou fazer uma lista de pessoas assassinadas nos últimos dois anos, que o Estado matou: aquele Guarda Municipal que matou a mulher, o neto e o avô; nem dois meses depois mataram o Matheus (Evangelista); mataram um rapaz dentro da UPA; logo em seguida, a polícia matou aqueles quatro rapazes na Jorge Casoni… – este caso o Gaeco está investigando porque os ‘bobos’ dos direitos humanos levaram. A família disse que eles não estavam armados, como que houve confronto?”, questiona.

Confira outros trechos da entrevista.

Lume: Você acha que a Justiça no Brasil é elitista?

Carlos Enrique Santana: Demais. Eu vi aquela entrevista do Lula para o Kennedy Alencar (exibida pela BBC Brasil) e comecei a pensar que o problema do Brasil não é o brasileiro, é a perspectiva que o brasileiro tem de ascender ao poder e massacrar os seus iguais. Por isso eu acho que os direitos humanos estão morrendo no Brasil, porque você vê que as pessoas hoje não estão tendo tempo para fazer uma conversa como esta (sobre o assunto).

L: Então você acha que os direitos humanos já viveram momentos melhores no Brasil?

CES: Não, nunca teve. Nem na época do governo do Lula os direitos humanos tiveram um grande desenvolvimento. Por que o que é direitos humanos? É estar aqui. Agora eu não sei se daqui a pouco os caras não assaltam um banco, ‘sai’ trocando tiros com a polícia e nós dois morremos. O que nós tínhamos com isso? Roubou, roubou. Não deu para pegar, deixa fugir. Não vai dar dez tiros no outro porque se sentiu enganado. Eu acho que essa visão que se tem de dono da vida do outro é um grande erro.

Nós estamos aqui no Paraná à deriva. Eu era conselheiro na última gestão (do Conselho Permanente dos Direitos Humanos do Paraná – COPED). O conselho se reunia, aprovava uma ação e poucas avançavam, porque o secretário achava que era o dono do Conselho. Para o próximo mandato eu vou ficar com o movimento nacional, porque aqui você fica refém do Estado.

Composição do COPED

50% dos membros são escolhidos entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, incluindo a OAB/PR, Ministério Público e um representante da Associação dos Municípios do Paraná;

outros 50% dos membros são escolhidos entre as ONGs – Organizações não Governamentais – ligadas a defesa dos Direitos Humanos.

O COPED é presidido pelo Secretário da Justiça, Cidadania e dos Direitos Humanos, tendo como Secretário Executivo o Responsável pela Coordenadoria dos Direitos da Cidadania.

L: Como você têm acesso às informações sobre gastos com saúde, educação?

CES: Através do Ministério Público. Muitas vezes a gente oficia a estrutura de Estado, como Secretaria de Saúde, damos um mês para as respostas virem, se elas não vêm a gente oficia o MP, que é o protetor dos direitos humanos, e este oficia também, dá mais um mês para a resposta. Caso não venha, eles reiteram e a gente faz a mesma coisa. Demora de 3 a 4 meses para a gente obter uma resposta.

L: Sempre é um processo moroso?

CES: É um processo moroso, mas é isso que os caras querem. Quando eu falo do Estado, eu não falo da Prefeitura, eu falo do estado político, o governo que ganhou o último processo eleitoral e está gestando. Muitas vezes, ao invés dele seguir a lei ele faz o que quer.

O direito à moradia, por exemplo, é um direito fundamental. Mas hoje em Londrina não se tem moradia para famílias de baixa renda. Tem para quem tiver 140 mil reais para fazer um lastro e pagar as prestações de um apartamento. Se você quiser conhecer Londrina vai da Saul Elkind para baixo, ali você vai ver se Londrina é de fato o que a gente vê na Gleba Palhano. Aqui você vê a cidade rica, lá você vê a pobreza, a periferia escancarada. Ou então você vai pra Região Sul, para o lado do União da Vitória, é onde você vê a pobreza nata. São os lugares onde estão as áreas ocupadas, onde as pessoas morrem de medo da polícia – quando não devia. Os pobres são muito atacados pelo Estado.

L: E a questão do Flores do Campo?

CES: No Flores do Campo, mantivemos lá as 150 famílias*. A Polícia Federal quis me prender lá dentro porque eu estava acompanhando a líder dos moradores. Eu fui procurado seis meses depois da ocupação, mas eu já tinha oficiado a Cohab e a Caixa Econômica pra me informar quando seria terminada aquela obra. A Cohab respondeu que a obra é da Caixa. E daí, para minha surpresa, eu recebo algumas fotos do dia que o prefeito ganhou a eleição e ele estava discursando no Flores do Campo. Eu entendi que ele era um incentivador da ocupação. Aí no dia que eu fui na PF para ser ouvido eu falei que eles eram incentivadores.

* A ocupação começou no dia 01 de outubro de 2016, quando as famílias ocuparam as obras do conjunto habitacional Flores do Campo, que estava parada há aproximadamente dois anos. As eleições para a prefeitura se deram no mesmo mês daquele ano.

Um dia antes da reintegração conseguimos adiar. Já tinha caminhão para tirar as famílias, mil homens da Polícia Militar do Paraná inteiro, gastaram uma fortuna. Se fossem tirar aquele povo ia dar transtorno, ia dar morte. Sentamos com o prefeito e falamos que a gente queria criar um Grupo de Trabalho (GT). E aí, mês passado a gente recebe um documento da Caixa Econômica dizendo que ia dar mais 120 dias.

L: E a Cohab já sinaliza com alguma área?

CES: Sim, já temos em vista. Essas famílias vão ter pequenas casas para ficarem dois anos, temporariamente, até terminar a obra do Flores do Campo. Então, existe solução para a questão da moradia em Londrina, mas não temos um movimento lutando.

L: Você está mostrando várias vertentes de atuação dos direitos humanos. Por que você acha que os ativistas ficaram marcados como “defensores de bandidos”?

CES: Quem são os mais violados? Os bandidos. Porque ninguém fica 24 horas com um bandido, nem eu. Bandido a gente quer longe, por causa da violência. E como eles chegaram nesta violência? Por que a pessoa é violenta? É isso que eu questiono. Agora, eu não defendo uma pessoa, não sou advogado. No Brasil nós estamos perdendo a humanidade e o respeito pelo outro. Enquanto isto não se recuperar as violações continuarão.

Esses dias falaram para mim “Nossa, o Brasil é um País que joga muita comida fora”. Eu respondi, “Sim, e isto é uma violação de direitos humanos, porque se você joga a sua comida fora está deixando de alimentar outras famílias, outros seres humanos”. Então, tem uma série de questões que muita gente não dá atenção.

L: Você já sentiu preconceito por atuar nessa área?

CES: Ah, 24 horas por dia. As pessoas me apontam na rua. “Não gosto desse cara, ele é arrogante”. Então, são umas minúcias que ou você tem firmeza de caráter para encarar ou não se mete.

L: Você acredita em um sistema prisional capaz de recuperar as pessoas?

CES: Eu acho que o sistema prisional – não o que é feito no Brasil – ele recupera. Mas ele tem que ser focado nisso, e não em depositar seres humanos que poderiam estar produzindo para o País. Quem comete crime tem que estar preso, mas a mulher do Cunha não está presa, ela não cometeu crime? (Referência a Cláudia Cruz, esposa do ex-deputado Eduardo Cunha, condenada a 2 anos e 6 meses de prisão pelo crime de evasão de divisas em processo da Operação Lava Jato. Os desembargadores determinaram que o cumprimento da pena seria em regime aberto) Aécio Neves? Eu nem discuto essas coisas.

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