Atriz e produtora cultural espera que a criminalização da LGBTfobia permita denúncias de agressões e violências

Cecília França

Mel Campus é uma força da natureza. Os gestos rápidos e a fala assertiva da atriz e produtora cultural foram construídos sobre uma história de dor e apagamento que ela reverteu em militância. A entrevista com ela inaugura o nosso Especial LGBTfobia.

Ativista dos direitos das travestis, Mel serve de inspiração para uma das populações mais privadas de direitos básicos entre os LGBT. Aos 43 anos, já superou em quase uma década a expectativa de vida desta população no Brasil, que se mantém em baixíssimos 35 anos. Tornar-se pública foi a saída encontrada por ela para reverter a violência que parece empurrar estes corpos dissidentes para a rotina de perigo e violência da prostituição.

“Independente de esquerda ou de direta, nunca tivemos o fascismo longe das nossas vidas”, declara Mel sobre as políticas pensadas pelos governos para as populações trans. E o apagamento começa dentro do próprio movimento, além de todos os estigmas sociais e da produção escassa de informação de qualidade sobre e para essas pessoas.

“Esta estrutura preconceituosa e excludente não nos aceita enquanto pessoas cidadãs. A não aceitação interfere muito na qualidade de vida, na saúde integral, no direito à família, à educação, segurança, cultura, e uma série de questões que nós sentimos a privação enquanto pessoas”, detalha.

A violência cotidiana enfrentada pelas travestis é muito maior quando comparada, por exemplo, à sofrida pelos homossexuais. Isso porque os corpos trans são tidos como fora do padrão aceitável socialmente. Mel relata uma situação ocorrida recentemente, no centro de Londrina, em que ela fazia uma performance na faixa de pedestres quando o semáforo fechava. De repente ela e sua produtora ouviram de um senhor “Podia abrir o sinal e passar um carro por cima pra matar isso daí”.

Situações como esta já feriram a atriz. Hoje, ela só lamenta pela falta de empatia e acredita que a criminalização da LGBTfobia pelo Supremo Tribunal Federal (STF) será benéfica. “Vai conter esse tipo de atitude, porque eu vou poder dizer ‘você está errado, eu tenho direito de viver, de existir, de trabalhar… O mesmo direito que você tem enquanto ser humano e como cidadão’”, defende.

A partir da criminalização Mel também enxerga maior possibilidade de denúncia formal por parte da população trans. “A gente vai poder fazer um B.O. (boletim de ocorrência) sem ser questionada, vai poder denunciar uma relação abusiva, um assédio moral na empresa. Vai poder denunciar um estupro e dizer ‘eu não queria ser estuprada’. Eu já sofri inúmeras violências que foram naturalizadas pelo fato de eu ser travesti”, lamenta.

Assista vídeo da entrevista

Mel em cena na peça Grazy Ellas. Foto: Eduard Fao

Violência ‘empurrava’ travestis para a noite

Para que possamos mensurar o nível de violência a que as travestis sempre foram submetidas basta lembrar que elas começaram a andar na rua durante o dia em Londrina a partir da aprovação da Lei 8.812/2002, que passou a penalizar estabelecimentos e pessoas que constranjam ou ofendam outras em função de sua orientação sexual.

Por muitos anos, Mel andou com a lei impressa na bolsa e precisou usá-la para garantir sua permanência em lojas e outros estabelecimentos. Antes da lei travestis não tinham liberdade sequer para fazer compras sem sofrer constrangimentos e agressões.

“Essas pessoas que são excluídas do dia vão automaticamente viver a noite. Então esse universo em que as travestis são jogadas é muito particular, porque ainda existe esta exigência de enquadrar este corpo dissidente”, explica Mel.

Toda essa conjuntura restringe, ainda, o acesso ao mercado de trabalho formal. “Temos uma sociedade que questiona o universo da prostituição, que mata travestis por estarem lá, mas que fecha totalmente as portas para essas pessoas”.

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Patologização da transexualidade

Apesar de a homossexualidade não ser considerada doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) há quase três décadas, a transexualidade só deixou de ser classificada como uma patologia, oficialmente, em 2018. No Brasil, ainda há projetos no Congresso que pretendem permitir a “cura” destas pessoas – algo defendido também por alguns psicólogos e que pode ser intensificado diante de um governo federal conservador como o atual e um presidente claramente homofóbico.

Nascida na década de 1970, quando o entendimento sobre a transexualidade ainda era mínimo, Mel sofreu com a patologização, tendo sido internada ainda na adolescência. Aceitar-se travesti foi, nas palavras dela, uma libertação.

“A autoaceitação é algo muito particular. Enquanto pessoa trans eu sempre soube quem eu não era, que aquele determinado papel dirigido às masculinidades não me pertencia. O que eu era não me era muito claro, porque eu não tinha informação sobre a transexualidade e as questões das identidades de gênero naquele momento”, relembra.

Mel Campus. Foto: Acervo pessoal

O estranhamento começou ainda na infância, quando ela não conseguia se enquadrar dentro de comportamentos esperados pela família. Com isso, surgiam afirmações como “Tem algo errado com esse menino”. “Eu sempre me entendi como uma pessoa e não como um menino”, explica Mel.

Já na vida adulta e ciente de sua travestilidade, Mel reuniu todo o aprendizado de uma vida forjada no apagamento para se tornar a ativista de hoje.

“A transfobia me fez militante; minha indignação de encontrar tanta gente disposta a dizer o que eu era, mas sem querer escutar o que eu tinha para dizer. Eu acabei entendendo que meu protagonismo era fundamental para questionar essa imagem das pessoas trans em Londrina e criar uma outra imagem dessa travesti, que é empoderadora, de beleza, de potencial. Quando a gente se coloca nesse processo de representatividade a gente cria acessos entre esta população e o restante da sociedade. Isso desmistifica, aproxima, faz compartilhar”, conclui.

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