Especialista em feminismo e gênero, Silvana Mariano analisa as consequências da crise gerada pela pandemia do Coronavírus e as mudanças necessárias nas nossas relações sociais

Cecília França

Crises econômicas, sociais e mesmo políticas tendem a afetar primeiramente, e mais diretamente, as mulheres. As ações necessárias para o enfrentamento da pandemia do novo Coronavírus já estão afetando o mercado de trabalho, as relações de cuidado e trazendo uma carga extra de dificuldades para mães, trabalhadoras, cuidadoras. A análise é da socióloga Silvana Mariano.

“Qualquer crise arrebenta mais fortemente primeiro para as mulheres. Imagino que nesse momento até mesmo o esgotamento em termos de saúde mental deve ser muito mais severo para as mulheres”, comenta.

Mariano estuda feminismo desde que entrou na graduação, há 25 anos, e, mais recentemente, se dedica às questões de gênero. O desejo de pesquisar e propor melhorias sociais que beneficiem as mulheres nasceu da experiência profissional na então Coordenadoria da Mulher, órgão criado pela Prefeitura de Londrina em 1993.

“Passei a trabalhar diretamente com isso, no cotidiano . Nosso trabalho envolvia também estudar sobre aquilo com o estávamos lidando, estão tínhamos uma minibiblioteca na própria coordenadoria, e debates e discussões”, relembra.

A experiência a levou a cursar Ciências Sociais na Universidade Estadual de Londrina (UEL), onde hoje atua como docente. No momento, Mariano cursa Pós-Doutorado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). De Salvador, ela conversou, via skype, com a Lume sobre a crise atual, suas consequências, políticas públicas para o público feminino e qual modelo de sociedade deveríamos forjar para diminuir a carga sobre as mulheres.

Lume: Em situações de crise as mulheres tendem a sofrer mais as consequências na nossa sociedade?

Silvana Mariano: Crises econômicas tendem a afetar primeiramente as mulheres porque elas estão em trabalhos mais precários, nas franjas mais vulneráveis do mercado de trabalho; se estivermos falando de uma crise da proteção social também são as mulheres que tendem a ser primeiramente e mais severamente afetadas, porque elas arcam com a principal responsabilidade de cuidado e as tarefas de reprodução social; se estamos falando de uma crise política, dependendo do tipo, pode resultar em tipos de reformas de Estado que reduzem garantias e direitos, e assim, também, afetam mais as condições de vida das mulheres. Ou mesmo quando não são reformas, existem alguns tipos de crises políticas, como a que tivemos no Brasil no período de remoção da Dilma, em que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres foram usados como moeda de troca, no sentido de que o governo assumiu o compromisso de deixar o campo livre para setores de direita e conservadores atuarem nesses temas em vantagem de alguns encaminhamentos que eram de interesse do Governo Federal. Então, crises têm de diferentes naturezas, mas, no geral, elas afetam ainda mais as relações de poder que estão organizadas em uma dada sociedade e, no nosso caso, nessas relações de poder as mulheres estão em posição mais vulnerável. Qualquer crise arrebenta mais fortemente primeiro para as mulheres. Imagino que nesse momento até mesmo o esgotamento em termos de saúde mental deve ser muito mais severo para as mulheres.

Silvana Mariano: 25 anos de dedicação aos temas feminismo e gênero. Foto: Arquivo Pessoal

L: Estamos vendo na atual crise econômica e social causada pela pandemia do novo Coronavírus pessoas perdendo emprego e as mulheres, que são a maioria no mercado informal, estão sofrendo bastante. A gente pode dizer que o desemprego, em geral, vai afetar mais as mulheres neste momento?

S.M.: Isso é estrutural, porque em todas as crises o desemprego entre as mulheres geralmente é maior. Quando há desarranjos no mercado de trabalho as mulheres são afetadas mais rapidamente e numa quantidade maior porque elas são maioria nessa franja do mercado que é mais precarizada, então, não têm proteção, são empregos cortados muito rapidamente quando há redução da renda. O trabalho doméstico é um exemplo muito típico para a sociedade brasileira, não só os relacionados à limpeza, mas aos cuidados, como babás. Nós tivemos um ganho significativo no Brasil, da década de 70 até o começo dos anos 2000, na participação das mulheres na População Economicamente Ativa (PEA), de modo a chegar a pouco mais de 40% da PEA – ou, se olharmos apenas para a população feminina, a taxa de participação das mulheres é em torno de 50% a 55%. É uma taxa baixa, porque entre os homens é um pouco acima dos 75%, então, tem um pouco mais de 20 pontos percentuais de diferença entre os homens e mulheres considerada gritante para padrões internacionais. Mas o Brasil vinha reduzindo essa desigualdade até aproximadamente uns 10 anos. O problema é que essa inserção da mulher ocorre em condições muito precárias, então, elas estão mais predominantemente ocupadas em funções de meio período, em trabalhos informais, em muitas formas de bico, que são fontes de renda facilmente cortadas em momentos de incerteza.

L: Mesmo no mercado de trabalho formal há uma tendência em, ao se demitir, optar-se pela funcionária mulher?

S.M.: Também acontece. Por um período, mesmo os sindicatos atuavam mais ou menos nessa direção, consciente ou inconscientemente. Porque há uma  ideia de que o homem é responsável por um orçamento familiar e o salário da mulher é o complemento do orçamento doméstico, e não ela a responsável pela família – uma visão que é equivocada quando, hoje no Brasil, aproximadamente uns 40% dos domicílios são chefiados por mulheres. Uma contradição que se tem numa crise que envolve um problema sanitário como agora, com a Covid-19, é que se tem uma parcela das mulheres afetadas por essa situação de pobreza e as mulheres também são maioria nos serviços de saúde, especialmente na enfermagem, auxiliar de enfermagem, pessoas que ficam ainda mais expostas aos riscos. É de uma maioria feminina esse contingente de pessoas que está ofertando cuidados.

L: Que tipo de amparo do Estado essas mulheres que são chefes de família necessitam e não têm, independentemente da pandemia?

Um gargalo histórico no Brasil é com serviços de atendimento à infância. O Brasil tem coberturas muito ruins para serviços de creche. Se pegar na faixa de idade de 0 a 3 anos, a taxa de cobertura deve estar ainda perto de uns 20%. É uma coisa absurda. Tem crescido mais a cobertura a partir dos 4 anos de idade por causa dos Centros de Educação Infantil, mas, no geral, são sistemas de 4 horas, ou talvez menos. Então, não tem creche e quando chega na pré-escola é em período intermediário. Ensino em período integral é um privilégio de classe no Brasil. Os serviços são muito escassos e, consequentemente, desigualmente distribuídos por classe social e por regiões do País. E são as mulheres, com ou sem pandemia, as responsáveis pelo cuidado com a infância. Isso é um problema histórico no Brasil. Nos anos 80 eu acho que os movimentos de mulheres eram mais fortes no sentido de reivindicar vagas de creche. Inexplicavelmente isso perdeu força, ainda que tenha crescido bem mais a participação das mulheres no mercado de trabalho pago. Agora, algo que é mais recente na nossa agenda política são os serviços para atendimento às pessoas idosas. É um fenômeno mais recente no Brasil e para essa população a taxa de cobertura deve ser muito pior. Novamente, os cuidados recaem sobre as mulheres. Também vem ganhando mais destaque político as reivindicações de serviços para pessoas com deficiência, mas ainda são muito poucos. O pouco que avançamos foi mais em termos de benefícios. O BPC (Benefício de Prestação Continuada), por exemplo, é muito expressivo, por ainda estar vinculado ao salário mínimo. Uma das tentativas do governo Bolsonaro era desvincular isso, reduzir o BPC (a proposta estava incluída na Reforma da Previdência enviada ao Congresso, mas não avançou). Via de regra são as mulheres que se ocupam de atender essas pessoas e esse benefício de um salário mínimo não é só para a sobrevivência da pessoa deficiente, porque a pessoa que está cuidando não tem condições de estar no mercado de trabalho.

L: Tivemos agora a aprovação da Renda Básica Emergencial e ela concede duas cotas a mulheres que são chefes de família, chegando a R$ 1.200 por três meses. Esse tipo de medida vai ao encontro da proteção que se espera do Estado para essas mães solo?

S.M.: Sim, foi uma medida muito positiva. Eu nem acreditava que o presidente iria sancionar. É um dos raros momentos de se reconhecer que essas mulheres que chefiam famílias têm uma sobrecarga maior, e que essas famílias tendem a ter mais vulnerabilidade. Foi um aceno importante para este momento.

L: Você acredita que isso pode repercutir em políticas públicas num futuro próximo, que parlamentares do campo progressista podem aproveitar esse gancho para trazer temas correlatos para a pauta?

S.M.: Eu tenho a esperança que sim. Ainda acho forçado chamar esse benefício de renda básica porque, se pegarmos pelo princípio, para começo de conversa ela é universal e o que foi instituído tem uma série de regras para seletividade. Só que já foram acontecendo mudanças para ampliar o público atendido. Tem sido um movimento muito interessante. Acho que ainda é uma proposta distante do que se pensava como renda básica, mas dá para ter alguma expectativa que os avanços conseguidos agora, alguns dos princípios, poderiam contribuir para uma revisão e aperfeiçoamento do Bolsa família, que é o nosso principal programa de transferência de renda. Aumentar o valor médio transferido, reconsiderar e até eliminar a existência das condicionalidades seria um aperfeiçoamento muito positivo, que daria para aproveitar dessa nova sensibilidade com esse momento da pandemia.

Os governantes gostam muito de ludibriar a população ao comparar o orçamento estatal com o orçamento doméstico, e a imprensa cai de patinho nesse tipo de analogia, de metáfora. Nada é mais enganoso do que isso. O orçamento do Estado não é igual ao doméstico. O Estado é um ente que tem o poder de emitir os papéis – hoje em dia nem precisa emitir moeda, ele emite os títulos da dívida e arrola a dívida. Claro que isso significa endividamento, mas não existe na história alguma sociedade que tenha resolvido problema de pobreza e de desigualdade social sem gasto público.

L: Mas para implementar isso teria que se abandonar a lógica liberal vigente?

S.M.: Sim, e abandonar a agenda de Paulo Guedes (ministro da Economia) e companhia, uma agenda ultrapassada mundo afora e muito popular no Brasil, uma vez que o Bolsonaro foi eleito falando com todas as letras qual era a sua agenda. As pessoas não votaram nele apesar de sua política econômica, mas por causa dela.

L: Muitas das dificuldades que as mulheres, de uma maneira geral, enfrentam, vêm do peso de serem responsáveis únicas pela reprodução e pelos filhos?

S.M.: Concordo. Acho que uma questão central para progredirmos com os direitos das mulheres é o tema do cuidado e o entendimento de que todos precisamos de cuidado e todos devemos ser cuidadores. Porque se todos somos dependentes em alguma fase da vida seria princípio solidário básico todos sermos capazes de cuidar. E por mais que falemos de políticas públicas, que são essenciais e precisamos continuar reivindicando, precisamos de mudança também societal. A sociedade precisa passar por mudanças de conduta, em que a divisão sexual do trabalho, que já é tão desigual dentro das nossas casas, precisa ser modificada.

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