Londrinense vivenciou a fase crítica da doença em Milão e relata temor: “Tinha medo de terminar em uma vala comum”

Cecília França

Estar na Itália significa a realização de um sonho para a londrinense Melissa Campus, 43. Mas a atriz e produtora cultural viu este sonho ser atravessado pela pandemia do novo Coronavírus logo que pisou em Milão, em meados de janeiro. Vinte dias depois, viu o centro econômico do país totalmente fechado, o isolamento tornou-se compulsório e o medo a dominou.

“Quando eu estava para embarcar no Aeroporto de Guarulhos eu olhei na televisão eu vi a primeira notícia da Covid-19. Eu não entendi muito bem, estava muito eufórica para entrar no avião. Quando cheguei no meu apartamento em Milano, minha amiga me recebeu, eu liguei a televisão e então eu entendi o que estava acontecendo. Mas eu nunca imaginei que essa doença fosse tão grave e que esse cataclisma viral pudesse paralisar o mundo”, relata Melissa.

Apesar de ter surgido na China, foi na Itália que o novo Coronavírus assustou o mundo. A escalada de contaminações e mortes deixou o país nas manchetes dos principais jornais do mundo durante semanas. Até ontem o país contabilizava 29.958 mortes e mais de 215 mil infectados por Covid-19.

O governo demorou a decretar o fechamento da região da Lombardia, cuja capital, Milão, representa o coração econômico do país. No entanto, com o avanço dos casos, não teve escolha.

“Essa pandemia alterou muito o modo de se trabalhar, a forma como a gente vê o dinheiro, o lucro. Porque antes do lucro vem o risco e o risco quer dizer vida ou morte. Mas esse risco perto das pessoas que a gente ama tem um significado, do outro lado do mundo, sozinha, eu tinha medo de terminar em uma vala comum”, revela.

A fase crítica passou e o medo de Melissa se abreviou. Na semana passada a Itália iniciou um processo de reabertura, ainda gradual. Em Milão, sair à rua só está autorizado para atividades físicas, compras, por razões de saúde ou trabalho em serviços já retomados.

Para Melissa, a crise só se agravou tanto em função de uma incapacidade estatal de investir em estruturas sanitárias e de saúde. Para ela, a manutenção de um bloqueio tão rígido por tanto tempo fere, de certa forma, as garantias democráticas.

“Eu prefiro o risco de trabalhar com máscara e luvas, de manter meus direitos garantidos e não sacrificar a nossa democracia e a liberdade que, para mim, é o maior de todos os direitos”, analisa.

Melissa conversou com a Lume via Whatsapp e fez questão de dedicar a entrevista a pessoas importantes em sua trajetória: “Quero dedicar esta entrevista a meu pai, André Andreazza, à minha mãe, Lourdes, e à minha mestra inspiradora Christiane Lemes, que amo tantíssimo”.

Leia depoimento completo:

“Eu cheguei até aqui por uma promessa que eu fiz que era resgatar a minha origem, a minha raiz. Eu sempre desejei saber de onde eu vim, para onde eu vou, mas eu não tive muitas oportunidades, então eu tive que me sacrificar. Mas eu acho que para uma travesti nada foi tão fácil, nada é tão fácil e não será tão fácil. Eu quero começar pelo meu nome, o sobrenome que o meu pai me deixou. Ele era devoto de Nossa Senhora Aparecida, me batizou na igreja de Nossa Senhora Aparecida e foi naquela igreja que eu fiz uma promessa e pedi para que ela me ajudasse a chegar até aqui.

Meu nome verdadeiro é Melissa Andreazza. Quando eu estive aqui em Milano pela primeira vez, em 2006, eu descobri que era de origem italiana. Eu busquei a minha origem durante três anos e, em 2009, eu consegui encontrar um documento. Depois meu pai pegou câncer e eu voltei para casa, ainda em 2009, e fui viver com ele. Em 2011, no dia 8 de março, ele faleceu. Então eu decidi que eu deveria voltar para cá para o reconhecimento da minha dupla cidadania italiana, mas eu não teria conseguido se não fosse a ajuda de Nossa Senhora Aparecida, as orações de minha mãe, se não fosse a minha luta e a minha militância e o lugar que Londrina me deu nas artes.

Medalha de Nossa Senhora Aparecida que Melissa carrega consigo. Fotos: Arquivo Pessoal

Quando eu estava para embarcar no Aeroporto de Guarulhos eu olhei na televisão eu vi a primeira notícia da Covid-19. Eu não entendi muito bem, estava muito eufórica para entrar no avião. Quando eu cheguei no meu apartamento em Milano (em 24 de janeiro) minha amiga me recebeu, eu liguei a televisão e então eu entendi o que estava acontecendo. Era uma nova doença. Mas eu nunca imaginei que essa doença fosse tão grave e que esse cataclisma viral pudesse paralisar o mundo. Eu nunca imaginei ver Milano paralisada, eu nunca imaginei ter que viver esse pesadelo dentro do meu sonho. Mas era essa a realidade.

Durante duas semanas eu vivi bem, mas a partir do dia 12 de fevereiro eu via, de cinco em cinco minutos, as sirenes das ambulâncias passando e elas não paravam, e eu aqui na zona vermelha, perto da Duomo (Catedral de Milão), onde eu moro. Então eu entendi o que estava acontecendo. Eu já tinha meus anúncios, já tinha conhecido algumas pessoas, estava ciente que eu iria me prostituir para sobreviver. Eu vim determinada a conseguir aquilo que eu vim buscar, não importa qual preço eu pagasse. Mas eu não achei que fosse tão alto assim.

Eu vi pessoas morrendo e entrei em desespero; eu vi uma política de terrorismo, dizendo que era para a gente ficar dentro de casa, trancado, que não poderia ter contato com ninguém e que eu poderia ser penalizada por isso. Mas o meu trabalho era de contato e eu não tive escolha, eu tive que continuar trabalhando e me sustentando. E Milano parou, e as pessoas morrendo, e as ambulâncias gritando de cinco em cinco minutos. Eu vi a histeria coletiva, eu vi a política de terrorismo, eu vi o desconhecido e o pavor da sociedade perante o desconhecido.

Eu reduzi o atendimento dos clientes em um por dia, somente para sobreviver. Mas eu tinha que pegar um apartamento para eu poder pedir a minha residência e, finalmente, ter a cidadania reconhecida. Então eu continuei com meus anúncios. A única preocupação que eu tinha era que esse vírus não chegasse até mim. Eu comecei a lavar a minhas mãos de cinco em cinco minutos, a minha amiga também. E tudo que a gente tocava a gente lavava. Eu comecei a usar álcool em gel, minhas mãos queimavam e eu tinha medo de respirar o ar. Eu tinha medo de sair de casa, então entrei em reclusão. Mas eu não sabia de onde vinham aquelas pessoas que me procuravam.

Essa pandemia alterou muito o modo de se trabalhar, a forma como a gente vê o dinheiro, o lucro. Porque antes do lucro vem o risco e o risco quer dizer vida e morte. Mas esse risco perto das pessoas que a gente ama tem um significado, mas do outro lado do mundo, sozinha, eu tinha medo de terminar em uma vala comum, e ainda tenho. Mas eu consegui alugar o meu apartamento, consegui fazer o pedido da minha residência. E falta muito pouco. Daqui alguns dias a Comune (prefeitura) abre e aí eu vou poder dar entrada na minha dupla cidadania.

Ainda continuo em isolamento. As pessoas que se dispuseram a me ajudar ainda continuam me ajudando, vindo até mim, me telefonando. Eu continuo esperando a hora de sentir a liberdade. Quando puder sair na rua de novo eu imagino que vai acontecer uma festa. E quando a gente puder se aproximar um do outro, e se abraçar e se beijar, também vai ser uma festa. Eu acredito que isso vai acontecer, logo, logo. Aqui e também no Brasil.”

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