Por Paula Vicente e Rafael Colli, integrantes da Comissão de Direitos Humanos da OAB/Londrina
Em dezembro do ano passado ecoava pelo mundo inteiro o grito das mulheres chilenas que lutavam contra o machismo e a opressão estatal. Esse assunto, inclusive, foi tema desta coluna. Em um dos versos da música protesto, do grupo La Tesis, dizia assim: “O patriarcado é um juiz. Que nos julga por ter nascido.”
Versos que podem parecer abstratos, mas que são vistos cotidianamente em nossa sociedade, passam despercebidos pela maioria das pessoas no dia a dia, e só chocam quando viram realidade, literalmente.
No último dia 06/07/2020, Sandra Mara Curti foi assassinada pelo ex-marido, com 22 facadas desferidas contra ela diante de seus dois filhos. Seria apenas mais um caso de feminicídio em Londrina, se não fosse pelo detalhe mais alarmante e revoltante dessa história. Sandra pediu socorro à Justiça, para se livrar das ameaças de um ex-marido violento e sua voz foi ignorada, silenciada.
Ao tomar coragem e procurar uma delegacia de polícia, Sandra fez o que podia, agiu da melhor maneira para salvaguardar sua vida e de seus filhos. Diante dos relatos das ameaças que vinha sofrendo do ex-marido, elaborou-se um pedido de medida protetiva e, por se tratar de final de semana, o pedido foi analisado pelo juiz que estava de plantão, João Marcos Anacleto Rosa, Juiz Substituto de Vara Cível de Londrina.
Em sua decisão, o juiz diz que as denúncias de ameaças não seriam suficientes para o deferimento da medida protetiva, que tais medidas se tornaram corriqueiras e não devem ser deferidas pelo simples pedido da vítima, há que existir provas do ocorrido – em outras palavras, da violência.
Sandra foi assassinada dois dias depois de seu pedido ser negado.
A decisão, além de equivocada juridicamente, vem carregada de preconceito e machismo. Para começarmos, o argumento de que não havia indícios ou provas suficientes para o deferimento da protetiva é pífio, pois sabemos que, em crimes cometidos no silêncio do lar, a palavra da vítima tem especial valor probatório, e serve, senão falseada por outros indícios, inclusive, para fundamentar sentenças de condenação. Portanto, não há dúvidas de que a palavra da vítima é suficiente para o deferimento de uma medida cautelar de proteção à própria vítima. Além disso, caso o acusado trouxesse aos autos provas de que Sandra mentira, a medida protetiva poderia ser imediatamente revogada, ou seja, não haveria qualquer prejuízo ao acusado. No entanto, para o homem que julgou Sandra, sua palavra não valia de nada.
Outro erro gritante – e elemento próprio do machismo – é o fato de que, para aquele juiz ameaças não constituem violência suficiente para o Estado fornecer proteção à mulher. Para aquele juiz – assim como para muitas outras pessoas -, violência contra a mulher é apenas violência física.
Não é, contudo, o que diz a lei.
A lei 11.340/2006, a famosa Lei Maria da Penha, determina que qualquer ação ou omissão que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, dano moral ou financeiro, configuram violência doméstica e familiar. Desta forma, a mulher não precisa apresentar marcas físicas em seu corpo para que esteja sofrendo violência doméstica.
Mas, como dissemos, o juiz é mais um agente de um Estado patriarcal e julgou Sandra apenas por ela ter nascido mulher; julgou Sandra pelo senso comum. Além de dizer que não havia prova suficiente, levando a crer que violências que não deixam marcas visíveis não são violências que importam, ainda o juiz disse em sua decisão que as medidas protetivas se tornaram “corriqueiras” e que deveria ser “exceção”. Mais um erro grosseiro e machista; um desconhecimento da lei e da realidade; isso porque menos de 30% das mulheres vítimas de feminicídio tiveram concedidas em seu favor medidas protetivas.
O juiz preferiu negligenciar as leis e decidir conforme sua convicção pessoal. Decidiu mal, não por falta de estudo ou experiência, mas por não ver a mulher com um ser pensante e capaz. Aí não adianta dizer que é homem de família, que tem mãe, filhas ou esposa. A visão do juiz, do Judiciário e do Estado como um todo sobre mulher está documentada naquele processo, naquele pedido de socorro negado; para o Estado e, neste caso, para o juiz que julgou o caso, a mulher que denuncia seu marido ou ex-marido não é vítima, é histérica e mentirosa.
O juiz chegou ao cúmulo de chamar Sandra de “hipotética vítima”. Hipotética? Só se for no pensamento machista e violento do homem que, travestido de agente do Estado, aplica e perpetua uma cultura de violenta e mata. E matou.
A decisão foi exarada apenas dois dias antes do feminicídio de Sandra. Seu algoz certamente se sentiu vitorioso quando descobriu que o relato de sua vítima fora minimizado. O Estado, no final das contas, ao invés de proteger a vítima, empoderou seu assassino.
O que queremos dizer com tudo isso? Que devemos lutar todxs para que a voz da mulher seja ouvida e respeitada. Devemos nos indignar quando, depois de passar por qualquer tipo de violência, a mulher é revitimizada pelo Estado, seja em um péssimo atendimento nas delegacias não especializadas, seja em um exame de corpo de delito mal feito ou seja por uma decisão judicial desastrosa.
Os serviços de Delegacias da Mulher e varas especializadas foram um grande avanço, mas não podemos aceitar que qualquer pessoa, paga pelo contribuinte para o proteger, pense que a palavra de uma vítima não é o suficiente apenas por ser mulher. Não podemos aceitar que homens letrados ignorem as leis que são pagos para aplicar e decidam de acordo com o senso comum, colocando mulheres em risco.
Devemos lutar para que o Estado seja responsabilizado e, mais do que isso, tome responsabilidade; para que o Estado aprenda e eduque seus agentes de acordo com os princípios democráticos e não de acordo com o discurso moralista tacanho que escutamos diariamente.
E às mulheres que sofrem qualquer tipo de violência, não se calem. Além da Delegacia da Mulher que tem atendimento especializado, caso precise de uma medida protetiva e não queira depender do juiz de plantão, um advogado ou uma advogada podem fazer o pedido diretamente à Vara Maria da Penha. Se o caso for mais urgente você pode ligar para o 153 e pedir socorro à Guarda Municipal, que tem a patrulha Maria da Penha, pronta para esse tipo de atendimento. Não pode falar ao telefone? Vá até uma farmácia e faça um X vermelho em sua mão e mostre a uma funcionária, ela pedirá socorro sem você precisar dizer nada. Você não está sozinha.
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