Anúncio do fechamento da sala causou comoção e fez aflorar sentimentos e memórias nos antigos e habituais frequentadores do cinema

Cecília França

Fotos: Agência UEL

Há exatos 40 anos, o então estudante de jornalismo Milton Antunes ocupou o cargo de gerente do Cine Com-Tour em Londrina por três meses. As exibições eram diárias e cabia a ele fazer compras, cuidar da manutenção, substituir funcionários nas folgas, administrar o dinheiro e fazer os borderôs com todas as informações sobre ingressos vendidos, nomes dos filmes, receita, etc. Com o anúncio do fechamento da sala de exibição, na semana passada, Antunes resgatou suas memórias desse curto – porém marcante – período de tempo.

“Quando trabalhei no cinema a programação era feita pelo pessoal de Botucatu. Naquela época, o Com-Tour já era um cinema que tinha uma programação especial, mais ‘artística’, voltada para um público mais seleto. Os grandes musicais sempre lotavam a sala: Nasce uma Estrela, com Barbra Streisand, The Rose (Bette Midler), Woodstock… Antes de exibir estes filmes, falei com meu chefe e pedi para gente dar upgrade no equipamento de som. Ele topou e trocamos o som por um mais novo, mais potente. Ficou show”.

Antunes lembra que naquela época já havia um público fiel ao cinema. “A gente até conhecia espectadores, os casais, sabia até dia da semana que eles gostavam de ir”, conta. Ao falar do cinema, na lembrança do jornalista afloram sentimentos, cheiros e sensações únicas ligadas ao espaço.

“O saguão do cinema tinha um cheiro especial, uma mistura de combinação de fragrâncias das balas da bomboniere, inebriante. Outra curiosidade é o cinema tinha um Fumoir, uma sala para os fumantes. Durante a sessão, o sujeito ia para sala, que ficava atrás da última fila de poltronas, e podia pitar o seu cigarrinho. A sala tinha banquetas, um balcão e cinzeiros. Era fechada com vidro e tinha uma caixa de som com áudio do filme. Era muito chique. Ali também funcionou – em outros tempos – uma wiskeria”. 

“Outro detalhe curioso era a presença constante dos Comissários de Menores. Eles iam fiscalizar se não tinha menores tentando assistir os filmes proibidos e eles sempre aproveitavam para ver o filme. De graça”, relembra. Antunes se define como um amante da sétima arte. Mesmo dentro do jornalismo, exerceu atividades ligadas a imagem e som. Era, ainda, um frequentador do Com-Tour.

O fechamento do Com-Tour é muito triste. A sala é muito boa, confortável e sempre contou com uma programação de primeira. Eu vou ficar sempre com essa memória afetiva, do tempo que passei por lá, das centenas de filmes que assisti, daquela fragrância no ar… Agora são apenas lembranças, mas que vão ficar guardadas para sempre.

Desativação

Há 15 anos a sala de exibição do Cine Com-Tour era administrada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Na semana passada, a universidade anunciou a desativação do cine, fechado desde meados de março em decorrência da pandemia. O custo para manutenção do espaço era de R$ 10 mil mensais e a incerteza sobre o retorno das sessões levou ao fechamento.

À Agência UEL, o diretor da Divisão de Cinema e Vídeo da Casa de Cultura, Carlos Eduardo Lourenço Jorge, lembrou que a proposta de oferecer cinema de arte remonta ao ano de 1978, quando o Ouro Verde foi incorporado ao patrimônio da UEL. Foi também dele – crítico de cinema e responsável pela programação da sala há décadas – a iniciativa de levar o cinema para o Com-Tour, quando participou das negociações para a cessão inicialmente gratuita do espaço à universidade.

Diretor da Casa de Cultura da UEL na época da abertura do Cine Com-Tour/UEL, Kennedy Piau fez uma postagem em suas redes sociais comentando, com tristeza, a necessidade de fechamento, o qual atribui ao estrangulamento financeiro da universidade. No post, Piau narra os passos para a parceria e o objetivo da universidade ao criar a sala.

Por que criamos o Cine Com-Tour/UEL? Porque, na Casa de Cultura da UEL, avaliamos que era ruim para a cidade concentrar no Cine Teatro Universitário Ouro Verde as atividades de cinema, os ensaios da orquestra e as demandas das artes cênicas/musicais por espaços qualificados, do ponto de vista técnico e dos recursos humanos. Uma boa sala de cinema deve ter periodicidade. No Ouro Verde, quando tinha FILO, Festival de Música ou outro evento, era necessário suspender as sessões de cinema.”, conta.

“Por outro lado, os ensaios da OSUEL e as sessões de cinema engessavam a agenda do cine teatro, dificultando a vinda de muitos espetáculos que precisavam permanecer por mais tempo no teatro.” Ao receberem a notícia que o ex-senador Francisco Leite Chaves, dono do Shopping Com-Tour, buscava parcerias para instalar um cinema de arte, e avaliando a estrutura da UEL, iniciaram-se as negociações.

“Marcamos uma reunião com Leite Chaves e avançamos na consolidação da parceria. A UEL ficou responsável pelos equipamentos, servidores e programação. O Com-Tour se responsabilizou pelo cessão e manutenção do espaço e segurança. A bilheteria, após o pagamento das despesas com a exibição do filme, ficava com o Shopping.

Uma parceria vantajosa, sobretudo para a UEL e para a cidade, que passou a ter um cinema permanente com uma programação bem qualificada, sob a responsabilidade do crítico, jornalista e servidor da UEL Carlos Eduardo Lourenço Jorge. Passamos a ter sessões de cinema todos os dias. Cinema de qualidade. Trouxemos, ao longo de 15 anos, filmes que dificilmente seriam exibidos nas salas comerciais. Partilhamos experiências com festivais e mostras de cinema de Londrina.”

O Cine Com-Tour/UEL fecha as portas definitivamente em 31 de agosto, após exibir mais de 800 filmes. A pedido da Lume, londrinenses resgataram memórias afetivas com o espaço.

Volta à infância

“Lembro-me muito bem de que o Com-Tour era o shopping center da minha infância, isso há mais de 35 anos. Tínhamos tudo o que uma criança pode esperar de um shopping de hoje em dia: brinquedos, lanches na antiga loja Brasileiras e, logicamente, o cinema. Quantas boas recordações das matinês com meu irmão e, às vezes, minha tia, que nos acompanhava. Isso quando não íamos sozinhos, meu irmão e eu, duas crianças, ou pré adolescentes, enfrentando as ruas de Londrina, a pé ou de ônibus, coisa inimaginável para crianças de hoje em dia”, recorda Jorge Souza, proprietário de uma escola de idiomas.

Ali nasceu uma paixão que perdura até os dias de hoje: os desenhos da Turma da Mônica, que ele aprendeu a apreciar naquela sala cheia de crianças. “Sala essa iluminada por aquelas luzes lindas, coloridas, que são a marca registrada daquele lugar, luzes inconfundíveis – basta olhar uma fotografia, mesmo que desfocada, das luzes para saber que é de lá e fazer aflorar sentimentos maravilhosos de infância.”

Experiências marcantes

O jornalista Fábio Galão pode ter influenciado, com seu trabalho, na consolidação da parceria UEL-Com-Tour. “No começo de 2005, eu fiz para a Folha (de Londrina) uma matéria sobre a reforma do cinema que o Com-Tour estava fazendo. Uns meses depois, eles me ligaram e disseram que a UEL tinha proposto uma parceria depois que o pessoal da Casa de Cultura viu a matéria. Me convidaram para a reinauguração, mas nesse intervalo eu tinha mudado pra Curitiba e não tive como ir.” Ele só passou a frequentar o cinema em 2011, quando retornou à Londrina.

“Só assisti filme ‘light’ lá: Melancolia, A Caça, Philomena, Azul é a cor mais quente… O último que vi lá foi Retrato de uma jovem em chamas, antes da quarentena”.

Marcos Gomes, apresentador e jornalista, diz ter vivido “muitas e muitas” histórias marcantes no Cine Com-Tour e divide duas com a reportagem: “Estou casado com Ana Cristina, que beijei pela primeira vez no Cine Com-Tour. ‘Um homem fiel’, o nome do filme que a convidei para assistir comigo.”. O Com-Tour também foi seu local de “detox” nos últimos meses.

“Parei de beber há um ano e o cinema foi a minha caverna para ficar longe dos botecos no início da noite. Muitas vezes no Com-Tour. Durante um ano fui uma vez por semana lá.”

A também jornalista Mariana Guerin assistiu a vários filmes no Com-Tour, alguns com apenas outras “duas ou três pessoas na sala”. Mas a experiência mais marcante no local não foi cinematográfica.

“Última coisa que vi lá foi a formatura do curso de regência da UEL. Só os familiares e amigos dos alunos e eu. Fui para ter a oportunidade de ver uma apresentação de música clássica. Adorava as luminárias coloridas. Era aconchegante”

Em livro sobre Lourenço Jorge, Zanin resgata história do Cine

Nessa quarentena infinita nasceu o livro do cantor e compositor Vinícius Zanin sobre a história do crítico de cinema Carlos Eduardo Lourenço Jorge – história que se confunde com a da cultura londrinense e engloba a do Cine Com-Tour. Remexendo guardados, Zanin encontrou uma entrevista sua com Lourenço Jorge, realizada para seu Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo, em 2008.

“O Cadu se abre sobre seu trabalho, sobre o Com-Tour, sobre cinema, sobre a cultura londrinense, sobre a vida. Revisitando esse material todo veio a concepção do livro. Eu aproveitei para escrever uma introdução contando sobre essa minha aproximação com o cinema, com o crítico e com quem, mais tarde, viria a se tornar um grande amigo”, conta.

Imerso no mundo das artes, Zanin sabe das dificuldades para se concretizar uma obra, mas sua trajetória na música lhe dá ânimo e confiança para acreditar na publicação breve do livro, que tem como título provisório “Carlos Eduardo Lourenço Jorge- A palavra viva do cinema”.

“Agora com o livro todo escrito começa uma etapa de negociação com as editoras. Confesso: não imaginava que seria tão difícil e burocrático lançar um livro no Brasil. Estou trabalhando de forma 100% independente, sem patrocínio e sem verba de custeio público. Mas eu também confesso que estou super animado e esperançoso. Eu já passo por esse aperto na música há muitos anos e mesmo assim consegui realizar coisas que até eu mesmo duvido quando vejo. Tenho certeza que isso me ajudou a me motivar a botar o livro no mundo”.

Zanin relembra sua ligação com o shopping e Cine Com-Tour desde a infância e lamenta o fechamento da sala. “Quando eu recebi a notícia na hora me vieram lágrimas nos olhos. Uma sensação de impotência e um misto de sentimentos, porque isso me deu ainda mais ‘sangue nos olhos’ para agilizar o lançamento desse livro. Mais do que nunca, humildemente, eu penso que essa publicação se torna mais que necessária, se torna vital. Vital para a manutenção da memória. Da memória de um lugar tão querido por tanta gente dessa cidade. Com uma memória afetiva tão pulsante”, finaliza.

“Desde muito criança eu frequento o shopping Com-Tour. Uma das minhas memórias mais vívidas é de quando minha mãe ia fazer compras nas Lojas Brasileiras. E a gente sempre passava em frente ao cinema. Eu ficava horas admirando os cartazes e olhando pra dentro daquela sala com luzinhas coloridas na parede. Anos depois eu vim a ser frequentador assíduo do cinema, de ter uma época que ia toda semana. Às vezes até assistia filmes repetidos. Mas ainda sem relação com o Carlos Eduardo. Não fazia nem ideia de quem comandava aquilo.

Em 2008 eu estava fazendo o projeto do trabalho de conclusão do curso de Jornalismo e por essa paixão toda por cinema resolvi escrever o meu trabalho sobre crítica de cinema. Eu queria restringir a pesquisa a Londrina, mais especificamente ao Carlos Eduardo, críticas que eu li durante a minha vida toda. Por conta do TCC rolou uma entrevista com ele. Depois desse dia nós nos tornamos muito amigos e eu passei a frequentar a alma do Com-Tour.

Em 2013 eu fiz uma apresentação lá com a OSUEL. Na época o teatro Ouro verde estava em reformas por conta do incêndio e a orquestra ensaiava lá, dentro do cinema. E o maestro Vitor Gorni achou legal a ideia de a gente se apresentar lá mesmo. Aí, pronto! Foi a coroação da minha trajetória com aquilo tudo. Aquele local passou a ser uma espécie de meu canto sagrado.”

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