Inseridas em um contexto social que define a mulher como cuidadora principal dos filhos, mulheres se veem exaustas com acréscimo de demandas decorrentes do isolamento social

Cecília França

“Está bem difícil pra mim não poder contar com ninguém e ser a única responsável pelo bem-estar, educação e felicidade dos meus filhos”. Quando recebi esta mensagem de uma amiga começou a nascer essa matéria. Enxerguei a necessidade de ouvir mães sobre o sentimento de solidão que parece permear a maternidade e, logo nas primeiras conversas – e levando em conta minha experiência pessoal de mãe de dois bebês – notei o quanto falar sobre isso era necessário, especialmente neste longo período de isolamento decorrente da pandemia do novo Coronavírus.

Ouvi 20 mães com um, dois ou três filhos vivendo em variadas conjunturas: mães solo; que dividem a casa com companheiro; que vivem com companheiro e familiares ou apenas com familiares. Fiz uma série de perguntas com alternativas e uma última aberta: A pandemia mudou sua relação com a maternidade? Facilitou ou dificultou os cuidados? Você se sente mais sobrecarregada? Escreva sobre. Algumas responderam com frases curtas. A maioria, porém, aproveitou o espaço para discorrer sobre a carga extra que tenta equilibrar no dia-a-dia.

Dentre as ouvidas, cinco disseram “sempre” se sentir solitárias no exercício da maternidade; outras 12 já se sentiram desta forma “muitas vezes”. Para 15 das 20 mães ouvidas, a pandemia agravou – um pouco ou muito – o sentimento de solidão materna.

“A pandemia dificultou minha relação com a maternidade, principalmente porque minhas filhas saíram de todos os outros ambientes que frequentavam: escola, amigos, projetos. Com isso, a nossa vida familiar tornou-se o maior foco do cotidiano de todos e isso tem sido muito estressante para mim, que me sinto obrigada a responder por necessidades que não são inerentes ao meu papel de mãe”, conta a mãe de duas adolescentes.

“Não sou sozinha e tenho um marido cujas cargas de trabalho são tão pesadas que todo o resto acaba ficando sob minha responsabilidade. E ‘todo o resto’ é um monte de tarefas que abarrotam meu dia para, no fim, parecer que não fiz absolutamente nada”, relata outra, mãe de duas crianças pequenas.

A exaustão é um dos pontos comuns entre todas as mães ouvidas. Mesmo as que têm condições de manter o isolamento e se mostram gratas por isso apontam mudanças de comportamento decorrentes do atual cenário – como tristeza e raiva, seguidas da culpa que acompanha a maior parte das mães.

“Tem momentos que bate o desespero e eu choro no banheiro. Meu esgotamento mental muitas vezes me deixa acordada durante a madrugada enquanto meu corpo implora para descansar…meu cérebro não deixa. Quando deito na cama ele ativa todas as tarefas que preciso fazer no outro dia, uma lista mental imensa, roubando os poucos minutos que eu teria comigo mesma para ler um livro, ver uma série ou mesmo tomar um banho decente. Quando durmo sinto que fechei e abri os olhos dois segundo depois”, desabafa uma mãe de dois meninos, de 5 e 6 anos.

Uma dentista que mora sozinha com o filho de seis anos relata que não sentiu a relação com a maternidade alterada pela pandemia, uma vez que a solidão já faz parte de sua rotina materna.

“Como sempre tive o apoio da minha mãe, sinto também ela muito mais íntima de nós, e como meu ex (marido) sempre foi ausente como marido e pai no passado, vejo o desinteresse dele do mesmo modo como sempre vi. Apesar de saber que deveria ser diferente, o sentimento de solidão materna é presente sempre”.

Realmente não deveria ser assim, corrobora a pesquisadora Márcia Macêdo, do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Na verdade a solidão é o subproduto de como as mulheres são levadas a vivenciar a maternidade”, explica. Márcia estuda há décadas as relações de gênero e de família, o que a levou a se aprofundar em questões de classe, raça, maternidade e monoparentalidade.

Para ela, a sobrecarga materna advém de algumas situações, sendo a divisão sexual do trabalho o ponto central. A despeito de todas as conquistas recentes das mulheres, há, ainda hoje, uma naturalização da maternidade biológica que é levada para o campo da maternagem social.

“Há uma naturalização da maternidade como um domínio feminino. O nascimentos dos filhos não altera, no caso de casais hétero, a rotina dos homens; eles preservam o seu espaço de lazer e rede de sociabilidade. Então, as mulheres se sentem forçadas a serem mais aptas a cuidar dos filhos. Elas internalizam essa competência que acaba se somando a uma desresponsabilização dos pais”

Casais igualitários ainda são minoria. Os homens não são socializados para exercitar a paternidade. É uma mudança lenta que depende da reconstrução da própria noção de masculinidade. É fato, atestado pelas mães entrevistadas: 45% delas moram com companheiros, mas apenas 20% consideram que os cuidados com os filhos são divididos igualitariamente entre os dois.

A centralidade dos cuidados na pessoa da mãe também decorre, na visão de Márcia, da diminuição dos núcleos familiares. Além de famílias menores, elas estão mais distantes dos outros familiares.

“Eu tenho 52 anos, circulava na casa da minha avó, com meus primos e primas. Hoje, com a formação de núcleos familiares menores e mais isolados, e com a própria quebra do padrão de família extensa, faz com que você tenha modelos mais híbridos. A maternidade vai sendo vivida cada vez mais como uma responsabilidade do casal e, dentro do casal, transferida para a mulher”, explica.

Lente de aumento

A pandemia coloca uma lente de aumento nos obstáculos enfrentados pelas mães, na opinião da socióloga Márcia Macêdo. O isolamento social, o fechamento das escolas, a instituição forçada do homeoffice para algumas, a necessidade de continuar trabalhando fora, para outras, ou a perda da renda transformam o cenário atual em uma fonte de angústias.

“Mulheres com parceiros têm sentido o peso dessa dificuldade de dividir e, pensando naquelas que têm rede, estão impedidas de ter acesso, porque os mais velhos passam a ser grupo de risco. O fechamento das escolas, das creches, tudo isso gera uma situação limite”, acrescenta. Trabalhar em casa também aumenta o esgotamento, porque rompe a divisão entre trabalho e casa. O trabalho invade a casa e, para muitas mulheres, a jornada acaba se estendendo até a madrugada.

“Para muitas começa de uma forma mais intensa depois que os filhos dormem, isso acaba agravando a exaustão”, lembra Márcia. O fato de não poderem abdicar do papel de cuidadoras torna o momento atual ainda mais angustiante para as mulheres. Para Márcia, precisamos abandonar a idealização da maternidade e rever papeis sociais. Trata-se de um processo libertador.

“As mulheres são socializadas para persistirem numa ideia de servidão voluntária, de cuidar dos outros e de colocar os outros à frente da dela. Elas são fabricadas para assumir uma devoção natural à família e aos filhos”.

“A linha é contínua demais. Antes você tinha o pontilhado (que era a hora da escola, a possibilidade de dormir na casa de amiguinhos). A gente não tem mais os pontilhados e é um fio que está sendo esticado para todos os lados”, alerta Márcia.

Buscar apoio

Se o isolamento impossibilita o acesso de muitas mães às redes de apoio já estabelecidas, é preciso procurar outras que estejam acessíveis. Conversar, trocar experiências, pedir favores, são atitudes imprescindíveis neste momento para alívio da sobrecarga. O alerta é da psicóloga Natália Mendes Ferrer, de Londrina.

“Para lidar com esta sobrecarga é imprescindível estabelecer uma rede de apoio. A maternidade é um período mais que apropriado para receber esse tipo de ajuda. Infelizmente esperamos que o outro perceba e faça o que estamos precisando, mas a realidade é que quase nunca isto acontece. Hoje temos grupos de apoio online para mães e perfis informativos onde é possível discutir dúvidas e medos, compartilhar experiências e evitar sentimentos de solidão pelo estabelecimento de uma rede de apoio”.

Em sua experiência clínica Natália constata que o sentimento de solidão em relação à criação dos filhos acompanha muitas mães, independentemente da pandemia. A romantização da maternidade, desde a gestação, contribui negativamente para que a experiência seja desgastante. Pouco se fala sobre as dores do parto, a privação de sono, a demanda de tempo, as mudanças no ritmo de vida. Tudo isso aliado ao modelo social patriarcal que posiciona as mulheres como cuidadoras únicas dos filhos gera a sobrecarga enfrentada pelas mulheres.

“Ainda hoje é esperado que mulheres mães sejam verdadeiras heroínas e deem conta de todas as demandas que possam surgir em relação aos filhos, sozinhas. Como se estas habilidades acompanhassem o feminino e fossem comprovações do quão boa tal mulher pode ser”

A pandemia com certeza agravou este sentimento para muitas mães, concorda a psicóloga. “Um outro ponto é que não podemos pensar que a experiência da quarentena seja igual para todas as mães. É possível observar uma diferenciação por classe, algumas casas conseguiram manter as babás como apoio e ofereceram alternativas de entretenimento como TV, jogos e computador. Infelizmente esta não é a realidade da maioria, já que grande parte das famílias não têm acesso às mesmas ferramentas”, ressalta.

“Gerenciar casa, filhos e vida se tornou um malabarismo com mais obstáculos que se possa imaginar”, afirma a psicóloga Natália Ferrer

Diminuir o nível de exigência em relação às funções exercidas também é uma boa via de alívio, alerta a psicóloga. Não esperar que a casa esteja impecável, que a criança seja perfeita e que o trabalho seja sempre de excelência; resgatar momentos de autocuidado, tomar um banho demorado, comer e beber algo que goste, realizar uma videochamada com amigos ou simplesmente aceitar e chorar pelo fato de estar repleta de angústias.

“Se os sintomas percebidos estão mais graves do que o esperado, é preciso buscar ajuda profissional. Hoje diversos psicólogos e psiquiatras estão realizando atendimentos online, e não é preciso permanecer sozinha diante destes desafios”, finaliza.

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