Especialistas divergem sobre influência da pandemia na abstenção durante pleito em que serão escolhidos prefeitos e vereadores, mas concordam que tema será decisivo para gestores que buscam renovar mandatos
Fábio Galão, especial para a Lume

No dia seguinte ao feriado da Independência do Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apresentou um plano de medidas sanitárias para as eleições municipais deste ano, para evitar a disseminação da covid-19 nas seções eleitorais. Entre as ações anunciadas, estão a ampliação do período de votação, que será das 7 às 17 horas (com o horário até 10 horas preferencial para eleitores com mais de 60 anos), uso obrigatório de máscara, distância mínima de um metro nas filas, entre outras.
Em razão da pandemia, o pleito já havia sido adiado de 4 e 25 de outubro (primeiro e segundo turnos) para 15 e 29 de novembro. A dúvida que fica é: a abstenção eleitoral terá um grande aumento ou as medidas implementadas pela Justiça Eleitoral serão suficientes para que os eleitores se sintam seguros para escolher prefeitos e vereadores para os próximos quatro anos?
Clodomiro José Bannwart Júnior, professor de ética e filosofia política na Universidade Estadual de Londrina (UEL), aponta que isso dependerá muito de como estará a situação da pandemia daqui a dois meses.
“As decisões em relação ao adiamento das eleições de 2020 foram tomadas com base num (cenário de possível) arrefecimento da pandemia em novembro. Contudo, já estamos em setembro e o quadro pandêmico parece se agravar em determinadas regiões e cidades. Se for avaliado como alto o risco de contaminação, poderá, sim, ocorrer novo adiamento da data fixada em determinadas cidades ou regiões. O medo de contaminação, a depender, como disse, do contexto, poderá aumentar significativamente a abstenção. A preservação da saúde provavelmente falará mais alto que o dever cívico, considerando que o ato de não votar impõe uma penalidade muito branda (multa de R$ 3,51 por turno)”, argumenta o professor.

Alexandre Guimarães Melatti, coordenador da Comissão de Direito Político e Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Londrina, também acredita que as abstenções vão variar conforme o momento da pandemia em cada município.
“Teve gente que falou em não fazer eleição esse ano. As eleições são um marco da nossa democracia, não podemos subestimar esse momento. Chegou-se ao consenso de manter a eleição esse ano, embora houvesse correntes defendendo a prorrogação de mandatos, o que seria inconstitucional. O Brasil tem mais de 5 mil municípios, eu não sei se vamos ter condições sanitárias de realizar a eleição com tranquilidade (em todos). Há municípios passando pela pior fase, então as pessoas estão com receio, mas ao mesmo tempo você vê gente indo para a praia, para locais com rio…”, afirma o advogado. “Eu não acredito que isso (a pandemia) vai afetar muito (a abstenção). As medidas (do TSE) são boas, é o que pode ser feito nesse momento. Acho que vai ter um aumento da abstenção, mas não tão grande quanto esperam.”
Melatti enfatiza que só haverá eficácia das medidas sanitárias nas seções eleitorais se houver ações de orientação, fiscalização dos órgãos municipais e estaduais de segurança pública e bom senso do eleitor, com atitudes como evitar horários que historicamente têm maior movimento, como a manhã e o início da tarde.
O advogado diz que no futuro a Justiça Eleitoral poderia adotar mecanismos de voto a distância, mas estes precisariam ser seguros e adaptados ao sistema eletrônico de votação – que, na opinião de Melatti, colocou o Brasil na vanguarda mundial dos processos eleitorais.
“O Brasil é um dos países mais avançados em relação a eleições. Muito se fala sobre a urna eletrônica, a segurança dela, mas eu não tenho dúvida de que ela é totalmente confiável, muito mais que a apuração manual, votação com cédula, como é em muitos países. Nos Estados Unidos, deu até recontagem de votos na disputa Bush contra Al Gore (em 2000): se a Suprema Corte fosse mais ativa, teria dado problema”, explica.
“O desafio do voto eletrônico, a distância ou pela internet é evitar fraude. O Brasil é um país que na história teve muita fraude eleitoral, até que as legislações foram mudando, o processo foi sendo adaptado e evoluindo com a urna eletrônica. E o Brasil é um dos países do mundo onde a eleição é organizada por um órgão do poder judiciário, em boa parte do mundo é o legislativo ou o executivo. Então, nós temos muitos avanços. No voto a distância, a preocupação seria proteger o sigilo do voto, em um país com condições muito desiguais. Como garantir que as pessoas nos rincões tenham acesso a uma votação por via digital a distância?”, complementa Melatti.
Para Rodrigo Rossi Horochovski, professor de administração pública, ciência política e desenvolvimento territorial sustentável da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a pandemia pode gerar um aumento da abstenção, mas não a ponto de mudar decisivamente os resultados.
“A abstenção é um fenômeno que vai acontecer, com a tendência de aumento em relação à eleição passada. Eu acredito que ela já aumentaria cerca de 1%, independentemente de qualquer coisa. Vamos imaginar que aumente mais 1% com essa variável da pandemia. Eleições para prefeito, para o executivo, talvez não sejam afetadas, mas é possível que afete eleições legislativas, para vereador. Porque numa eleição legislativa, especialmente em cidades menores, um ou dois votos podem fazer a diferença para um partido atingir um quociente eleitoral e você ter um melhor ou pior desempenho dentro do seu partido”, argumenta.
“Mas não seria algo estrutural, um grande movimento, não acredito nisso. Até porque os indicadores estão apontando uma redução do problema (pandemia) no país, faltam dois meses para as eleições, acredito que até lá as coisas estejam um pouco melhores. Não que estejam boas, obviamente, o país é um dos mais afetados pela pandemia”, diz Horochovski.
Pandemia e voto
No Brasil, como aconteceu em outros países, a pandemia de covid-19 foi politizada, com posições antagônicas sobre uso da cloroquina, isolamento social e restrição de atividades econômicas.
Clodomiro Bannwart destaca que as eleições para prefeito e vereador não costumam espelhar disputas nacionais (“Prioriza-se mais o caráter pragmático da gestão dos problemas e das demandas locais do que as estruturas ideológicas que marcam a disputa política no país, até porque o papel dos partidos ocupa uma posição secundária no pleito municipal: para prefeito ou vereadores, vota-se em candidatos, o partido é ator coadjuvante”, justifica), mas o pleito deste ano pode ser diferente devido à pandemia.
“Como vivemos uma eleição atípica, sem contato físico e com mediação pela internet, mesclada por fake news, pode ocorrer que a postura ideológico-política decorrente da pandemia afete o pleito municipal, sobretudo naquelas cidades em que o desencontro de comandos entre governo municipal, estadual e federal seja mais sensível à população”, expõe o professor da UEL.
Para prefeitos que buscam reeleição, as ações de enfrentamento à covid-19 que adotaram serão consideradas no momento do eleitor decidir seu voto. “O reflexo mais direto da pandemia nas eleições de 2020 é o fato de que as pessoas morrem no município. O sentimento da morte é sentido localmente. Na esfera estadual e federal, contabilizam-se números. Nas cidades, as pessoas conhecem seus mortos. O aspecto emocional manifesta-se com mais força e isso pode afetar a decidibilidade do voto, sobretudo daqueles prefeitos e vereadores que buscam a reeleição. Serão avaliados pelas decisões tomadas na proporção dos mortos sepultados”, explica Bannwart.
Rodrigo Horochovski ressalta que a crise econômica gerada pela pandemia será um fator de desequilíbrio na disputa. “O que nós vimos na dinâmica dessa crise é que, num primeiro momento, quem tomou as ações mais significativas, até mais radicais em relação à pandemia foram os governos subnacionais, ou seja, governadores e prefeitos, e eles tiveram um aumento de popularidade, enquanto o governo federal viu sua popularidade erodida. Conforme a pandemia começou a, digamos, fazer parte do cotidiano das pessoas, a ser mais ‘normalizada’, e as medidas econômicas do governo federal ganharam mais visibilidade, me parece que essa tendência foi revertida: os governos subnacionais começaram a sofrer quedas de popularidade e aumento da rejeição, enquanto o governo federal, particularmente a figura do presidente Bolsonaro, teve uma melhoria na sua aprovação”, descreve o professor da UFPR.
“O que vai afetar muito é isso, o fenômeno chamado voto econômico, pelo qual o eleitor tende a premiar aqueles governantes que considera responsáveis por uma situação de prosperidade econômica, de bem estar, e punir aqueles que considera responsáveis pelas suas dificuldades nesse campo. Me parece que esse voto, nessa eleição, será determinante, tanto quanto as questões ideológicas e outras variáveis da disputa.”
Abstenção em alta
Enquanto se projeta como a covid-19 vai influenciar na abstenção eleitoral, é importante lembrar que esta já está em alta. No segundo turno da eleição presidencial brasileira de 2018, mais de um ano antes dos primeiros registros de infecções pelo novo coronavírus na China, houve a maior abstenção desde 1998, com 21,3% do eleitorado nacional não comparecendo às urnas.
Clodomiro Bannwart acredita que esse desinteresse reflete um cansaço com a política, fenômeno que não é exclusivo do Brasil. “A estrutura econômica e a autonomização do sistema financeiro têm bloqueado a possibilidade de uma distribuição mais equitativa da riqueza produzida. A concentração de riqueza gera como consequência uma turba de despossuídos e marginalizados. E a política parece não ter encontrado força para mudar esse quadro, pelo menos no curto prazo”, relata o professor.
“E isso abre o leque para a entrada de outsiders no sistema político, inclusive depondo contra a política, com posturas autoritárias. É fundamental valorizar a política e os bons políticos como condição de possibilidade para o fortalecimento do sistema político, além, é claro, de qualificar o debate público. Política é discussão, debate aberto e qualificado para encontrar saídas aos problemas apresentados pela sociedade”, enfatiza Bannwart.
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