Especialistas apontam que inserção de itens específicos sobre compras online é maior necessidade de atualização da norma

Fábio Galão, especial para a Lume

Norma que revolucionou a relação entre quem oferece e quem compra produtos e serviços no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) completa 30 anos com o desafio de entrar na era digital. Especialistas são unânimes em apontar como principal demanda a inclusão de itens específicos sobre o e-commerce, modalidade de varejo que não existia em 11 de setembro de 1990.

Um estudo do Movimento Compre&Confie em parceria com a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm) mostrou que o faturamento do comércio online cresceu 56,8% de janeiro a agosto deste ano no Brasil na comparação com o mesmo período em 2019 e chegou a R$ 41,92 bilhões, reflexo direto da pandemia de covid-19.

Por outro lado, o Procon de São Paulo divulgou que a quantidade de reclamações que recebeu relativas a compras online feitas nos últimos cinco meses foi de aproximadamente 130 mil, superior em mais de quatro vezes ao de todo o ano de 2019, cerca de 30 mil queixas.

Juliana Moya, advogada e especialista em relações institucionais da associação de consumidores Proteste, destaca também a necessidade de normas específicas relativas ao superendividamento, que deve acelerar devido à crise econômica decorrente da pandemia. Um projeto de lei que altera o CDC e o Estatuto do Idoso para aperfeiçoar a oferta do crédito ao consumidor e estabelecer regras de prevenção e tratamento do superendividamento tramita no Congresso Nacional desde 2015. Confira a entrevista que Moya concedeu à Lume.

Concorda com a avaliação de outros especialistas de que se adaptar à era do comércio eletrônico é a principal necessidade de atualização do CDC, 30 anos depois da sua promulgação?

Com certeza, porque quando o código foi elaborado não existia essa realidade. Existem algumas disposições que tratam das compras feitas a distância, pensando nas modalidades de compra por catálogo ou por telefone que existiam na época. De lá para cá, houve legislação fora do código, legislação esparsa que prevê algumas regras específicas para o comércio online, mas ainda assim existe a necessidade das disposições do próprio código se adaptarem a essa nova realidade.

Em quais pontos o consumidor do e-commerce está mais vulnerável?

A necessidade seria de uma revisão geral, para adaptar todos os dispositivos do código para essa nova realidade. Mesmo quando a gente pensa em disposições específicas do código que se aplicam ao comércio online, como o direito de arrependimento, que a gente sempre remete atualmente para as compras feitas online, existiria a necessidade de adaptá-las para a realidade concreta desse tipo de comércio, ou seja, prever algumas regrinhas específicas: se a compra é feita por site, ou, outra discussão que é muito pertinente hoje em dia, o direito de arrependimento quanto a produtos perecíveis, refeições, pedidos que não são feitos propriamente em sites, mas por aplicativos, outras formas de prestação de serviço, como transporte compartilhado… Mesmo quando a gente pensa nessas disposições que se aplicam ao comércio online, elas são muito genéricas e precisariam de alguma adaptação. Na nossa opinião, há uma necessidade de revisão geral do código e, mesmo considerando a legislação que foi feita fora dele, talvez houvesse a necessidade de inserir um capítulo específico do comércio online, das compras feitas nesse ambiente, com disposições bastante concretas e específicas, mas também pensando que esse tipo de comércio está sujeito a mudanças todos os dias. Poucos anos atrás, os aplicativos, por exemplo, não existiam, e a gente sabe que alterar o código sempre que há uma mudança como essa é muito complicado. Então, seria mais uma questão de ver quais são as opções legislativas para inserir algumas coisas no código e outras continuarem fora.

Outra tendência crescente nos últimos 30 anos que não estava no horizonte do legislador de 1990 é o superendividamento. Como o código pode ser modificado para contemplar esse assunto?

Existe um projeto de lei em tramitação sobre essa questão do superendividamento justamente com o objetivo de inserir alguns dispositivos no código que falem da oferta de crédito e da responsabilidade das instituições financeiras contra o superendividamento do consumidor. É um projeto que tem apoio da Proteste e estamos fazendo o possível para que seja aprovado o quanto antes. É um projeto muito importante, principalmente levando em conta o contexto da pandemia, muitos consumidores vão sair endividados ao final desse período.

A judicialização nas relações de consumo também é um desafio?

A gente sabe que em decorrência do código surgiu todo um sistema de proteção ao consumidor, composto pelos Procons, pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), por organizações da sociedade civil como a Proteste, então o consumidor conta hoje com um sistema para evitar que ele dê esse passo de ingressar com a ação judicial. É uma prévia a essa fase. Felizmente, esse sistema tem se intensificado e se fortalecido com o passar dos anos, a Senacon tem feito um trabalho importantíssimo nesse sentido e de dois anos para cá houve um aumento significativo das situações resolvidas extrajudicialmente. Existe a necessidade de medidas políticas, como essas que estão sendo adotadas, e talvez também de algumas outras opções legislativas para tentar conter um pouco esse número elevado de ações judiciais, mas essencialmente eu diria que o foco seria essas medidas políticas que já têm sido adotadas, felizmente.

O Procon-SP divulgou que, desde o início da pandemia de covid-19, já recebeu um número de queixas relativas a compras online superior em mais de quatro vezes a 2019 inteiro. Essa situação extrema é reflexo de um momento excepcional, demonstra falhas do CDC ou as duas coisas?

Há vários fatores. Com certeza isso se deve ao aumento das compras online, mas a gente sabe que muitas empresas tiveram que se adaptar rapidamente a esse ambiente, elas não estavam habituadas ou não tinham um volume significativo de operações feitas online e acabaram se adaptando de forma muito rápida, sem uma resposta muito positiva para o consumidor. Então, aconteceu em muitas situações, empresas que não tinham um apoio necessário para o consumidor de acordo com a legislação. Como eu falei, embora o código não preveja disposições específicas somente para o comércio online, existem outras leis que amparam o consumidor e as disposições do código que são aplicadas por analogia. Então, esse aumento do número de reclamações reflete mais essa mudança nas relações de consumo durante a pandemia e a falta de adaptação de algumas empresas para dar respostas aos problemas que eventualmente foram surgindo.

No geral, que balanço faz desses 30 anos do CDC?

Sem dúvida, é um marco para a legislação brasileira, um marco para o consumidor. Antes do código, direitos a que estamos tão habituados e que não viveríamos sem hoje em dia não eram garantidos, como a informação dos produtos nos rótulos, lista de ingredientes, presença de substâncias que possam causar alergia, data de validade, enfim, informações que são básicas para a gente hoje no dia a dia não eram garantidas para o consumidor daquela época. Isso é só para dar um pequeno exemplo da importância do código, fora todos os outros direitos que foram instituídos além do direito à informação: liberdade de escolha, toda a regulamentação do pós-venda, quais são os direitos do consumidor no que se refere à garantia dos produtos, proteção contra acidentes de consumo, proteção à saúde… Não dá para negar que é um marco. Existe a necessidade de atualização, mas isso, como eu falei, sempre vai existir, as relações sociais mudam de forma muito rápida e a legislação dificilmente acompanha. Passados esses 30 anos, existe essa necessidade de rever as disposições do código, mas é uma legislação com certeza muito importante para a nossa sociedade.

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