Atendimento humanizado e valorização da cultura periférica quebram paradigmas e fazem de Londrina referência no acolhimento a adolescentes em conflito com a lei

Cecília França

Foto em destaque: perfil Falando sobre Socioeducação no Instagram

Eu via esse lugar aqui como cadeia, não de educação. Hoje, como tô tendo várias atividades, já enxergo esse lugar como um projeto pra te ajudar a ser alguém na vida”. A frase dita por um adolescente em cumprimento de medida socioeducativa em Londrina resume bem o pensamento de parte da sociedade sobre o sistema e o que ele realmente é: uma possibilidade de resgate de adolescentes por meio da educação. Nos últimos anos, profissionais e autoridades judiciárias de Londrina tem se dedicado a resgatar a essência da socioeducação e, por consequência, vem ressignificando a vivência de adolescentes em conflito com a lei. Os trabalhos fazem da cidade referência para o Estado no atendimento socioeducativo (leia mais abaixo).

Hoje, a leitura e a música fazem parte do cotidiano dos internos do Centro de Socioeducação 2, a ponta do sistema. É permitido o “bom dia” entre adolescentes e funcionários. Mudanças de paradigma que começaram a ser quebradas há cinco anos, quando a juíza da 2ª Vara da Infância e Juventude de Londrina, Cláudia Catafesta, idealizou o projeto Falando sobre Socioeducação. Como o próprio nome diz, o objetivo foi incentivar diálogos entre servidores de toda a cadeia socioeducativa e representantes do Judiciário. Agora, durante a pandemia, o projeto se tornou um perfil no Instagram, alimentado pela magistrada e pela psicóloga Aline Fioravante.

“A gente usa a metodologia das rodas de conversa para poder dialogar. A socioeducação é uma área que poucos falam, poucos entendem e tem muito achismo. Socioeducação é tratar o adolescente não como um criminoso, um bandido, apesar dele ter cometido uma ação grave, mas como uma pessoa em situação peculiar de desenvolvimento, como diz o ECA (Estatuto da  Criança e do Adolescente)”. Fazer isso não é “passar a mão na cabeça”, ressalta a juíza, trata-se de promover a responsabilização.

“Socioeducação não é sistema penal juvenil”

Juíza Cláudia Catafesta

Pelo contrário, a internação deve ser excepcional, a última medida quando nada mais funcionou. Antes disso, o sistema socioeducativo inclui várias outras possibilidades, como a prestação de serviços comunitários, a liberdade assistida (geridas pelo município por meio do CREAS 2) e a semiliberdade, cumprida no Cense 1, administrado pelo Estado assim como o Cense 2. Todas as medidas são associadas ao fortalecimento das famílias, do vínculo com a escola, da conscientização sobre a nocividade do uso de drogas. Em casos graves, aí sim, o adolescente segue para o Cense 2, a parte mais visível para a sociedade.

Quem olha a construção a associa diretamente com uma penitenciária – assim como o adolescente na frase que abre essa reportagem. Mas a convivência no espaço interno tem sido mais leve e produtiva. Hoje, os adolescentes têm acesso contínuo a livros, participam regularmente de um clube de leitura e até o RAP (manifestação musical preferida dos internos) entrou na unidade – barreiras superadas, contam os servidores, com muito empenho.

“Para que essas atividades possam acontecer é uma luta, porque entre nós também existem aqueles que não acreditam na socioeducação”, declara Amarildo de Paula Pereira, diretor do Cense 2.

Fachada do Cense 2. Foto: Reprodução Gazeta do Povo

Pandemia como catalisador

Pereira assumiu a direção da unidade no início deste ano. Logo veio a pandemia e a substituição das visitas presenciais por virtuais. A reação dos adolescentes preocupava os gestores e o momento acabou acelerando a implantação de projetos que estavam sendo gestados, como o Se Liga RAPaz.

Trazer o RAP para dentro da unidade com segurança era um dos anseios da assistente social Andressa Cândido no objetivo de dialogar com a realidade dos adolescentes. O primeiro encontro aconteceu no ano passado, com a presença de Leandro Palmerah, do grupo Família IML, de Londrina. Agora, já durante a pandemia, ocorreu o segundo encontro, virtual, com o rapper gospel Thiagão e a participação, inclusive, de comandantes da Polícia Militar.

“Ano passado a gente conseguiu um parceiro (Palmerah) e fizemos uma roda de conversa. A gente conseguiu colocar o RAP dentro da unidade sem os meninos tomarem medidas disciplinares, sem a gente ser acusado de estar fazendo apologia ao crime. Os meninos hoje estão cantando, o Cense 2 hoje é um RAP”, diz a servidora.

“Tem adolescentes compondo. Alguns já compuseram mais de 10 RAPs”, conta Pereira. Ambos ressaltam que problemas existem – não é um “mundo cor-de-rosa”, diz Andressa – mas a unidade vive um momento potente de parcerias importantes para a conexão com os socioeducandos.

“Se a gente não conseguir falar a linguagem da periferia, nós não vamos nos conectar com eles.”

Amarildo Pereira

A voz dos ‘meninos’

No dia 9 de setembro, dois adolescentes em cumprimento de medida no Cense 2 participaram de uma transmissão ao vivo promovida pelo Tribunal de Justiça, sem serem identificados. Na oportunidade pudemos fazer duas perguntas a eles: Vocês tinham contato com a literatura antes da entrada no Cense? Vocês já entendiam o RAP como arte? Leia as respostas abaixo.

Adolescente 1: A literatura eu comecei dentro do Cense 1, que fui me apegando mais por livros por causa dos Jogos Vorazes. Agora o RAP, já faz parte de mim já, desde criança eu escuto, conta quase que a minha história de vida. Eu via ele mais como uma história verdadeira, que era contada, passada, pra você aprender o que que a vida vai fazer com você se seguir aquele caminho.

Adolescente 2: Quando eu tava na rua nunca fui de ler livro, nunca tive interesse, agora comecei a ler e gostei. O RAP, pra mim, quando eu escutava na rua, era mais porque eu curtia, gostava da letra, achava da hora. Agora já enxerguei também de outra forma, que o RAP é como a pessoa se expressa, mostra a realidade do que acontece no Brasi. O RAP, o hip hop, o grafite, é tudo forma das pessoas se expressar, das pessoas que foram caladas. E fui ver isso só agora, via o RAP, achava da hora, mas não entendia o verdadeiro lado dela.

Valorização do periférico

Possibilitar a apreciação do RAP dentro do Cense 2 faz parte do esforço de ressignificar a cultura da periferia, origem da maioria dos internos. De maneira geral, os adolescentes em cumprimento de medida vivem em locais periféricos e em famílias chefiadas pelas mães. A maioria tem baixa escolaridade e deseja uma inclusão financeira que acaba sendo viabilizada pelo tráfico. Estas são as principais características identificadas por Amarildo Pereira.

“A gente fala muito de inclusão social, inclusão de trabalho, mas o que pega mesmo é essa inclusão no mercado de compra, o menino ter condições de comprar aquilo que ele deseja, e o tráfico traz muito essa questão”. Pereira fala um pouco sobre o perfil das famílias dos adolescentes.

“A mãe trabalha o dia todo, tem vários irmãos e eles precisam desde cedo dar um rumo na vida. A escola não é um atrativo. Hoje, a escola coloca para fora essa população. Então, enquanto a educação não ocupar o espaço de inclusão que ela tem que ocupar na sociedade essa roda vai continuar girando: meninos ansiando por inclusão financeira, o tráfico oferecendo, e eles circulando aqui no sistema socioeducativo”, acredita.

Atividade sobre o Setembro Amarelo no Cense 2. Foto: Instagram Falando sobre Socioeducação

“É um super desafio quebrar esses muros. No projeto de leitura a professora desvinculou de alguma cobrança ou avaliação, daí nasceu o projeto Adote um Livro. Foi preciso quebrar a barreira de não levar o livro para o alojamento. Hoje tem uma biblioteca dentro do Cense 2, coisa mais linda”, comemora a juíza Cláudia Catafesta.

Todos esses projetos parecem impactar positivamente no sistema como um todo – e, porque não dizer, na sociedade em geral. Não há estatísticas, mas os envolvidos notam uma diminuição nas reincidências. “Quando cheguei (há oito anos) lembro dos meninos com 10, 12 folhas de antecedentes. Hoje quando chega um que já passou a gente até estranha. Mas isso é empírico, não temos esses dados”, diz a juíza.

Cláudia Catafesta, Andressa Cândido e Amarildo Pereira em entrevista remota à Lume

Promotor defende construção de novas unidades

Na última sexta-feira (25), o promotor de justiça Marcelo Briso Machado chegou ao Cense 2 com um exemplar de Crime e Castigo, do russo Fiódor Dostoiévski, a tiracolo. “Porque o menino do colégio caro lê e o menino pobre tem que ficar só problematizando, lendo best seller de aeroporto? O filho do pobre, do trabalhador, tem direito de ler Cervantes”, disse ele à Lume. Depois de sete anos à frente da 27ª Promotoria de Justiça, Machado também enxerga melhorias no trabalho socioeducativo desenvolvido em Londrina, mas aponta necessidades. Um dos principais pontos defendidos por Machado é a necessidade de novas instalações para o Cense 2 e a capacitação dos internos para o mercado de trabalho. “Precisa ter uma nova unidade do Cense 2, precisa sair do lado da penitenciária. Uma unidade que contemple um liceu de ofícios”, explica ele, que também defende a construção de uma unidade socioeducativa feminina em Londrina, apesar de o público feminino representar apenas 15% do movimento. “A unidade seria para a macro região Norte. Poderia ser mista (fechado e semiliberdade). Hoje se uma menina pega uma pena definitiva (de três anos) ela teria que ir para Curitiba. Muitas acabam ficando aqui a pedido da família”, defende. As que ficam, alojam-se em um espaço específico dentro do Cense 1, masculino.

A base estatística sobre a área infracional juvenil é outra carência apontada por Machado. Seria um trabalho importante para entender, por exemplo, a associação existente entre evasão escolar e uso de drogas. Um estudo poderia revelar qual das situações acarreta a outra. Durante a pandemia, mesmo sem números sólidos, Machado observou uma grande redução grande no número de assaltos praticados por adolescentes e um aumento nos delitos relacionados ao tráfico.

“Londrina é exemplo para todas as nossas ações”

O Paraná tem 28 unidades socioeducativas, entre Censes e casas de semiliberdade, e Londrina é referência para o desenvolvimento das ações estaduais, afirma David Antonio Pancotti, diretor do Departamento de Atendimento Socioeducativio (Dease) da Secretaria de Estado da Justiça, Família e Trabalho (Sejuf). “O que a gente quer é espraiar isso para todo o Estado. O ‘Se Liga RAPaz’ estamos trabalhando para fazer um concurso interno para todas as unidades e o mais importante é que estamos sendo apoiados pelo Poder Judiciário de Londrina”, declara.

Pancotti diz que as unidades que compõem o sistema têm foco na formação de cidadãos. “Temos dentro dos centros toda uma questão de educação, de capacitação, de qualificação. Avaliamos que quase 57% desses adolescentes não frequentaram muito os bancos escolares. Todas as políticas públicas que falecem veem para uma UTI, que é o nosso sistema. Nosso papel efetivo é o que tem sido colocado aí (em Londrina): é uma questão humanitária”, diz Pancotti.

Desde o início da pandemia o Estado estabeleceu um protocolo de contenção para as unidades, que incluiu a capacitação dos servidores, a redução da capacidade das unidades em 30% e o andamento das atividades seguindo as recomendações de distanciamento social. Apenas oito adolescentes foram diagnosticados com Covid-19, manifestada de forma leve ou assintomática.

“Conseguimos manter uma segurança nos nossos Censes e dar andamento quase normal às nossas atividades do dia a dia. Isso evitou, inclusive, situações que poderíamos ter pela falta das visitas familiares presenciais”, acredita Pancotti. De acordo com o diretor, estão em fase de planejamento projetos pensados para a reinserção dos egressos no mercado de trabalho.

3 respostas para “O resgate pela socioeducação”

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