Instituto Vladimir Herzog enviou informes sobre esvaziamento da investigação de crimes da ditadura, celebração do regime militar e interpretação da Lei de Anistia que tem gerado impunidade

Fábio Galão, especial para a Lume

Durante a 45ª Sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada virtualmente entre 14 de setembro e a última terça-feira (6), o Instituto Vladimir Herzog (IVH), de São Paulo, enviou informes para contribuir com o Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários e a Relatoria sobre Justiça, Verdade, Reparação e Garantias de Não Repetição do organismo multilateral.

Monumento no cemitério de Perus, em São Paulo, onde foram encontradas mais de mil ossadas em vala clandestina Foto: Prefeitura de São Paulo/Divulgação

Segundo Lucas Paolo Vilalta, coordenador da área de Memória, Verdade e Justiça do IVH, o envio desses informes deu continuidade à tradição do instituto de apresentar relatórios à ONU e alguns dos pontos principais destas contribuições foram: alertar sobre o esvaziamento do trabalho do Estado brasileiro de investigação dos crimes cometidos durante a ditadura militar; a celebração dos anos de chumbo promovida pelo atual governo federal; e a utilização da Lei de Anistia como desculpa para descumprimento de condenações internacionais que determinaram responsabilização pelas mortes na guerrilha do Araguaia e do jornalista Vladimir Herzog e para impedir abertura de processos judiciais, numa “interpretação absolutamente incompatível com o próprio texto da Lei de Anistia”, de acordo com Vilalta.

Em entrevista à Lume, o coordenador destacou que os desaparecimentos forçados continuam acontecendo no Brasil e falou da reivindicação para que haja tipificação desse crime no Código Penal, para basear investigações, processos e políticas públicas e diferenciar essa situação de outros tipos de desaparecimento, o voluntário e o involuntário de pessoas que desaparecem por problemas como o mal de Alzheimer, quando a pessoa sai de casa e não consegue encontrar o caminho de volta. Confira a entrevista:

Quais foram os principais assuntos que o IVH mencionou nessas colaborações ao CDH da ONU?

O trabalho sobre desaparecimentos forçados durante a ditadura estava bastante focado no trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Essa comissão, desde o momento em que o (ex-presidente Michel) Temer assumiu (2016) e agora com o presidente Jair Bolsonaro, vem tendo uma redução dos seus recursos, atuando na contramão da garantia de não revitimização das pessoas e interrompendo seus trabalhos.

Há dois grupos principais de trabalho, o Grupo de Trabalho Araguaia, que antes de 2016 tinha feito algumas inspeções e escavações para tentar encontrar as ossadas e poder fazer a identificação das pessoas assassinadas e desaparecidas no Araguaia, e o Grupo de Trabalho Perus, que trabalha com as 1.049 ossadas encontradas na vala de Perus, em São Paulo, junto com uma equipe do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf, da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp).

Esse trabalho tem sido muito atacado desde que se trocou a presidente da comissão, a Eugênia Gonzaga. A gente questionou inclusive a legitimidade desse gesto, porque foi autocrático, direto, geralmente a retirada e a nomeação de um presidente para a comissão eram feitas com participação dos órgãos que a compõem. Informamos tudo isso e solicitamos a continuidade do pedido de visita urgente que o grupo de trabalho já tinha feito e que aguarda resposta desde o primeiro semestre.

Com relação à Relatoria sobre Justiça, Verdade, Reparação e Garantias de Não Repetição, basicamente informamos como o governo, na contramão das obrigações que o Estado brasileiro tem por acordos internacionais e pela sua própria Constituição, tem feito coisas absolutamente contrárias à democracia, como continuar celebrando o golpe militar, a ditadura, esse ano o presidente Bolsonaro recebeu e saudou como herói o major Curió, que confessou crimes no Araguaia.

Também informamos sobre duas pesquisas que temos feito em parceria com o jornalista Eduardo Reina, a respeito de um documento do Centro de Informações da Aeronáutica sobre como foram monitoradas 25 mil pessoas em 1972 e também o que foi relatado no livro “Cativeiro sem Fim”, que conta o caso de 19 crianças sequestradas durante a ditadura; há mais 35 casos que estão sendo investigados. A última coisa que a gente informou foi que o Brasil precisa urgentemente acabar com a aplicação que tem sido feita da Lei de Anistia para impedir qualquer processo na Justiça por crimes como tortura, assassinato, ocultação de cadáver e desaparecimento.

Falamos para a ONU que é preciso acompanhar e exigir um posicionamento do Estado brasileiro, que tem a obrigação, ao fazer parte de acordos internacionais e da Organização dos Estados Americanos (OEA), de cumprir as condenações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e um dos aspectos fundamentais é não permitir mais que a Lei de Anistia seja aplicada de maneira a garantir impunidade para torturadores, que é o que tem acontecido.

Além de celebrar a ditadura, esse governo manifesta desprezo por organismos multilaterais, como a própria ONU. O que a ONU pode fazer além de cobrar? É uma questão da imagem do país ficar manchada?

Basicamente, na configuração atual, tem a ver com a imagem do país poder ficar manchada internacionalmente, como já tem ficado cada vez mais, por conta não só desse tipo de coisa estarrecedora, mas principalmente pela maneira como tem sido tratada a questão socioambiental. Como um órgão multilateral, que reúne vários países, a ONU tem essa função de promover em relações diplomáticas um arranjo que possa impedir que países tenham decisões, ações e legislações que funcionem de forma contrária aos direitos humanos, ao que se entende como práticas que garantam direito à vida, à liberdade de expressão, aos princípios, valores e direitos que reconhecemos como fundamentais e que mantêm o trabalho da ONU.

Basicamente, o que a Organização das Nações Unidas pode fazer é manifestar repúdio, pedir visitas, esclarecimentos, se manifestar contrariamente, pedir para resolver, um organismo multilateral tem a possibilidade de intervir dessa maneira. Mas é importante apontar que a ONU, enquanto organização que congrega todos os países, não tem respondido adequadamente a uma série de violações à democracia e aos direitos humanos em várias partes do mundo. Não só no Brasil, como a gente está vendo nesse governo.

O IVH destaca que o desaparecimento forçado continua acontecendo desde a redemocratização e cobra sua tipificação penal, proposta que está parada no Congresso Nacional. Qual seria a importância dessa medida?

Quando o Brasil assinou o acordo para o enfrentamento ao desaparecimento forçado, o governo se viu obrigado a enviar relatórios a cada dois anos sobre o que o país tem feito para lidar com a questão. O governo brasileiro enviou com atraso um primeiro relatório, no ano passado, e a ONU abriu um espaço público para consulta sobre esse relatório em janeiro. Nós do IVH fizemos um documento nos posicionando contra algumas coisas que esse documento trazia, como políticas de Estado que entendemos como incompatíveis com as obrigações que o Estado deve ter. Numa delas, (o governo) se pronunciou contrariamente à revisão da Lei de Anistia, e também apontou que não seria necessária essa tipificação. Quando você tem tipificação legal, você dá para o sistema judiciário uma maneira de se posicionar juridicamente, que penas, que tipo de condenações (aplicar), inclusive como essa tipificação se relaciona com os tratados dos quais o Brasil é signatário. Além disso, cria normativas que orientam o poder público na construção de políticas públicas.

Temos uma situação muito grave no país, o Rio de Janeiro é exemplar no mau sentido nesse aspecto, que são as execuções extrajudiciais e os desaparecimentos forçados que continuam acontecendo por ação de agentes do Estado ou de milícias. É um problema que precisa ser caracterizado em lei para que a gente tenha os mecanismos para enfrentar isso.

A repressão a indígenas durante a ditadura é pouco falada, e atualmente ganha evidência a forma como eles são atacados, com o presidente inclusive os responsabilizando pelas queimadas na Amazônia. Esse assunto é acompanhado pelo IVH?

A gente entende que tem uma série de organizações que fazem um trabalho extremamente competente, como o Armazém Memória, o próprio Ministério Público, por exemplo, o procurador Júlio Araújo tem estado muito à frente dessas causas, tem conseguido muitos ganhos articulado com os povos indígenas nas questões de condenações por assassinatos e desaparecimentos, reparações dos povos, conquistas, reconhecimento de reservas. Tentamos periodicamente atualizar o nosso site, o portal Memórias da Ditadura (memoriasdaditadura.org.br), contando histórias pouco conhecidas de populações e pessoas que foram afetadas pela ditadura.

Por exemplo, uma recente que publicamos foi sobre como a ditadura removeu forçosamente de suas casas mais de 200 mil pessoas no Rio de Janeiro, Distrito Federal e em Belo Horizonte. Outra: tem gente que fala “ditabranda”, um discurso super estranho, porque a gente teria registrado apenas 434 mortos e desaparecidos políticos, mas o próprio relatório da Comissão Nacional da Verdade, que só deu conta de estudar dez das mais de 300 etnias que existem no Brasil, reconheceu mais de 8.350 indígenas assassinados. Isso só em dez etnias. Então, existe um trabalho muito competente de várias organizações mostrando que esse número é muito maior, que a violência que a ditadura teve em relação aos indígenas e que de alguma maneira é uma violência continuada no período democrático e absolutamente intensificada no governo atual, é uma coisa que precisamos cada vez mais esclarecer, denunciar e tomar medidas. Entendemos que tem uma série de organizações e mecanismos cumprindo essa função muito bem, e tentamos de alguma maneira dar conta de comunicar e disseminar para o público.

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