José Soriani, filmado sendo expulso com água da frente de um restaurante em Londrina, conta sua história à Lume

Cecília França

José Soriani nos recebeu de forma simpática na mesma calçada em que foi gravado sendo expulso com água da porta de um restaurante em Londrina. Ele não viu o vídeo que tanta reação social causou, contra e a favor da ação do comerciante. “Fiquei sabendo pelo pessoal”, diz, sem pedir para assistir. Parecia bem menos debilitado que na gravação. Os olhos avermelhados estavam vivos, a barba por fazer o incomodava. Faz uma referência rápida ao mau cheiro, teme que nos incomode, mas não reclama. “Eu tô bem, tô sossegado. Tranquilo e elegante”, fala com bom humor.

Seo José gosta daquela parte da cidade, está sempre por ali. Na última quinta-feira dividia o espaço e o ‘corote’ com dois amigos, ironicamente bem embaixo de uma pichação onde se lia “Igualdade?”, assim mesmo, como pergunta. Nascido em Ibiporã em 1963, José veio para Londrina com os pais, ainda criança. “Eu vim trabalhar aqui. Eu tava criança, fui engraxate, fui tudo na minha vida”, conta. Tudo inclui o que parece ter sido seu sonho: jogar futebol. A oportunidade surgiu na cidade de Ribeirão Preto, estado de São Paulo.

“Fui embora pra Ribeirão Preto, trabalhei no Ceasa lá de descarregar caminhão. Aí numa oportunidade que eu tive eu fui jogar bola. Eu joguei no Comercial, estadia muito boa. Depois me chamaram pro Botafogo de Ribeirão Preto, por onde meu amigo, doutor Sócrates, passou”, conta, referindo-se ao ex-jogador, ídolo na cidade paulista, falecido em 2011. As datas se confundem, mas seu José já era pai quando foi para Ribeirão.
“Já tinha meu Filipe Augusto, que hoje é jogador na Europa, e tinha minha menina, morreu com 5 meses e meio”.

As lágrimas vêm aos olhos do pai. “Eu tenho raiva”, continua. “Minha coisa linda…Ela ia ser uma princesa. Ela podia ser o que for, ela ia casar. Ia ser bonita demais. Ia casar, ia ser feliz também”. Pensar em como seria a filha parece fazer parte dos dias do pai.

“Isso foi um divisor de águas na vida dele”, diz Jaques Moreno, amigo que acompanhava seo José. Quando pergunto porque ele está na rua, a resposta vem com gracejo e mais uma referência futebolística. “Faz parte do show, né. O Garrincha não morreu na sarjeta? Conheceu o doutor Mané Garrincha?”, pergunta.

Adora também falar de sua história no futebol. “Jogava na meia esquerda, vai armando para o ponteiro, armando para o centro-avante, vai jogando no meio ali”. Pergunto se o filho joga na mesma posição. “Tudo puxou pra mim, é o meu Filipe Augusto”. Embarga a voz e manda um recado: “Se ele quiser saber de mim eu estou bem, estou ótimo. Tanto ele joga com a direita, com a esquerda, o pai joga também”, fala, usando do amado futebol como metáfora.

“Eu vivo uma semana, duas (na rua), depois saio fora, eu tenho a casa dos meus amigos. Mas eu não gosto de ficar, não gosto de ajuda de ninguém, abrigo também não gosto”, diz. Pergunto por que: “Ah, muita gente, fica todo mundo reclamando”. As regras não o incomodam tanto; ter que dividir o espaço, sim. “Não quero, eu gosto de ficar na minha liberdade. Eu adoro a minha liberdade”, conclui.

Os tempos como jogador deixaram memórias profundas e, também, seu único vício: o álcool. “O vício é o alcool, nem cigarro nem nada. Comecei a beber depois que fui pra Ribeirão Preto, eu e meu amigo doutor Sócrates, na Praça XV”.

Seo José se recusa a ter autopiedade. Diz não sofrer violência porque “sai no boxe”. “Não tenho medo de ninguém não”. Para quem classifica as pessoas em situação de rua como “vagabundos”, resigna-se: “Faz parte da vida da gente. Eu vivo na rua, mas não quero mal pra ninguém”. Pergunto se tem fé em algo. “Eu tenho fé em Deus, meu amor é Deus, é o ar que a gente respira”.

Cansado de responder perguntas, deixa que eu tire fotos a contragosto. “Não gosto dessas coisas”. Em seguida, seo José se deita na calçada e é irresistível o registro de seu corpo cansado deitado bem abaixo da pichação. Afinal, onde está a igualdade?

PS: O sr. José Soriani faleceu no dia 7 de novembro, 28 dias após nossa entrevista, de causas naturais.

5 respostas para “O ser humano por trás da agressão”

  1. Oi, desculpe, não consegui achar a entrevista com o dono do restaurante. Afinal, onde está a igualdade?

    1. Olá, Rogério, obrigada pela visita. Na primeira matéria sobre o caso está a palavra do sr. Salam sobre o caso. Colaremos o link abaixo.

  2. Bom dia, gostaria muito de ler a entrevista do dono do restaurante que paga impostos, gera emprego, e reza para que não haja outra quarentena e seu ganha pão não feche, também gostaria de saber porque os piedosos não convidaram esse senhor pra ir morar com eles, afinal e fácil olhar somente uma situação, e apedrejar.

    1. Bom dia, Emmerson. Obrigada pela visita.
      Fomos o primeiro veículo de imprensa a procurar o sr. Salam, antes de divulgarmos o vídeo, porque entendíamos que ele precisava ser ouvido. Depois ele se pronunciou em outros veículos e também usou de suas redes próprias para veicular um vídeo de esclarecimento (que nós também compartilhamos).
      O único “sem voz” na história era o sr. José. É não apenas nesta situação. A população de rua é altamente invisibilizada e isso nos mostra o quanto ainda temos que avançar para superarmos nossa desigualdade social.

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