Nem a paralisia, que afeta sua coordenação motora, impede o contista Vinícius Fonseca de carregar sua poesia até as pessoas que ele deseja emocionar

Por Mariana Guerin

Ser diferente é normal. Esse é o lema de vida do jornalista e gestor de recursos humanos sorocabano Vinícius Rodrigues da Fonseca, 32 anos. Convivendo com uma paralisia desde o nascimento, ele não deixa as dificuldades limitarem seus sonhos e só durante a pandemia lançou três livros. Um deles é uma coletânea de contos que tem o lucro das vendas revertido para o Fundo de Combate ao Coronavírus e também para a ong Médicos Sem Fronteiras. “Sou apenas mais um humano na fila dos sonhos lutando para que os seus possam ser realizados”, declara.

“A minha rotina é bem comum, apesar da deficiência. Em razão da pandemia, estou trabalhando em casa e deixei de frequentar a fisioterapia. Talvez essa tenha sido a grande mudança no meu dia a dia”, diz o jornalista, bastante habituado ao problema adquirido no processo de parto. 

“Eu tive hipóxia neonatal, falta de oxigenação do cérebro durante o parto. Devido à demora no atendimento, sou prematuro e minha mãe não recebeu o socorro adequado. A falta de oxigenação afetou a coordenação motora, limitando os meus movimentos, principalmente de membros inferiores. Devido a isso, hoje ando com certa dificuldade, marcha claudicante”, explica. “A limitação de movimentos não me impede de fazer as coisas, mas também não me arrisco em atividades que eu sei que exigirão muito condicionamento físico”, completa.

Vinícius morou em Sorocaba até os quatro anos, quando a família se transferiu para Ribeirão do Pinhal, Norte Pioneiro do Paraná, onde ele viveu a maior parte da infância, ao lado dos pais e da irmã mais nova. “Hoje todos moramos em Londrina. Viemos para estudar: eu para fazer a faculdade e minha irmã para terminar o ensino médio. E acabamos ficando.”

“Minha família sempre esteve presente em todo o meu desenvolvimento. Minha infância foi frequentar fisioterapia, escola e fazer as coisas que as crianças fazem normalmente, sempre respeitando as minhas limitações físicas”, recorda.

Já a adolescência mostrou-se um período de desafios para o garoto inteligente que convivia com limitações físicas. “Adolescente não tem muito filtro e acaba ultrapassando limites quanto a respeitar as limitações dos outros. Na escola, sofri muito bullying”, confessa o jornalista, que apesar disso sempre saiu com amigos e namorou.

Ele destaca que também sempre foi bom aluno. “A minha parte cognitiva não foi afetada, pelo contrário, costuma compensar bem a limitação física. Isso me deu muita facilidade para aprender e acabei focando bastante em desenvolver essa qualidade.”

Essa inteligência o levou a tentar construir uma autoestima desvinculada da imagem de uma pessoa com deficiência. “Não gostava de falar sobre o tema, evitava que as pessoas focassem nisso, queria mostrar, provar, na verdade, que eu era um cara ‘normal’”, relembra. Aos 17 anos, ele chegou a negar a oportunidade de encabeçar um projeto de inclusão da pessoa com deficiência na faculdade. “Expliquei para a professora que os meus motivos eram ligados à tentativa de parecer o mais normal possível e que estar naquele projeto não faria bem para essa imagem que eu queria passar.” 

Segundo Vinícius, a professora compreendeu sua escolha, mas disse que torcia para que ele repensasse seus objetivos. “Nós nunca mais conversamos depois daquilo e eu acabei não entrando no projeto, mas aquela conversa mudou a minha vida.”

“Hoje, quando tento uma vaga de emprego ou participo de projetos que sei que terão repercussão, faço questão de me identificar como pessoa com deficiência. Tenho plena consciência de que meu bom desempenho abre, ainda que indiretamente, portas para que outros PCDs possam mostrar toda a sua capacidade de contribuição à sociedade”, avalia. 

“No fim, tenhamos ou não deficiência, todos queremos nos sentir úteis e devolver às pessoas o que de melhor podemos oferecer. Meu papel é fazer com que lembrem que nós com deficiência podemos contribuir, seja no trabalho, na faculdade, projetos sociais ou qualquer outra atividade”, ensina Vinícius, que é sempre bem humorado e conversador.

“Sempre que possível estou ouvindo música. Cheguei a fazer aula, tive uma banda de garagem, mas não toco bem. A falta de coordenação motora é gritante, mas nunca deixei que me impedisse de arriscar a fazer coisas que não colocassem em risco minha integridade física”, confessa o jornalista, que também gosta de cinema, “um bom livro e bater um papo com amigos”.

Com duas graduações, duas especializações e buscando uma vaga no mestrado, Vinícius se lembra quanto foi difícil cursar o ensino regular. “Quando entrei no primário, nos anos 90, minha mãe precisou lutar para que eu estudasse com os alunos regulares. Inicialmente, a coordenação pedagógica do colégio queria me colocar numa sala para alunos especiais. Minha mãe brigou para que isso não ocorresse, alegava que embora eu tivesse limitações físicas, a parte cognitiva era perfeita. Então acabei fazendo o ensino regular mesmo. Hoje, ter superado o que um dia já foi uma desconfiança é um sonho realizado”, comemora.

No ano passado, ele retomou seu prazer pela escrita e poesia. “Também escrevo contos. Tornar-me um escritor capaz de viver de sua produção é sem dúvida um sonho a realizar. Ambicioso, mas estou correndo atrás”, brinca. 

A escrita está presente em sua rotina desde o quarto ano primário: “A professora deu uma tirinha com três quadrinhos e pediu que tentássemos fazer uma redação de 15 a 20 linhas e enquanto a maioria dos alunos sofreu para colocar algo no papel, a minha deu mais de duas páginas. Sempre fui muito criativo, algo quase inato”.

“A professora, ao ver aquilo, procurou minha mãe, que é pedagoga de formação e orientou sobre incentivar minha escrita. Ela comprou um caderninho e me deu de presente para que eu criasse as minhas próprias histórias”, completa.

Já a poesia surgiu por meio da trova. “Sempre tive um olhar contemplativo sobre a vida e as coisas que nos cercam, sou bem observador. Por vezes me perco nos pensamentos e não demora muito para uma ideia aparecer. Aí sinto necessidade de colocar no papel e pensar em versos sempre foi uma maneira de fazer isso.” 

“A banda que nunca saiu da garagem, por exemplo, tem um monte de músicas que ninguém nunca ouviu. Alguns cadernos aqui tem uns rabiscos e o computador também tem uns arquivos soltos de meros devaneios poéticos e literários”, cita. 

Ele lembra quando uma amiga da mãe dele, trovadora veterana, ficou sabendo que ele gostava de escrever. “Ela me falou de concursos de trovas e me ensinou a técnica. Eu tinha dez anos quando ela me ajudou a fazer meus primeiros versos e fiquei em segundo lugar no concurso. Na época, eles nem tinham premiação adequada para uma criança, pois esperavam que só adultos competissem”, recorda. 

De participante de projetos de redação na escola, a integrante do coletivo de contistas chamado Contopéia, o jornalista administra uma página de poesias no Instagram chamada @estrofes_livres desde maio de 2019. “Tanto a trova quanto os contos eram desejos adormecidos. Eu não fazia uma trova desde o campeonato dos meus dez anos. Ano passado, quis retomar a escrita poética e recordei das trovas, mas lembrava que havia uma técnica para escrever, regras de contagem das sílabas poéticas e não quis me prender muito a isso, pois não lembrava com exatidão as normas, por isso o perfil chama estrofes livres”, explica. 

“Com o tempo, voltei a estudar as normativas e fui aprimorando. Hoje o perfil tem predominantemente trovas, principalmente trova clássica. Nas trovas clássicas, os versos devem ser sete silábicos na contagem da rima poética, com o primeiro verso rimando com o terceiro e o segundo rimando com o quarto, em estrofe única”, detalha. 

Logo após concluir o curso de jornalismo, Vinícius trabalhou como repórter na Folha de Londrina, onde escreveu para diversas editorias, desde assuntos cotidianos a histórias sobre carros antigos. Depois que deixou o periódico, atuou como produtor cultural na cidade e ao participar de uma oficina de escrita criativa no Museu Histórico, em dezembro do ano passado, foi convidado pelo professor a se juntar a um grupo de alunos que se reúne para discutir teoria literária e produzir contos. 

“Nós crescemos como grupo, agregamos novos escritores – todos somos iniciantes, mas com a mesma gana de nos tornarmos escritores -, então batizamos esse coletivo de Contopéia e temos muitos planos para o ano que vem. A ideia é fazer carreira na literatura. Espero conseguir, mas mesmo que não consiga, estou aproveitando para aprender coisas novas, conhecer gente interessante e me divertir com algo que amo fazer”, justifica. 

Ele conta que iniciou o perfil de trovas sem grandes pretensões. “Era como se eu sentisse a necessidade de escrever e por isso precisasse ter aquele espaço. Já havia tentado blog anos atrás, sem sucesso. Eu desistia, faltava motivação.”

Com a retomada da poesia, ele passou a escrever sobre tudo o que lhe interessa. “Um verso pode revelar muito mais sobre a visão de mundo do seu autor, entre outras coisas, do que um texto maçante que precisa se ater à notícia em si.” 

Empolgado como sempre foi, as postagens frenéticas das trovas renderam e o sonho de publicar um livro foi se tornando cada vez mais possível. “Entrei em contato com algumas editoras e uma delas me disse que se eu tivesse um material com mais de 100 textos eu poderia submeter. Analisei quase 400 trovas e montei o material com 125 trovas. Isso deu origem ao Como Escolhi Dizer Te amo, pela Editora Viseu, meu livro de estreia.”

Produzindo o livro de trovas, ele conheceu a Vargas Editora, que tinha aberto um edital para uma coletânea de poesias. “Submeti um material e acabei sendo um dos poetas selecionados. Essa mesma editora, sediada no Rio de Janeiro, estava à procura de um revisor e copydesk, para análise, correção e tratamento das obras de autores iniciantes. Mandei meu currículo e eles apostaram em mim. Hoje, estou editando para eles dois livros, além de ter auxiliado na revisão de outra obra, já publicada.”

“A pandemia foi muito produtiva para mim, lancei meu livro de estreia, integrei o grupo de poetas da Coletânia Poeme-se, idealizei a coletânea Somos Um, de contos e poesia, e estou selecionado para mais três obras que devem sair em breve, todas no formato de coletânea, dentre elas uma que deve reunir poetas londrinenses a ser lançada pela editora Madrepérola, aqui da cidade”, cita.

Para Vinícius, organizar uma coletânea de contos cuja verba está sendo revertida ao Fundo de Combate ao Coronavírus e aos Médicos Sem Fronteiras foi bastante significante. “Sempre tive esse lado social muito presente em minha vida e me senti amplamente recompensado.”

“Em um contexto de pandemia, é a arte que vem dando um respiro para as pessoas. Espero que minha poesia e meus contos ajudem de alguma forma”, almeja o jornalista-poeta. Ele acredita que a produção literária brasileira merece mais investimentos.

“O Brasil carece de incentivo à leitura e isso diminui o número de vendas e, como sabemos, todo mercado precisa de resultados para se manter. Se o mercado não consegue crescer como gostaria, as grandes editoras acabam apostando em títulos e autores mais conhecidos e renomados para tentar se garantir e isso restringe bastante a entrada de novos autores”, opina.

“Por sorte, têm surgido editoras menores que, com muita luta, apostam em novos autores, abrindo espaço. As plataformas digitais têm permitido a autopublicação, um alento aos novos autores, que acabam ‘cavando’ seu próprio espaço’, observa Vinícius, que ainda tem buscado as editoras. “Tenho tentado ir com calma. Primeiro estou aprimorando a qualidade da minha escrita e tentando entrar em um ou outro projeto que julgo interessante. Cada projeto exige um cuidado diferente e preciso sentir que há um significado naquilo que estou fazendo.”

Como não depende só da escrita para sobreviver, ele atua em dois empregos e escrever acaba sendo um lazer e uma terapia. “Sempre que sobra um tempo eu sento e rabisco algo.” 

“No caso das trovas procuro pegar o dicionário, escolho uma palavra para ser a base do texto. É um processo parecido com o que rola nos campeonatos de trova. Então penso no primeiro verso, procuro que ele tenha sentido em um contexto que eu possa inserir essa palavra base e depois penso no restante do texto. O dicionário, tanto de palavras, quanto de sinônimos é forte aliado nesse processo.” 

“Nos contos, a existência do grupo de contistas auxilia porque sempre pensamos no tema que queremos trabalhar durante um período e esse sempre acaba gerando outro tema ou lançando luz sob algo que parece ser uma história boa de contar”, descreve. 

Sobre as alegrias e dificuldades de ser um escritor ele é categórico: “A maior dificuldade é a incerteza do projeto”. Outra dúvida é, como autor iniciante, será que alguém vai querer apostar no seu projeto? Será que vai ter retorno financeiro ou só gastos? “Todas essas incertezas circundam a cabeça do escritor e se você se deixar levar pode desistir do seu projeto antes mesmo dele ter início.” 

“Como Escolhi Dizer Te amo, por exemplo, procura abordar o amor em suas mais diferentes vertentes, desde o amor próprio, passando pelo amor aos livros, às pequenas coisas da vida, até chegar aos temas ligados a relacionamento e dores de cotovelo. Por isso, escolhi esse nome e assim desenhamos o projeto”, declara. 

A dica dele é não perder o foco diante de tantos desafios. “Durante esses quase dois anos eu procurei manter a página no Instagram, participar de revistas literárias, antologias e coletâneas, porque assim posso experimentar meu texto e não tenho tanto o compromisso de entregar um projeto grande, fechado, para uma editora. Mas todos os problemas são superáveis e superados quando você vê sua obra publicada. Tenho em minha estante de livros os três exemplares dos quais participei. O prazer é imenso ao vê-los ali. Até esqueço das dificuldades que enfrentei para que eles existissem.”

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