Amanda Morais, docente na UEL e doutoranda em análise do comportamento, identifica as diversas violências contras as mulheres (históricas e durante a pandemia) e aponta caminhos para a superação do patriarcado
Cecília França
A psicóloga Amanda Morais, mestra em análise do comportamento e docente na Universidade Estadual de Londrina (UEL), acompanha o impacto da pandemia na vida das mulheres de variadas óticas: em seus atendimentos clínicos, em suas pesquisas para o Doutorado em andamento e como militante da Frente Feminista de Londrina. Ela comenta que o confinamento, que obrigou muitas mulheres a conviverem mais com seus agressores, dificultando denúncias, também trouxe obstáculos à busca por autonomia financeira e à consequente saída de relacionamentos abusivos.
“Houve diminuição de oportunidades por conta dessa situação, então, prejudicou o desenvolvimento da construção de autonomia dessas mulheres”, comenta.
Doutoranda em Análise do Comportamento, Amanda começou a estudar violência doméstica e intrafamiliar na graduação. Em 2014, quando dava aulas na Universidade Estadual de Maringá (UEM), montou, junto a outras analistas do comportamento, o coletivo Marias & Amélias, com o objetivo de estudar questões sobre o feminismo e questões psicológicas. “Antes do Doutorado entrei em um projeto da UEMchamado Contra Abuso, para tentar enfrentar e reduzir a violência sexual no contexto universitário. Meu projeto de Doutorado está nesse contexto”, explica.
Amanda voltou para Londrina em 2017 e passou a integrar a Frente Feminista. Para ela, o feminismo pode, de várias formas, contribuir para a superação da estrutura patriarcal que subjuga a mulher ao homem. “Uma delas é a pluralidade característica do feminismo. É uma demonstração justamente dessa multiplicidade de ser mulher (…) Esse debate entre diversas vozes de mulheres dentro do feminismo já lança luz para uma sociedade mais diversa e que respeite esses processos, e com reparações também”, explica.
Sobre o papel dos homens nesse processo, comenta: “Se eles pararem de fortalecer as condutas inadequadas de outros homens já é um grande avanço”.
Leia a entrevista completa.

Que análise é possível fazer da violência contra a mulher durante a pandemia?
Isso se deve a diversos fatores, que vão para além da relação entre companheiro e mulheres. São fatores estruturais, que acabam contribuindo para que parceiros violentos tivessem maior controle sobre as companheiras durante esse período. Historicamente as mulheres estão mantidas mais dentro das esferas privadas, da família, domicílio, cuidados com os filhos. Quando a gente tem uma crise, nesse caso uma crise de saúde, as que começam a ser afetadas primeiro são as mulheres, porque, pelos papéis tradicionais de gênero, se alguém for sair do emprego, naturalmente serão as mulheres. Com as escolas e creches fechadas, o confinamento nesse ambiente doméstico aumenta o controle de companheiros sobre as companheiras. A gente tem visto, por exemplo, casos de mulheres que não conseguem manter a psicoterapia online por conta de estarem na mesma casa com o marido abusivo. E aí, muitas têm preferido manter o atendimento presencial, apesar do risco. Muitas pessoas também perderam o emprego, então tem esse impacto econômico, agravado nas famílias monoparentais. As mães solo não têm respaldo do Estado na questão de ter uma renda. Mães que não têm uma rede de apoio tem passado por diversas dificuldades, são diversas violências.
Situações de crise econômica costumam impactar na violência intrafamiliar contra a mulher?
Qualquer situação estressora, ou de perda de recursos em geral, pode aumentar a frequência de comportamentos agressivos, tanto na espécie humana quanto não humana. A psicologia sozinha não explica o fenômeno do aumento, mas comportamentalmente, quando você perde coisas, um efeito colateral é o aumento do nível de estresse e da agressividade. Na questão da violência contra as mulheres são fatores combinados. As mulheres também perdem muitas coisas durante esse período, mas nem por isso elas se comportam de maneira agressiva, então, existem fatores culturais muito importantes nos comportamentos do que é ser homem e o que é ser mulher. Desde pequenos os homens são ensinados a expressar raiva, as mulheres são ensinadas a ser pacientes, a manter o relacionamento. É difícil identificar que foi por causa da crise, mas é um fator combinado com o que é ser homem.
Em sua experiência clínica, como você tem percebido o impacto da crise na rotina das mulheres?
A questão do isolamento travou vários desenvolvimentos que vinham sendo feitos (em busca) dessa saída do ambiente doméstico, busca de autonomia financeira para mulheres que estavam em processo de separação dos companheiros. Houve diminuição de oportunidades por conta dessa situação, então, prejudicou o desenvolvimento da construção de autonomia dessas mulheres. Estar mais próximas do autor da violência (traz) prejuízo em relação à autoestima, isso tem acontecido.
A dificuldade de autonomia financeira acaba mantendo muitas mulheres em relacionamentos abusivos?
Em relacionamentos abusivos ou em que as mulheres não queiram mais estar. Principalmente para mulheres de classes sociais mais pobres, porque, geralmente, os salários são baixos e para ela sair sozinha com os filhos ela precisa trabalhar fora e não tem ninguém que fique com as crianças. Teve aumento de divórcios, muitos finais de relacionamentos, mas muitas pessoas não conseguem sair dessas situações pelas condições econômicas mesmo.
Quando a gente vai analisar dados de violência doméstica e intrafamiliar é importante fazer esse recorte de classe social e de raça?
Com certeza. Na questão do feminicídio, por exemplo, tiveram momentos recentes em que houve diminuição entre mulheres brancas e aumento entre mulheres negras. Algumas questões precisam ser investigadas aí. Se a gente não faz esse recorte a gente corre o risco de ver a situação das mulheres de forma até racista, de olhar só para a realidade das mulheres brancas, de classes sociais mais altas. Mas elas passam por condições de vida diferentes. A gente vê, por exemplo, a questão da truculência policial nas periferias. Além do medo da denúncia, muitas mulheres não vão querer envolver a polícia em casos de violência doméstica porque isso pode trazer mais violência para dentro da casa dela. Esses fatores são muito importantes quando a gente vai pensar em políticas públicas, elas precisam ser transversais para atender essas realidades.
Como o feminismo pode colaborar para a gente superar essa questão cultural que acaba colocando a mulher como sujeito submisso ao homem?
De várias formas. Uma delas é a pluralidade característica do feminismo. É uma demonstração justamente dessa multiplicidade de ser mulher, essa compreensão de que não existe só a história das mulheres estadunidenses donas de casa que reivindicaram direito ao mercado de trabalho, mas também das mulheres que foram escravizadas, sofreram violência sexual, e estavam trabalhando nas casas dessas mulheres brancas. Esse debate entre diversas vozes de mulheres dentro do feminismo já lança luz para uma sociedade mais diversa e que respeite esses processos, e com reparações também. Um outro ponto do feminismo dentro dessa multiplicidade é a descrição das violências. Coisas que hoje são reconhecidas como violência não eram na década de 1990. A questão do reconhecimento da violência sexual dentro do casamento, por exemplo, é muito recente, até na questão jurídica. No imaginário social ainda não é aceita por completo. O feminismo ajuda a descrever e a informar mais e mais mulheres – e homens e adolescentes – que as mulheres têm direitos. Ele dá esse respaldo para vozes individuais ecoarem. Um último ponto: os movimentos feministas têm um papel muito importante na elaboração de políticas públicas, na fomentação dessas políticas, em planejamentos dentro da história do Brasil de enfrentamento à violência. Estes são mecanismos muito importantes de controle social, de vigilância, se essas políticas têm sido cumpridas, além das redes de apoio. Quando falta o Estado, movimentos de apoio de mulheres em geral são importantes.
Que papel cabe ao homens nesse processo de superação da violência?
O patriarcado – essa estrutura de dominação masculina – ela envolve homens e mulheres. Enquanto categoria social os homens têm essa prevalência da dominância. Mas nas relações interpessoais, a gente precisa das duas partes da relação se alterando para que a gente tenha uma mudança significativa. Lembrando que a gente tem as relações homem e mulher, mas tem também as relações mulher-mulher, que também precisam ser alteradas, e dos homens para com os homens, com as mulheres e toda a diversidade de gênero. O primeiro papel dos homens é de aprendizado, compreender como foi construída a masculinidade deles. É o autoconhecimento, compreender o que eles fazem, porque eles fazem, reconhecer os comportamentos de dominância que eles carregam e reproduzem. Tem muitos homens que acabam simpatizando com o discurso feminista, reproduzem, mas nas suas práticas continuam sendo controladores, ocupando espaços que poderiam ser de mulheres, continuam reproduzindo padrões machistas. Então não basta eles discursarem ao nosso lado, mas mudarem as práticas deles. Isso envolve muito aprendizado, autoconhecimento e, principalmente, a troca com outros homens. Em muitas situações de opressão os membros das categorias dominantes ouvem mais outros membros das mesmas categorias que os que estão em posição de exploração, então é um papel muito importante. Se eles pararem de fortalecer as condutas inadequadas de outros homens já é um grande avanço. Se pararem de compartilhar pornografia, se repreenderem atitudes machistas de colegas, ficarem atentos para como eles tratam as mulheres e uns aos outros; se eles se responsabilizarem por processos que são historicamente femininos, como cuidados com os filhos, com os doentes da família…Enquanto eles forem ocupando um pouco esses papéis eles também abrem espaço para que as mulheres ocupem mais a cena política e pública, por exemplo, equilibrando um pouco mais essa realidade.
Sobre esse ponto, temos um momento bem importante na nossa realidade atual. A Câmara de Vereadores de Londrina tem um número histórico de mulheres, são sete. O fato de termos mais mulheres é uma garantia de representatividade e avanços nas pautas sensíveis às mulheres?
Eu penso que ter mulheres tem um impacto de representatividade mais simbólico. Você olhar para uma Câmara, ver mulheres ali, para crianças, por exemplo, isso vai mudando o imaginário de que mulheres podem ocupar aquela posição. Mas acho que para por aí. Isso, de forma alguma, indica que as políticas para as mulheres serão melhor fomentadas, que as situações sobre violência, maior autonomia econômica para as mulheres, uma igualdade maior salarial, que isso vai avançar. Isso porque ninguém está fora da dinâmica do patriarcado. As mulheres também estão dentro dessa mesmo lógica, então, uma mulher pode ser reprodutora de práticas que, no conjunto, prejudiquem o grupo social de mulheres, principalmente naqueles recortes de classe e raça. Também não quer dizer que as mulheres que estão lá terão tanta voz quanto os homens. Mesmo se fossem mulheres engajadas ou declaradamente feministas, elas também encontrariam dificuldades. Então a gente precisa de mais mulheres engajadas, sim, e também precisamos ir alterando essa estrutura para um acesso maior ao controle da tomada de decisões.
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