Universitária em Londrina, a ativista de origem Guarani Nhandewa centra sua luta na defesa dos direitos das mulheres: “Ou você se assume como indígena que precisa lutar ou vai viver uma vida muito estranha, tentando renegar uma coisa que não pode ser renegada”

Cecília França

Foto em destaque: Psol Londrina

Amaue Jacintho, indígena Guarani Nhandewa, se emociona ao tocar no tema da nossa entrevista: a violência contra mulheres indígenas. Do estupro e assassinato chocante da menina Ana Beatriz, no Amazonas, às mulheres refugiadas com suas famílias na Funai de Londrina, as marcas da opressão a mobilizam na busca por direitos para suas iguais. Nascida na terra indígena de Laranjinha, no pequeno município de Santa Amélia, ela diz que o patriarcado oprime também nas aldeias.

“A gente sabe que isso é influência da colonização, do capitalismo, e acaba que, por ser negligenciado, dentro de uma terra indígena ele acaba ficando muito mais tenso, muito mais difícil para as mulheres”, explica. Apesar disso, a ativista afirma ser difícil saber números de casos de violência, uma vez que nem sempre as denúncias são realizadas. Ela lembra que as polícias militar e civil não podem adentrar em terras indígenas, de posse da União.

“Não pode entrar polícia numa terra indígena, não pode haver intervenção. Acontece que você está dando pleno poder para uma pessoa fazer o que quiser. E eles fazem, agora eu sei que eles fazem”, afirma Amaue, referindo-se à saída das mulheres e suas famílias da aldeia de São Jerônimo da Serra, após relatos de violências sofridas.

Estudante universitária de Ciências Sociais na Universidade Estadual de Londrina (UEL), Amaue vem de uma família de lideranças – sua avó foi líder espiritual, a ‘pajé’ da aldeia. Aos 34 anos, mãe de um casal de filhos de 14 e 12 anos, a estudante se lançou na política partidária na última eleição com a chapa coletiva Voz das Mulheres, pelo Psol.

A escolha de seu nome partiu de um debate interno da Artein (Articulação dos Estudantes Indígenas da UEL). “A gente é muito grata à chapa e ao partido Psol. Depois desse projeto, a gente tem a intenção de continuar colaborando. Talvez não com meu nome, mas a intenção é continuar defendendo uma cadeira para um indígena aqui na cidade de Londrina”.

Leia entrevista completa.

Vivemos numa sociedade patriarcal que tem efeitos nocivos especialmente para as mulheres. Nas comunidades indígenas também há essa estrutura social?

Tem sim, e não é herança dos povos indígenas. Nós temos um modo de vida de respeito a todo ser vivo, desde uma árvore até os seres humanos. A gente sabe que isso é influência da colonização, do capitalismo, e acaba que, por ser negligenciado dentro de uma terra indígena ele acaba ficando muito mais tenso, muito mais difícil para as mulheres. Mas a gente tem noção que não é herança dos nossos povos. Que, em sua maioria, os povos indígenas respeitam todos os modos de vida, toda vida. O que a gente queria era que retornasse isso e que essas pessoas que estão agora reproduzindo essa herança do colonizador, que parasse. Minha avó era uma líder espiritual, a maior liderança dentro dos povos indígenas, e era uma mulher. Por aí você vê que não é uma herança da gente. Na minha terra indígena a gente já teve vários problemas também, não temos mulher liderança, mas muita coisa já evoluiu, já mudou bastante. A gente já conseguiu desestruturar esse machismo um pouco dentro da aldeia e melhorar um pouco a situação para as mulheres, existir um pouco mais de respeito. Mas nessas outras aldeias, o que eu tenho observado é que é muito difícil ainda a vida para as mulheres indígenas.

Em uma manifestação da Frente Feminista de Londrina pelo fim da cultura do estupro, realizada em novembro, você segurava um cartaz com os dizeres ‘Não aceitaremos mais nenhuma mulher ser pega no laço, seja ela indígena ou não’. Eu ouvia da minha família que minha tataravó foi pega no laço. Não sei dizer se é verdade, mas o relato da violência sobreviveu ao tempo. Quando foi que você se deu conta do quanto a história indígena foi violentada pelo colonizador?

Foto: Kim Nobille

Isso sempre me foi passado, porque eu cresci nesse meio de luta por direitos indígenas. Mas me dar conta de que eu realmente tinha que tomar uma atitude e somar junto ao momento indígena para defender o modo de vida e minha família foi mais quando terminou o segundo grau e a gente começou a ter contato com a universidade. Porque aí você se aprofunda um pouco mais nos estudos e realmente vai tomando consciência do tamanho da violência, e vai tendo ideia de que não tem mais para onde correr. Ou você se assume como indígena que precisa lutar ou, não sei, você vai viver uma vida muito estranha, tentando renegar uma coisa que não pode ser renegada. A partir de então foi só lutando mesmo. Acabou a vida de festa. A gente não volta a ter paz quando tem consciência disso.

Você acha que a invisibilização dos povos indígenas é mais intensa com as mulheres?

Muito. Até quando você falou o tema (da entrevista) eu me emocionei, porque eu já lembrei do fato que está ocorrendo agora, que mais está doendo agora, daquela criança… Como indígena, me emocionei muito pela Ana Beatriz e pelo fato de saber que existe muito mais casos e que a mídia realmente não dá visibilidade. A sociedade não se comove com a dor dos indígenas. Isso não é só em Londrina, mas no Brasil inteiro. E é muito doído ter que passar por esse processo e não ter comoção, não ter ajuda.

Eu estou com um grupo de mulheres indígenas aqui na Funai, elas estão refugiadas. São quatro famílias de São Jerônimo. Eu tive que sair dessa terra indígena por perseguição do cacique. Ele já tinha me ameaçado, então optei por sair. No dia 13 de setembro chega essas quatro famílias na minha casa, em São Jerônimo, pedindo ajuda porque estavam sofrendo vários tipos de violência, era violência contra as mulheres. Inclusive elas tinham sido agredidas fisicamente. Daí meu desespero foi muito grande. Entrei em contato com a Funai, Ministério Público, Polícia Federal, é muito difícil mexer com essas estruturas. Eles não se comovem, é difícil você conseguir com que de fato seja feita alguma coisa. Quando o cacique ficou sabendo que a gente já tinha denunciado os ataques contra mim aumentaram muito. Optei por vir para Londrina para ficar mais em segurança. Deixei minha casa com esses indígenas, porque eles não podiam retornar para a aldeia. Uma semana depois elas foram atacadas na rua da minha antiga casa. As lideranças agrediram muito elas na frente das crianças, dos vizinhos, sapatearam em cima delas. Uma mulher tem marcas até hoje, no peito. Aí elas vieram e se refugiaram na Funai. Estão ali até hoje.

Qual o motivo dessas agressões?

Foi elas terem denunciado. Não é um processo isolado isso que aconteceu, é constante. Eu morei um ano dentro dessa terra indígena e como estudante de sociologia pude vir que ali dentro tem uma organização de opressão mesmo, de ameaça contra aquela população. A gente tenta fica quieto, mas chegou um tempo que não teve como, a gente teve que se envolver.

Terras indígenas são de competência federal, sendo impedida a atuação das polícias civil e militar dentro delas. Você concorda com isso?

Eu até concordava, até ter noção da intensidade do poder que isso dá para um cacique e sua liderança em cima das mulheres, principalmente. Não pode entrar polícia numa terra indígena, não pode haver intervenção. Acontece que você está dando pleno poder para uma pessoa fazer o que quiser. E eles fazem, agora eu sei que eles fazem. Eles usam esse poder para cima das mulheres. Não é uma questão isolada de São Jerônimo. Existe um desespero muito grande por parte das mulheres indígenas do Norte do Paraná por causa desse caso que não está sendo resolvido. Mulheres representantes que moram nas aldeias estão em desespero. Elas não querem falar nada sobre os caciques porque o perigo que elas correm é muito grande. Se você abrir a boca e conseguir sair da aldeia você sai bem, porque geralmente acontece como aconteceu com essas mulheres, que estão refugiadas na Funai e tiveram as casas queimadas. Elas foram na delegacia e eles avisaram que não poderiam fazer nada.

Você comentou sobre o caso da menina Ana Beatriz, um crime chocante, de uma violência muito grande. A gente pode dizer que este é um caso isolado?

Não, aqui no Norte do Paraná tem muito. Eu conheço casos em aldeias em que o número de estupros coletivos é muito grande. São pequenas aldeias, mas a brutalidade é muito grande. Essas meninas estão totalmente expostas. As menores de idade são as que mais são violentadas.

A eleição de Jair Bolsonaro agravou a situação dos indígenas de uma forma geral?

Muito. Eu me lembro que quando ele foi eleito eu estava em Santa Amélia e a aldeia fica a 3 km da cidade. Eu me lembro que, de dia, fui, conversei com a comunidade, falei que possivelmente ele seria eleito e que a gente ia ter uma vida muito difícil pelos próximos quatro anos. Me lembro que à noite, quando ele foi eleito, eu desci para a casa de reza, a gente estava sem rádio, a gente soube que ele tinha sido eleito quando começou a escutar os fogos. Porque se os brancos não indígenas estavam comemorando, a gente já sabia. Eu não consegui assistir televisão. Porque saber que ele tinha ganhado falando em massacrar os povos indígenas, estando num pais em que a maioria votou nele falando isso, foi muito difícil, mas a gente sobreviveu e está sobrevivendo.

A força dos povos indígenas é tão grande que a gente está conseguindo, através dos povos indígenas mesmo, mostrar um pouco mais da realidade, ter um pouco mais de visibilidade para toda essa questão. Apesar do primeiro baque, a gente está aí, dois anos depois, com os índices de indígenas eleitos explodindo. Então, a gente fica contente.

Você vê outro caminho, que não a política partidária, para cobrar polícias públicas?

Na verdade, antes da política partidária sempre foi a organização própria nossa mesmo, de cobrança. A gente, a partir disso, conseguiu estruturação da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), estruturação da Funai – que, antes do Bolsonaro, funcionava muito bem, agora já não funciona mais como deveria. Então a gente conhece esse outro caminho. A política partidária vem para fortalecer um pouco mais. Ela vem para somar, mas não quer dizer que se não tivesse essa possibilidade nós iríamos parar. Os povos indígenas continuariam lutando, da mesma forma.

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