Por Cecília França

Marisete atravessa a rua meio correndo. Eu sempre a vejo em semáforos, sorridente, mas só soube seu nome na última terça-feira quando participei da ação de fim de ano do Movimento Nacional da População de Rua em Londrina.

Marisete é um encanto. Fala como uma criança, manhosa. Das pernas grossas saltam varizes resultantes dos vários quilômetros que percorre por dia. Nos agradece o presente, um kit com shampoo, sabonete, desodorante, roupas íntimas novas. Sorri para a foto. Está com os cabelos molhados, nos pede uma toalha, mas não temos.

Na beira do córrego, outra nos pede camisinha. Esquecemos. Cacau nos pede “prestobarba”, também não pensamos nisso.

Não estamos na pele delas, embora tentando nos aproximar. Empatia e sororidade imperam entre nós, quatro mulheres dentro de um carro com ar condicionado. As realidades não poderiam ser mais distantes.

Keith atravessa a rua quando a vemos, magrinha. Vem rápido até nós, recebe o kit, conta que perdeu cartão do banco, não recebeu todas as parcelas do auxílio. Está vivendo em um terreno com o companheiro. Beija nossa mão em agradecimento pelo “presente”. Mal sabe ela que a gratidão é nossa.

Gratidão por ela e as outras serem tão abertas ao nosso contato. É bem verdade que estamos acompanhadas de uma profissional conhecida por elas, porém, sinto que nos receberiam ainda que não fosse assim.

Regiane desce a rua sozinha, uma roupa brilhante, tão bonita. Pede uma pomada, recebe o kit, agradece. Abraça a profissional que nos acompanha. Pede quarenta centavos. Já foi vítima de violência física e sexual, parou no hospital. Mas continua ali, vivendo em um terreno onde um amigo a “deixa ficar”, andando de ponta a ponta da cidade para saciar o insaciável.

É impossível ser cem por cento feliz conhecendo a realidade das nossas iguais nas ruas, porque estamos todas ligadas. Sabe aquela máxima “Mexeu com uma mexeu com todas”? Pois então. Elas são partes nossas. São corpos vulneráveis ao dispor de toda a violência nas ruas. Corpos femininos são os mais atacados, mas estamos protegidas (ao menos em partes) pelas paredes das nossas casas, pelos vidros dos nossos carros. Elas não.

Num fundo de vale, Viviane nos pede mais um pacote de absorvente, “Nossa, estava precisando. Vem um monte pra mim”. Ela fala bem, nos conta seu passado recente. “Tenho saudade dessa vida”, diz, referindo-se à nossa vida. Era funcionária pública e adorava o que fazia. Há cinco anos vieram “as companhias erradas”. Veio o vício, veio o fundo de vale.

No fundo de vale enfrenta a sobrevida, a violência, a incerteza. O autocuidado vai sendo abandonado. Algo mais forte que elas as move dia a dia.

Cacau lamenta: “É muita humilhação”. Está triste. Pede o prestobarba. O prestobarba que esquecemos. Ele me lembra o quanto estamos afastadas de sua realidade. Mas queremos nos aproximar. Porque ela somos nós. E nós queremos viver.

3 respostas para “Para minhas irmãs nas ruas”

  1. Realmente, Cecília, como ficar confortável, de consciência tranquila… como ser plenamente feliz quando uma parte importantíssima de nós, de nossa humanidade e de nossa feminilidade, está mutilada e socialmente abandonada?

    1. Creio que a inconformidade é um caminho, Clarice. Sigamos nele! Obrigada pela visita.

  2. Elas são de uma resiliência estarrecedora… A situação de risco e vulnerabilidade da pessoa em situação de rua é imensurável… Mas a situação das mulheres é muito, muito mais difícil… Temos uma Secretaria de Política Publica para Mulheres em Londrina porém, a situação de violência a que essas mulheres são expostas dia e noite, não está no rol de discussão dessa secretaria… Por quê?

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