Ano em que vítimas de estupro foram culpabilizadas, em que foi resgatada a tese de “legítima defesa da honra” e atentou-se até contra o direito ao aborto legal não vai deixar saudades

Por Cecília França, editora da Rede Lume de Jornalistas

Foto em destaque: Isaac Fontana

Difícil encontrar alguém que sentirá saudades de 2020. Eu, pessoalmente, não conheço um exemplo sequer. Este foi um ano ruim em diversos aspectos, muitos perpassados pela pandemia. Aumento da pobreza, do desemprego, quarentena infinita frente ao descontrole dos casos de covid-19, postura desconcertante de detentores do poder diante da crise – enfim, um rol de motivos para agradecer pela chegada do novo ano, de modo que foi difícil escolher o tema deste primeiro texto do ano. Porém, um aspecto gritante de 2020 não me sai da cabeça: as afrontas aos direitos das mulheres.

No ano do sucesso do podcast Praia dos Ossos, que resgata a história do assassinato de Ângela Diniz por Doca Street na década de 1970 e como sua quase absolvição no primeiro julgamento deu corpo ao movimento feminista nacional, vimos o resgate da “legítima defesa da honra” como tese para absolvição de feminicidas. Estou falando da absolvição de Vagner Rosário Modesto que, em 2016, esfaqueou a ex-mulher por ciúme, em Nova Era (MG). O caso passou batido na época do julgamento, em 2017, mas ganhou repercussão em outubro último, quando, após o Ministério Público ter recorrido da decisão, o caso foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Para nosso assombro, a primeira turma do STF manteve a decisão do júri com voto minerva da única ministra votante, Rosa Weber.

Eu só soube do caso na última segunda-feira (28) e ele veio coroar, para mim, um ano terrível no que se refere a violações dos direitos das mulheres. O Natal já havia nos assombrado com seis feminicídios em diferentes cidades, justamente em uma data que deveria ser de celebração do renascimento. Ao longo do ano houve aumento no número de mulheres assassinadas por questões de gênero, houve juiz e advogado atacando vítimas de violência, houve achacamento público de uma menina de 10 anos vítima de estupro, houve tentativa oficial de dificultar o acesso das mulheres ao aborto legal.

Rememorarei aqui alguns casos que tiveram destaque, sabendo que estão longe de serem os únicos. Também lembrarei das reações sociais a eles, como forma de alento. Se a violência contra as mulheres cresce, é bom que os machistas, feminicidas e a sociedade em geral, saibam: há uma reação e ela vem de nós mesmas.

Cartaz de ato da Frente Feminista

Logo em janeiro, no dia 25, a bailarina Magó Poltronieri, de 25 anos, foi encontrada morta em uma cachoeira em Mandaguari, próximo a Maringá. Ela foi estuprada e estrangulada e o caso motivou manifestação pública da Frente Feminista de Londrina no dia 1 de fevereiro. No mês seguinte, o País fechou por causa da pandemia. Nos meses iniciais de quarentena, houve queda no número de denúncias de violência nas delegacias, mas aumento das ligações para os disques-denúncia. Sinal que a violência não estava respeitando o distanciamento.

Em julho tivemos um caso emblemático em Londrina: o feminicídio de Sandra Mara Curti. A tristeza deste caso nos acende dois alertas, ao menos, pois além da violência patriarcal que vitima mulheres por as considerarem propriedades dos homens, houve desqualificação da denúncia da vítima por parte de quem a deveria proteger. Dois dias antes de ser morta, Sandra, que tinha 43 anos, teve seu pedido de medida protetiva negado pela Justiça. O juiz substituto que apreciou o pedido deu um show de machismo na decisão e desqualificou as denúncias de Sandra, deixando-a à mercê de seu algoz.
Em 31 de julho a Frente Feminista novamente foi para a rua, desta vez em carreata, respeitando as regras de distanciamento social. “Palavra de mulher tem valor“, bradavam.

O caso da promotora Mariana Ferrer demonstrou o quanto nossa palavra ainda carece de respeito. O processo que ela movia contra o empresário André de Camargo Aranha por estupro teve seu fim em setembro, mas ganhou destaque nacional em novembro, quando o The Intercept Brasil publicou um vídeo da audiência final do processo. Nele, Mariana é desqualificada, tem fotos íntimas mostradas como forma de questionar sua reputação, chora, pede respeito. A correlação com o julgamento de Doca Street, rememorado no Praia dos Ossos, foi imediata, assim como a reação das feministas e dos defensores dos direitos humanos de todo o País. Em Londrina, muita gente foi para a rua em manifestação contra a cultura do estupro.

Ato contra a cultura do estupro em Londrina. Foto: Isaac Fontana

No início de agosto o País se chocou com o caso de uma menina de 10 anos grávida. Ela havia sido vítima de estupro pelo seu tio por anos e a consequência chocante da gravidez jogou luz sobre a terrível situação de violência contra crianças. Além de ter sido obrigada a viajar para ter acesso ao direito da interrupção da gravidez, a menina ainda teve que suportar protestos de intolerantes diante do hospital, supostos “defensores da vida”.

Dias depois o Ministério da Saúde publicou portaria buscando dificultar o acesso ao aborto legal, no que muitos ativistas viram reação ao caso da menina capixaba – lembrando que a interrupção da gravidez é permitida em três casos no Brasil: estupro, risco para gestante e bebê e anencefalia, ou seja, a menina estava duplamente amparada. Houve reação social e política, por meio de deputadas feministas, e parte da portaria foi revogada. Permanece, no entanto, a obrigatoriedade de que equipe médica notifique a polícia casos de gravidez por estupro.

Outro caso de violência extrema contra criança nos tomou de assalto no primeiro dia de dezembro: o estupro e assassinato de uma menina indígena de 5 anos no Amazonas. Uma tristeza sem tamanho, um soco no nosso estômago quase no final deste ano horrendo. O caso chamou a atenção para a violência contra as mulheres e meninas indígenas, muitas vezes sonegada.

Não são casos isolados, nunca foram. E não sei ao certo o que faz com que determinadas violências ganhem destaque nacional e outras sejam simplesmente esquecidas. Por isso é importante não aceitar nenhuma delas sequer. Não existe nível de violência tolerável. Se uma mulher é ofendida, machucada, estuprada, morta, todas nós sentimos, porque isso reforça a cultura do estupro, o patriarcado, o machismo. Cada caso negligenciado dá força para os violentadores e abusadores e precisamos exatamente do contrário.

Neste novo ano desejo ser mais forte e desejo que todas as mulheres tenham consciência de que somos uma. Todas essas vítimas citadas? Elas somos nós, e nós queremos viver.

Que 2021 seja realmente feliz!

3 respostas para “Opinião: Para as mulheres, 2020 já vai tarde”

  1. Maior fake news de 2020 esse caso da Mari Ferrer , Gole feio esse que atrapalha todos os casos de estupro no brasil

  2. Nossa, o ano de 2020 trouxe a tona o pior da sociedade que nós, defensores dos “direitos humanos” para “todos” os humanos e não só os humanos de “bem”, talvez tivéssemos acreditado haver sido superado… Estávamos enganados, fomos ingênuos, despreparados, sei lá… Mas a luta é árdua e longa no que diz respeito a nós, mulheres e meninas… NÃO É SÓ POR ELAS… É POR TODAS NÓS!!!!

    1. 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽

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