Contra o consumismo desenfreado, o jornalista Guto Rocha ensina como ser feliz na simplicidade de uma rotina cercada de verde, arte e respeito pelo próximo

Por Mariana Guerin, jornalista e confeiteira em Londrina. Adoça a vida com quitutes e palavras

Se você não conhece o Guto Rocha, precisa conhecer. Ele é um cara simpático que te encontra nos eventos culturais da cidade e dá aquele beijo estalado na sua bochecha e aquele abraço forte te fazendo sentir especial num instante. E quando você descobre um pouco da sua história fica ainda mais encantada por esse rapaz lindo e cheio de empatia pelas pessoas, pela natureza, pela arte, enfim, pela vida.

O jornalista Márcio Augusto Rocha, 51 anos, é natural de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, mas vive em Londrina desde que veio cursar comunicação social na UEL (Universidade Estadual de Londrina), aos 18 anos. Solteiro, ele mora numa casa de madeira que ele aproveitou para redecorar sozinho durante a pandemia e é o cuidador de uma pequena floresta urbana em seu quintal.

Guto Rocha no quintal de sua casa. Fotos: arquivo pessoal

“Sempre gostei muito de árvores. Cresci numa casa onde meu pai plantou muitas antes mesmo de eu nascer. Elas foram minhas companheiras de aventuras no quintal em que vivi até me mudar para Londrina aos 18 anos. Entre tantas, tinha uma goiabeira que era minha segunda casa. Vivia trepado nela quando estava em casa de folga, tinha mesinha e banquinho pregados nos galhos, lia lá em cima, escrevia meus segredos mais secretos no meu diário lá nas alturas, ouvia rádio. Tinha uma relação de igual para igual com ela”, rememora.

E esse respeito pelas árvores nunca mudou. “Não as vejo como um vegetal de grande porte apenas. As vejo como indivíduos necessários para a nossa vida. Todas têm uma história. E sempre me incomodou muito ver como elas são tratadas pelos humanos. São abatidas sem o menor respeito, muitas vezes sem necessidade. Não há manutenção adequada pelas prefeituras, gente despreparada mesmo para lidar com elas”, lamenta.

Criador de um jardim “nada convencional, mas que eu acho lindo e quem conhece acaba achando também”, Guto é técnico em paisagismo há quatro anos. “Mas foi só para ter um título, pois, modéstia às favas, tenho mão boa para plantas desde pequeno.”

“Minhas avós sempre mantiveram jardins com muitas plantas e minha mãe também. E ler o ‘Menino do Dedo Verde’ na infância solidificou essa ligação com as plantas. Já li e reli o livro que tenho até hoje diversas vezes e sempre me emociona. Acho que se toda criança lesse, o mundo seria diferente. É um belo manifesto pela paz na verdade. Tistu era um anjo né?”, recomenda o jornalista.  

Para ele, nós fazemos parte da natureza e não o contrário. “Não consigo compreender a vida distante da natureza, vivo numa simbiose completa. E a reciclagem é algo que pratico como maneira de amenizar o impacto que é estar aqui. Reaproveito tudo que posso, pratico o desperdício zero também e vejo no consumismo o grande mal da humanidade.”

“Só compro alguma coisa depois de responder para mim mesmo: eu realmente preciso disso? Uso roupas que têm mais de 20, 30 anos. Estão lindas, eu fico lindo, não preciso renovar guarda-roupa. Preciso renovar conhecimentos, sentimentos”, ensina o jornalista, que compensa suas ansiedades e frustrações andando de bicicleta. “Acredito que é urgente a humanidade repensar o consumismo, já esgotamos nossa capacidade de renovação de recursos. A terra não nos aguenta mais”, alerta.

Morando em sua casa de madeira toda colorida e cuidando do seu quintal nada convencional cheio de verde, Guto se considera um cara de sorte por poder trabalhar em casa. “Tenho uma vida simples, tranquila, trabalho como jornalista, produzindo conteúdo para internet e assessoria de imprensa. Como trabalho em casa, tenho o privilégio de poder administrar meu tempo de maneira mais flexível, o que me permite, por exemplo, me alimentar de maneira mais saudável, afinal eu faço minha própria comida todos os dias, inclusive o pão que consumo no café da manhã diário. Também tenho mais tempo para cuidar de minhas plantas no jardim”, conta o jornalista, que adora se exercitar e costuma ir à academia cinco vezes por semana, além de pedalar diariamente.

“Também utilizo a bike para me deslocar pela cidade, para ir ao supermercado, banco, trabalhos externos eventuais. Raramente utilizo o carro. Para você ter uma ideia, em 2020 abasteci o carro em fevereiro e voltei ao posto de combustível só no dia 22 de dezembro para ir para Rio Preto.”

O jornalista recorda a infância simples, mas feliz que teve na cidade interiorana. “Brinquei muito na rua, na beira da linha do trem, na represa municipal de Rio Preto, locais que ficam muito perto da casa onde nasci. Mas comecei a trabalhar fora muito cedo também”, conta.

Aos oito anos fui cuidar de um primo para minha tia poder trabalhar e aos 10 fui trabalhar em uma loja na rodoviária. Uma lojinha chamada Magazine 13. Estudava pela manhã e à tarde ia para a loja, de segunda a sábado. Nunca mais parei de trabalhar. Quando completei 14 anos realizei o sonho de tirar a carteira de trabalho no dia seguinte ao meu aniversário e fui registrado dez dias depois”, recorda o jornalista, que trabalhou meio período até completar a oitava série e depois passou a estudar à noite. “Sempre estudei em escola pública.”

Ele e os quatro irmãos mais velhos sempre trabalharam desde criança, então, amadureceram muito cedo. “Me lembro de ter me dado de presente de Natal o primeiro carrinho a pilha da minha vida e fui trabalhar no dia de Natal, pois estava de plantão na farmácia que trabalhava, aos 12 anos. Levei o carrinho para brincar no balcão da farmácia quando não tinha movimento”, recorda.

“Tive uma adolescência um pouco incomum se comparada a dos outros adolescentes. Era muito tímido. Na verdade, me sentia reprimido demais pela minha família, pois sou homossexual”, revela o jornalista. “Apesar de eles ‘não saberem’ rolava uma repressão indiretamente. Na época, era muito mais difícil se assumir, então fiquei escondido, inclusive para mim, até os 25 anos”, confessa Guto, que raramente saía para a noite como os colegas da escola.

“Ficava em casa lendo, ouvindo rádio, BBC de Londres, Voz da América dos EUA, quando aprendi a falar espanhol e inglês praticamente sozinho, e na madrugada adorava ver filmes brasileiros na televisão, numa época que pouca gente de minha idade curtia as produções nacionais, desde pornochanchadas até Arnaldo Jabor, Júlio Bressane, Luiz Carlos Barreto, Eduardo Coutinho, Cacá Diegues”, relembra.

“Nunca namorei nesta fase da vida. Era muito cobrado na verdade. Mas vivia no ‘armário’. Não foi fácil. Hoje tenho mais consciência do quanto a orientação sexual reprimida limitou meu desenvolvimento social e emocional”, avalia.

Uma cena de homofobia que ele presenciou aos dez anos quando trabalhava no Magazine 13 mudou de maneira brusca seu entendimento do que é respeito e empatia pelo outro. “Quando eu trabalhava na rodoviária de Rio Preto, meu patrão zombou de um adolescente negro e gay na minha frente. Eu fiquei paralisado na hora. O rapaz ficou enfurecido. Ele era bem afeminado, a típica ‘bicha louca’, como eram chamados os assumidos no começo da década de 1980. Ele, então, passou a me perseguir, mesmo sem eu ter feito nada para ele, me bateu várias vezes na rua e eu nunca contei para ninguém em casa”, diz.

“Isso me deixou como lição respeitar toda e qualquer diferença e, desde a infância, encarei o preconceito como algo que deve ser combatido. E também a perceber de maneira mais direta e crua o mundo que me cercava.”

Guto uniu o interesse pelos livros, pela arte e pela natureza quando decidiu escolher uma profissão. “Eu escolhi jornalismo porque conheci o Carlos Nascimento, que veio para Rio Preto integrar a primeira equipe da Rede Globo Noroeste Paulista. A redação da Globo ficava ao lado do escritório onde eu era office boy. Tinha só 14 anos na época e saí com a equipe duas vezes para acompanhar a realização de uma reportagem e me encantei com o trabalho deles. E resolvi que era aquilo que queria fazer”, comenta.

“Passei a ler mais jornal, a me ligar mais nos telejornais e no Globo Rural. Quando fui para a universidade já tinha como meta inicial atuar na área rural. Fiz meu TCC na área. Mas como quase todo colega, comecei cobrindo buraco de rua, polícia, câmara de vereadores, para a Rádio Alvorada de Londrina.”

“Voltei para Rio Preto, onde fiquei um tempo no caderno regional da Folha de São Paulo e no Diário da Região. Só depois é que, ao voltar para Londrina, passei a trabalhar com agronegócio na Folha de Londrina, o que fiz por oito anos dos dez que fiquei lá.  Me realizei indo para a roça mesmo, conversando com produtores de tudo quanto é tamanho, desde micro até o rei da soja no Mato Grosso.”

Quando deixou o jornal, Guto deu uma guinada na carreira jornalística, trabalhando na assessoria de imprensa do FILO (Festival Internacional de Londrina) por 16 edições. “Lá fiz entrevistas com pessoas geniais sobre uma das coisas que mais amo na vida que é o teatro.”

A arte, para ele, é essencial para o desenvolvimento de um ser humano mais sensível, civilizado, sempre em busca de se melhorar como pessoa humana, capaz de entender o outro nas mais variadas dimensões do que é ser gente e respeitar todas essas variações.

“Eu fiz escola de teatro por causa do trabalho como assessor de imprensa do FILO. Nunca tinha passado pela minha cabeça atuar, pois meu prazer mesmo é estar na plateia. Mas gostei de atuar, tenho vontade de voltar ainda”, comenta o jornalista-ator, que também é apaixonado por música e sempre gostou de cantar.

“A música também entrou na minha vida por conta do jornalismo. Fiz rádio um período e me orientaram a buscar aulas de técnica vocal. Fui e me apaixonei pelo canto. Fui integrante do coral da igreja quando era criança, achava o máximo, e no chuveiro canto até hoje”, brinca. “Com a professora Walkirya Ferraz descobri um ouvido musical que nunca tinha percebido. Me faltou disciplina para me desenvolver mais, pois descobri que consigo tirar músicas na flauta de ouvido, mas nunca levei adiante, só toco flauta hoje para me distrair sozinho em casa.”

Apesar de gostar de atuar, Guto considera os bastidores do teatro sempre interessantes. “Ver como os grupos, tanto no teatro quanto na música, se preparam antes de entrar no palco é fantástico e poder conversar com os artistas é sempre muito enriquecedor. Tudo faz mais sentido”, opina o jornalista, que recentemente atuou no curta Nigredo, produzido em Londrina, e que conta uma história de família dos tempos da ditadura.

Bastante desanimado com a atual situação política do País, o jornalista já pensou em ir embora do Brasil. “O Brasil sempre teve problemas que me fizeram pensar em pular do barco, mas agora a coisa se agravou como nunca imaginei que seria possível. Aquela falta de escola de qualidade que ouvia falar há 30, 40 anos, como estratégia para dominação está dando resultado agora.”

“Temos uma população afundada na ignorância, manipulada e manipuladora com base em um fundamentalismo cristão/evangélico que é assustador. A nossa criatividade, alegre e colorida dos trópicos, que sempre nos fez diferentes em relação aos outros países evaporou. Se perdeu numa caretice chata, burra, medíocre. Regredimos muito”, desabafa.

“Por isso, acredito que ficar aqui agora e apontar o que precisa ser mudado, recuperado e implantado como possível solução é sim um importante papel de quem consegue enxergar além da escuridão que esse desgoverno representa”, aponta.

Para Guto, a educação é a chave para todas as mudanças, inclusive da própria educação. “O que se ensina e o que se aprende hoje mudou muito pouco ao longo dos anos e a impressão que tenho é que as coisas só pioraram. A meninada sai da escola sem aprender a escrever o básico. Penso que os conteúdos continuam muito distante da vida real e isso afasta mais e mais as crianças do interesse pelo conhecimento. Sei que é complicadíssimo falar de educação para uma família que mal tem o que comer, onde morar, coisas mínimas que garantam a dignidade, mas isso faz parte do jogo perverso do nosso modelo de sociedade e quem está no controle não tem interesse que o jogo mude. Penso numa escola em que as potencialidades individuais sejam estimuladas”, sugere.

“O cara não gosta de tal disciplina, não precisa martirizá-lo para que a faça de forma aprofundada. Se ele quer aprender flauta ou física, que se dê condições para ele aprender o melhor possível, para ele se realizar para si mesmo, ter prazer no que faz para fazer bem feito, em sua plenitude. Na minha opinião isso faria uma diferença imensa no protagonismo de cada um na sociedade e nas escolhas do que é melhor para todos”, declara.

Amante dos livros, o jornalista lê muita ficção, “para me afastar do noticiário, que é obrigação para um jornalista. Também gosto de ouvir música, faço tudo ouvindo música o tempo todo. Desde ópera até heavy metal. Raramente vejo televisão, fico meses sem ligar o aparelho. Mas gosto de ver filmes”, cita.

Como o bambu, que enverga mas não quebra, o jornalista ainda tem muitos sonhos inusitados e divertidos para realizar nesta vida: “Voar de balão foi um sonho de infância que realizei. Mas são tantos sonhos que quero realizar ainda, como andar num submarino, pedalar pelo interior da França e conversar despretensiosamente com o Caetano Veloso, que amo muito”, planeja.

3 respostas para “‘Sou feito bambu, envergo mas não quebro’”

  1. Ótima leitura. Gostei.

  2. Avatar de Vita Guimarães
    Vita Guimarães

    Parabéns, Mariana.! Belo trabalho sobre a vida deste ser incomum a quem chamamos Guto Rocha! Amo esse menino desde a aventura que vivemos na Rádio Alvorada. Conosco estavam também a Elsinha Caldeira, o Ney Inácio e o Josmar Machado. Avoé,.Guto. Saudade!!!

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