Professora de português, a paranaense Olienne de Oliveira queria mesmo era ser escritora, mas o chão da escola arrebatou seu coração

Por Mariana Guerin*

Uma juventude marcada pela luta por direitos, acessibilidade, respeito e igualdade: desde pequena, Olienne Maria de Oliveira briga para ocupar seu espaço na sociedade. Aos 43 anos, a professora nascida em Cornélio Procópio, caçula de seis irmãos, ainda precisa levantar a bandeira contra o preconceito para garantir um emprego decente, que remunere com justiça seu currículo que inclui uma graduação em Letras e Pedagogia pela UENP (Universidade Estadual do Norte do Paraná) e outras quatro pós-graduações.

Recentemente, ela participou de um movimento dos professores estaduais contra a decisão da Secretaria da Educação e do Esporte do Paraná de realizar uma prova para contratar docentes pelo PSS (Processo Seletivo Simplificado). “Esse processo é extremamente precário porque temos o recolhimento do INSS apenas no tempo trabalhado, não temos fundo de garantia, não temos plano de saúde, não temos direitos básicos”, cita Olienne, reforçando que o salário também é mais baixo e muitos professores contratados vivem situações excludentes nas escolas, “embora na sala de aula a capacitação de um professor não seja determinada por uma sigla: PSS ou padrão. Ele é simplesmente professor”.

Olienne em foto de arquivo pessoal

Se capacitar para poder ascender socialmente foi o modo encontrado pela professora para contornar o preconceito que vive na pele desde quando procurou o primeiro emprego, numa cidade pequena e com poucas oportunidades. “Em todas as situações em que entregava currículo a resposta era sempre a mesma: não tem o perfil da empresa. Rapidamente entendi que meu caminho seria difícil, já que não me contentaria com pouco.”

Entre 17 e 19 anos já tinha a maturidade de uma mulher adulta, consciente de tudo que me era e ainda é negado socialmente e deveria e devo tomar à força o que me é por direito. Tão cedo passei a questionar tudo, tão cedo perdi a inocência da vida”, define Olienne. “Devemos ter consciência do que somos, do que podemos e do que nos cabe por direito”, ensina.

Desde de muito cedo ela aprendeu a não se contentar com o não. “A não aceitar qualquer coisa ou normatizar o absurdo. Trago marcada em toda a minha caminhada a consciência de que eu posso ir além, independente do que os outros dizem.”  Para ela, o dia mais marcante de sua vida foi quando se sentou em uma cadeira na sala dos professores do Colégio Zulmira Marchesi da Silva, em Cornélio Procópio: “Ali eu atendi o perfil da empresa, ali eu me sentia realizada e convicta de minha capacidade”, garante.

Olienne tem muitas lembranças boas da infância pé descalço que experimentou na pequena cidade no norte paranaense. “Minha infância foi bastante feliz, correndo descalça em chão batido de terra, subindo em árvores frutíferas, brincando na rua livremente. Chupei chupeta e tomei leite na mamadeira até os 13 anos. Atendi a todos os critérios de filha caçula de uma família de seis filhos”, brinca a professora, que lembra com saudade de quando ia comprar doce de banana de copinho e pirulito pirocóptero na venda de bairro.

“Apesar de eu já morar em Londrina, mantemos uma boa conexão. A gente cresce, muda os horizontes, passamos a fazer parte de outras bolhas, mas a família permanece sendo a base de tudo. Eu realmente acredito na importância da família na formação de um indivíduo, os valores que determinam nosso caráter vêm da família”, opina.

Me lembro do meu pai, já falecido, com muito orgulho. Homem simples, que educou seis filhos trabalhando como mestre de obras. Estudou até o quinto ano do fundamental I, mas tinha ‘doutorado’ na vida, de hombridade absurdamente linda. Seu legado e herança aos seis filhos foi a capacidade de ser honesto e andar de cabeça em pé numa sociedade que ainda hoje nos olha como inferiores”, descreve.

Minha mãe é a mais valente de todas as mulheres. Na minha listagem de divas, ela é a primeira. Mulher negra, mãe de seis filhos, duas professoras, uma contadora, uma artesã, um mecânico, um mestre de obras. Todos profissionais, com dignidade, honra e orgulho do caminho percorrido”, orgulha-se a professora, ainda solteira e “mãe” do cãozinho Marvin.

Confiando na educação recebida pelos pais, Olienne enfrentou com coragem o período conturbado da adolescência. “As conturbações se deram em função de classe social e etnia, sofri muitos preconceitos. Como a grande maioria das adolescentes negras, me sentia feia e rejeitada, mas isso também me serviu como combustível para formatar minha personalidade, minha busca e principalmente meu anseio por conquistas.”

“Sempre fui muito estudiosa. Aos 13 anos já lia O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, Cinco Minutos, de José de Alencar, e vários outros livros que continuam sendo minhas paixões literárias. Chorava lendo Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro Vasconcelos, livro de cabeceira do meu irmão mais velho”, recorda.

Como os pais eram “muito bravos e não deixavam as filhas saírem”, seu primeiro beijo foi aos 16 anos. “Como a sociedade mudou. Na minha época, o divertimento da adolescência eram os cadernos diários, era assim: decorávamos um caderno brochura e fazíamos várias perguntas, uma em cada folha. O caderno corria entre as amigas e colegas para obter as respostas. Dormíamos na casa das amigas, tipo noite do pijama. Ai que saudades. Dia de passeio, ia no Cristo, principal ponto turístico de Cornélio Procópio, mas sempre acompanhada do pai ou dos irmãos”, conta Olienne, confessando que tem dias em que quer apenas sentar no colo do pai e sentir a barba dele roçando seu rosto.

A inspiração para tornar-se professora veio da irmã mais velha, que é pedagoga. “Ela sempre motivou os demais irmãos a estudarem e conquistarem uma profissão. Eu, particularmente, sempre fui apaixonada por literatura, então ingressei ao curso de Letras sonhando em ser escritora. Não desisti disso ainda, mas o contato com o chão de escola me arrebatou, sou apaixonada pela educação”, diz.

Ela comenta que precisou arquivar algumas expectativas e ideologias acadêmicas quando iniciou a carreira como professora. “O trabalho diário com os alunos me trouxe um aprimoramento que nenhuma universidade me daria. Com os alunos tive desafios, decepções, alegrias e muitas realizações. É gratificante ensinar.”

Hoje, Olienne se entende como uma profissional qualificada, mas ainda em construção de aprendizado. “O grande desafio como educadora foi ir além do conteúdo sistematizado, trabalhar a criticidade do educando, ajudá-lo a pensar e questionar a sociedade em que vive. Minha grande conquista foi aprender fazer parte da história de tantos, olhar cada um de forma singular. Isso me fez, sem dúvidas, um ser humano melhor”, comemora.

Para ela, a educação tem um papel primordial para a construção de uma sociedade mais igualitária. “É com o conhecimento que entendemos e podemos questionar o passado, o presente e o futuro. A educação básica se propõe a auxiliar a formação crítica do cidadão. Não queremos e não aceitamos formar meramente indivíduos para o mercado de trabalho, ‘mão de obra’. O educador trabalha com a consciência da importância de questionar o sistema governamental, de elucidar aos indivíduos seus direitos e deveres. Não estamos ali apenas ensinando gramática ou números. Ensinamos também a sonhar e a lutar”, explica.

Olienne viveu em 2020 a rotina louca da pandemia, quando os professores tiveram que se reinventar e adotar o ensino à distância para continuar trabalhando. “É uma modalidade educacional que favorece em muitos aspectos, contudo sua aplicabilidade não favorece a educação básica. Já fiz cursos em EAD e aprendi muito, pois iniciei tendo pleno entendimento do quanto deveria me dedicar e disciplina. O aluno da educação básica precisa da intervenção do professor, considerando que ele está ainda muito imaturo academicamente”, avalia.

“É na escola que a criança e o jovem têm interações sociais com grupos distintos da família, na escola também temos a oportunidade de ter outros olhares sobre si e sobre a sociedade. Não vejo com positividade o EAD na educação básica, mas com o governo que temos, isso pode sim acontecer. Não é novidade que o governo espera que os cidadãos sejam medíocres e não críticos”, completa a professora.

Para ela, a prática de ensino conteudista já foi normatizada na educação. “Penso que jovem deve sim ter preparo para a universidade e para a carreira profissional, mas devemos e nem precisamos trabalhar num único viés. As intenções e os investimentos governamentais são para formar mão de obra, cabe à sociedade não aceitar isso. A militarização de colégios estaduais, anuncia o que vem por aí”, declara.

Olienne reforça que a desigualdade social – como em sua própria história de vida – retrata a dificuldade de ascensão em todos os aspectos. “Meus alunos da periferia custam a acreditar que conseguirão concluir o ensino médio. Eles me relatam das dificuldades em estudar e trabalhar aos 13, 14 anos para ajudar a mãe a comprar comida. Muitos ainda dependem da alimentação que têm na escola. O cenário mostrado pelo governante é lindo, a realidade é catastrófica”, conta.

A professora com alunos

Aos 43 anos, dez destes dentro da escola, afirmo com propriedade que meritocracia não existe. Esse é um conceito diabólico criado por indivíduos que durante toda a vida tiveram favorecimentos e privilégios, que fingem não entender ou perceber. Enxergam apenas o que lhes convém. Em um país que traz sua história manchada pela escravatura e a extrema desigualdade social, políticas públicas jamais deveriam ser entendidas como favorecimento. Novamente afirmo que o conhecimento do passado e do presente nos ajuda a questionar e mudar fatores de extrema importância social. Creio que estamos muito longe de igualar os candidatos para uma vaga de vestibular. Quanto tempo precisamos para igualar 500 anos de desigualdade. Contudo lutamos com o que temos para alcançar dias melhores”, declara.

Olienne garante ainda ter fôlego para sonhar e lutar: “Acredito que a educação permanecerá como a mola propulsora da sociedade. Mesmo com o atual governo, mesmo sendo humilhados diariamente. Às vezes penso que cada educador é forjado no fogo, renascemos das cinzas e prosseguimos acreditando em novos horizontes e lutando por dia melhores e uma sociedade justa e digna”.

“O meu principal desafio no momento é o próprio governo, com os alunos eu já sei lidar. É preciso que a educação seja vista como investimento e não como custo, dessa forma poderei trabalhar, tendo por preocupação apenas alcançar e sanar as dificuldades dos meus alunos. É preciso verdade e transparência”, projeta.

Vivendo diariamente a realidade cruel que é a dos professores brasileiros, Olienne gosta mesmo é de não fazer nada nas horas vagas. “Fazer nada é um luxo. Gosto de estar com amigos falando bobagens. Gosto de ver séries, filmes, documentários. Amo ouvir samba, MPB. Continuo apaixonada por literatura, em especial a brasileira. E comer algo bem gostoso, sem pressa.cFazer um churrasquinho e tomar uma cerveja bem gelada”, elenca a professora.

Entre os sonhos realizados, ter uma profissão, morar sozinha e ser independente estão no topo da lista. “Sou terrivelmente independente. Dá até medo”, ri. “Sonho em conhecer outros países. Sonho com o impeachment do ‘coiso’.  Sonho em dormir sem tantas preocupações e incertezas”, cita Olienne, resumindo com bom humor sua personalidade: “Não faça gracinha não. Eu sou bem louca”.

*Mariana Guerin é jornalista e confeiteira em Londrina. Adoça a vida com quitutes e palavras

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