Por Regis Moreira, Christiane Lemes, Juuara Barbosa, Melissa Campus e Renata Borges

O Dia da Visibilidade Trans é comemorado em 29 de janeiro, desde o ano de 2004, quando um grupo de transexuais e travestis teve acesso e participou do lançamento da primeira campanha contra a transfobia, Nacional. Para marcar a data, convidei para serem co-autoras algumas parceiras travestis e transexuais, para que o lugar de fala se fizesse legítimo. Assim sendo, participam desta coluna as ativistas Christiane Lemes, Mel Campus, Renata Borges e Juuara Barbosa. A fala é muito mais delas que minha. Sou parceiro de luta, mas cisgênero e não vivencio na pele a realidade de uma pessoa trans. Diante dos depoimentos potentes que chegaram, deixei a escrita por conta delas. Não há necessidade de falar por elas e espero interferir o menos possível, para que as suas falas cheguem até os leitores e leitoras. A coluna desta semana é delas. Talvez tenha tido o papel de convidá-las, abrir este espaço, transcrever os áudios e organizar os depoimentos no texto.

Você tem alguma amiga travesti ou pessoa transexual? Destas que frequentam sua casa ou o círculo de suas amizades mais íntimas? Você já se consultou com uma médica travesti ou médico transexual, seja homem, mulher ou não binário? Você teve aula com alguma professora travesti ou transexual? Já teve seu treino na academia com uma profissional travesti ou transexual? Na sua agência bancária, você já foi atendido por alguma travesti ou transexual? No restaurante que você frequenta, costuma encontrá-las e encontrá-los? No seu grupo de pesquisa, quantas travestis e mulheres e homens transexuais participam? No guichê da prefeitura, da receita federal, da universidade, dos serviços públicos e privados, quantas vezes você já foi atendido por uma travesti ou pessoa transexual? Já viu alguma travesti ou pessoa transexual conduzindo uma reportagem ou apresentando o jornal da TV? No banco da igreja que você frequenta, você comunga com elas ou eles? E por aí a fora poderia ir questionando as ausências e invisivilizações que praticamos com as travestis e com as mulheres e homens transexuais, num infinito assustador de negações, que muitas vezes não nos damos conta, num processo de naturalização que as travestis e transexuais não eram para estar ali. Assim muitas vezes normalizamos o assustador apagamento, marginalização e exclusão praticada contra a população T. A transfobia em suas mais diversas formas.

A ativista e candidata à vereadora pelo PSOL, na cidade de Apucarana/PR, em 2020, Renata Borges, confidencia, com voz embargada:

“Nós somos invisibilizadas em coisas básicas, por exemplo, quando as pessoas fazem uma festa de aniversário para seus filhos e não chamam a gente pra batizados, aniversários. Eu, particularmente, não me lembro de ter ido a um batizado, enquanto essa construção social de Renata Borges, nenhuma festa infantil, nenhuma comunhão, nem festa de quinze anos, acho que nem casamento eu me lembro, talvez eu tenha recebido uma proposta para assistir um casamento, mas a gente é invisível, dentro desses ciclos sociais, a gente é invisível quando você tem que lutar pelo seu reconhecimento de gênero. Quando em 1990, a homossexualidade deixou de ser doença, ser gay, lésbica, bissexual, a travestilidade, a transexualidade entrou dentro da OMS (organização Mundial de Saúde), então nós nunca saímos e aí a gente vai entender porque não existe empregabilidade para travestis e transexuais, porque ainda nós somos uma patologia, ainda a gente precisa de um CID (Código Internacional de Doenças), pra dizer o que eu sou e a gente vê essa omissão de políticas públicas e aí a gente vê, a gente nota, a gente sente, um patriarcado altamente ditador, um machismo estrutural, que vai reverberar na nossa transexualidade, mas antes de tudo, um protagonismo mundial de orgulho de ser cis e aí os corpos trans nada mais são que uma subnotificação de uma existência humana”.

Na tentativa de organizar os depoimentos das co-autoras, três perguntas foram disparadas para a construção desse texto coletivo:

– Qual a importância do Dia da Visibilidade Trans?

– Você considera que a sociedade invisibiliza as pessoas transexuais e travestis? Por quais motivos?

– Qual a visibilidade necessária e desejada para uma pessoa trans e travesti?

Esses norteadores produziram respostas potentes das co-autoras, que se colocaram generosamente, sem escudos, para que pudéssemos refletir sobre a importância da data.

Uma das fundadoras do Coletivo ElityTrans, da cidade de Londrina, norte pioneiro do Paraná, Crhistiane Lemes, ressalta:

“O dia 29 se tornou um grito de liberdade e empoderamento das pessoas trans, pois vejo a falta de direitos constitucionais, com nossa população T. Já me lembro na escrita da Constituição Federal. Nada foi pensado para nós. A sociedade que nos condena é a mesma sociedade que nos sustenta. Eles acham que é bonito na casa do vizinho, mas na minha casa não…”

Chris Lemes. Foto: Wesley Tondatto

A artivista (artista e ativista), Melissa Campus, vê a data como importante marco de visibilidade à população T, que muitas vezes é invisibilizada dentro do próprio movimento LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers, Intersexos, Assexuados e outros mais):

“No movimento de travestis e transexuais nacional nós sempre tivemos a invisibilidade e a falta de reconhecimento de nossas identidades sociais, historicamente, durante décadas. Então essa data, que é o dia 29 de janeiro – Dia da Visibilidade Trans – é exatamente pra que a gente seja recordada, uma data muito importante pra que a gente possa marcar presença, com orgulho das nossas identidades e também pro reconhecimento da sociedade com relação às nossas identidades e a importância de nossa existência socialmente, né. Então é muito importante que nesse momento, a pauta das identidades trans, dessa identidade social não reconhecida legitimamente, seja reconhecido então como o dia em que se trabalha as pautas, se trabalha uma série de direitos, reivindicações, e também obrigações com relação à própria população trans. Acredito que a importância seja nesse sentido, que haja o reconhecimento destas identidades como identidades em uma sociedade que é hetero-cis-normativa, e que também marca uma série de fatores e diferença no modo de existir socialmente”.

Mel Campus. Foto: Arquivo Pessoal

Renata Borges complementa:

“A importância do dia 29, ela é uma marcação e de certa forma, uma reorganização enquanto movimento de travestis e transexuais. Neste dia, nos últimos anos, a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) devolve um dossiê com pesquisas voltadas à população de travestis e transexuais, como estatística de vida, índice de violência, quantas pessoas trans foram mortas no Brasil… então dia 29, além de ser o Dia da Visibilidade, uma consagração, mas também a gente reverencia todas as que já passaram, de certa forma, todos os corpos tombados, todos os corpos marginalizados… Quando a gente pensa no dia 29 como uma data protagonista, a gente vê também que a gente não avançou, porque nenhum projeto de lei, vindo dos deputados ou senadores atingiu a totalidade de pessoas travestis e transexuais. Tudo pra nós veio do STF (Superior Tribunal Federal). A lei de alteração de nome e gênero… então Dia 29 é um bolo de aniversário, sem vela, porque por mais que a gente esteja cortando o bolo, não dá pra gente cantar parabéns pra você na nossa festa, porque tem muita coisa pra avançar, muita coisa, principalmente quando a gente pensa num país territorial como o nosso, como o Brasil, onde políticas públicas são desmontadas e vivemos na maior miserabilidade possível. Um país com tamanhas desigualdades sociais. Parece até estranho, né, 2021, a gente tendo que refrisar as desigualdades sociais. Isso vai atingindo a gente. Isso vai impactar esse corpo trans.”

Renata Borges. Foto: Arquivo Pessoal

A produtora cultural, Juuara Barbosa, declara: “eu acho super importante a gente ainda falar sobre o Dia da Visibilidade Trans, porque é uma população totalmente negligenciada, tão negligenciada que os órgãos oficiais se recusam a compilar informações, dados sobre. Se não fosse a ANTRA (Associação Nacional de Travestis), inúmeras outras iniciativas voluntárias, por exemplo o Grupo Gay da Bahia e tals, nós não teríamos o pingo de informação que nós damos de norte pra delimitar nossa expectativa de vida, a nossa empregabilidade e tudo mais. E quando eu digo que nós somos uma população extremamente desassistida, porque se você for fazer um recorte aqui por Londrina (cidade do norte do Paraná), a quantidade de meninas travestis que estão em situação de rua, na sua maioria são travestis pretas.”

Juuara Barbosa. Foto: Arquivo Pessoal

A pandemia acentuou as diferenças sociais e evidenciou problemas estruturais de nossa sociedade. Juuara Barbosa, avalia: “estamos em 2021, numa situação completamente atípica, porque a gente está numa crise sanitária internacional e isso só acentua as desigualdades, e aí a gente vai chegar onde eu quero falar, que é a realidade das travestis e transexuais, que foram impactadas diretamente, sobretudo as meninas travestis, porque não tem como pegar um atestado e parar de ir pra rua durante a quarentena, os clientes pararam de sair, muitos, devido a quarentena, então perdeu cliente, os poucos que vão querem pagar menos, porque a crise tá pegando todo mundo, não só as travestis.”

E complementa: “A falta de oportunidade obriga a gente a ter que se jogar em situações que nos colocam em vulnerabilidade desnecessária, sobretudo a rua. Ainda tem umas meninas que conseguem fazer uns clientes pela internet, que acaba sendo mais seguro e dá até pra cobrar mais, mas na rua, é o mais degradante possível, vc ficar chupando pica das 9 da noite até às 6 da manhã, pra ganhar 20 reais por vez. Fora os machos, que na maioria esmagadora, querem que você seja ativa, e é horrível ser ativa, pelo menos no meu caso é horrível. Eu nunca gostei do meu pinto, eu nunca entendi o porquê de eu não ter nascido com uma rachadona, mas depois eu fui entendendo, que eu não sou uma mulher convencional cis, eu sou uma mulher trans, eu sou uma travesti. Então é importantíssimo o Dia da Visibilidade Trans, para que as pessoas saibam que a gente, embora esteja fadada a essa realidade.”

Vivemos no país que mais mata a população de travestis e transexuais no mundo, que possui uma expectativa de vida de 35 anos. Vítimas de crimes de ódio, motivados pela transfobia. No país que mais mata a população LGBTQIA+ no mundo. No país que mais mata os ativistas sociais do mundo. Esse ranking denota o descaso do poder público com vidas que consideram de menor valor. Juuara Barbosa denuncia: “A gente morre cotidianamente. A expectativa de vida nossa, a gente tem uma maldição, a gente tem decretado sobre as nossas cabeças que a nossa expectativa de vida é de 35 anos. Então todas nós temos um pouco de medo, que a gente fala: caralho, a gente vai morrer! E as pessoas estão cagando. Começa pelos órgãos oficiais que estão cagando porque não produzem dados oficiais para que a gente possa acessar políticas públicas reais, efetivas, até a vizinha que tá vendo a travesti tomar paulada e não tá fazendo nada, né, porque parece que no imaginário social, nossos corpos são dignos de toda violência, de toda invisibilização.“

Renata Borges acentua: “sabe quando a Constituição diz que todos nós somos iguais perante a lei, independente da raça, do credo, então, acho que nós pessoas trans, nós como travestis, a gente gostaria disso, sabe, eu gostaria de andar na rua sem ser motivo de chacota, eu gostaria de acessar vários departamentos públicos, sem me sentir constrangida e violentada, de certa forma, sem os olhares condenadores dizendo que ali não é o meu espaço, coisas que parecem ser normais pra comunidade cis, independente de ser LGB (Lésbicas, Gays e Bissexuais), pra nós é uma coisa meio surreal, assim, de eu poder entrar num banheiro sem questionarem ou com medo de sermos questionadas, porque ainda uma decisão no STF que ainda não julgou, qual é o banheiro que as pessoas transexuais devem utilizar. Então, enquanto os gays conseguiram adotar, doar sangue, o movimento de mulheres estar fazendo políticas públicas contra o feminicídio movimento negro está se reorganizando e discutindo acessibilidade. Nós estamos paradas no banheiro. Acho que é essa a sensação de que nós nunca saímos do banheiro, sabe essa sensação? Ela é terrível. Ela nos deixa invisível e nos desmonta, porque a partir do momento que ainda estamos em votação, as pessoas se acham no direito de nos mutilar, e nos barrar vários acessos. Em algumas delegacias, por mais que a gente seja alterada, em termos de documentos, algumas delegacias de mulheres ainda dizem que não estão preparadas para nossas demandas, mas nós estamos presentes desde o Brasil Colônia, com a primeira travesti que chegou no Brasil, Xica Manicongo, uma travesti negra que veio da África, com vestes de quimbanda, comprada por um sapateiro e morou na Bahia de todos os santos, condenada pela Inquisição, pela Igreja. Que Igreja é essa que agora até diz que estão tentando nos incluir. A pauta não é nova, nós não somos novas, nós somos a manifestação da diversidade, das construções sociais e das construções reprodutivas também, pode se dizer, mas ainda somos vistas como nada. Então, quais são, parece meio antagônico, né, acho que por isso que nós somos invisíveis, nós somos invisíveis em todas as esferas, a Constituição ainda não chegou para nós, a gente ainda não sentiu o gostinho da cidadania.”

A estigmatização e a invisibilização, muitas vezes, leva a população T a viver à margem da sociedade, diante de tantas negativas de acesso. “algumas poucas tem conseguido alguns acessos e por enquanto, não fazem parte dessas estatísticas, né. Eu já fiz rua em 2019, que foi o ano que eu fui mais humilhada financeiramente na vida, e não tenho vergonha de assumir isso, não tenho vergonha de falar e se for necessário fazer novamente, com certeza farei, porque é isso, né, além de travesti eu sou preta, a minha pele chega primeiro em qualquer lugar e desde pequena, sempre me foi ensinado, de uma forma assim, bem violenta, que a gente precisa correr atrás, de todas as formas possíveis. E aí também não falando de uma meritocracia, né porque é impossível para pessoas pretas e travestis, sobretudo. Mas é pra falar que a gente vive e agora tem se levantado uma gama gigante de travestis que tem tido muitos acessos, sobretudo essas que tem se assumido a partir de uma graduação em universidades públicas, então a gente vê que daqui alguns anos a nossa estimativa ela vai melhorar, mas por enquanto não, por enquanto a gente continua à margem da sociedade. Aí eu digo especificamente as travestis, porque quando a gente for falar das pessoas trans, os meninos trans, na sua maioria tem uma passabilidade cis exorbitante, que permite então que eles consigam emprego no mercado formal, de forma muito mais fácil vide as lojas de conveniências, shoppings e tudo mais. Já as travestis não, porque as pessoas não estão acostumadas com o corpo das travestis andando durante o dia, né. É só à noite. Só a noite que nos é reservada e é só à noite que a gente pode andar, se sentindo minimamente segura. Nossa, que contradição, desgraçada. E é muito louco, porque tem vários dados que vão norteando a gente tentar entender sociologicamente como as coisas acontecem, porque as pessoas travestis são as que mais morrem no país, LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trangêneros, Queers, Intersexos, Assexuais e outros mais) no geral, mas assim, fazendo esse recorte para as travestis, e ao mesmo tempo, o pornô que é mais consumido é o de travestis, de mulheres trans. Então é assim: eu gosto, quero pegar, mas aí eu vou despejar no corpo dessa travesti esse meu arrependimento essa minha incompreensão de mim mesmo”, analisa Juuara Barbosa.

“Agora a gente é usada. 92% da nossa população tá na prostituição, puta, né, prostituta, puta, messalina, mulher da vida, quenga, rapariga, e agora também a gente está sendo prostituída pelo sistema eleitoral, como existe uma defasagem de mulheres cis se candidatarem, porque o sistema é cruel, agora os presidentes dos partidos cafetinam esses corpos trans, porque o fundo partidário, esses 30%, ele vai tentar centrar em alguma parte do meu corpo, independente que de eu ser cirurgiada ou não, e aí eu vou ser negligenciada mais uma vez, porque eu não sei quando é que eu vou ganhar, quanto é que veio pro partido, mais uma vez a gente vai ser prostituída, porque agora, o cafetão nosso não está mais na rua, mas também estão nos partidos políticos, gerenciando o nosso fundo eleitoral. Eu não sei quando é que nós vamos ter uma visibilidade realmente, nem sei se ela vai chegar e nos abraçar, mas eu tô aqui, lutando e vigiando, lutando pela democracia, lutando pela luta de classes, pela luta de gênero, sem saber que muitas vezes eu não sou nem reconhecida como cidadã. E essa é a sensação, um apagamento, uma violação, enquanto a minha cidadania”, desabafa, criticamente, Renata Borges.

A invisibilidade da população T é o resultado de uma negação das existências plurais. Para Melissa Campus, “a invisivilidade sempre foi uma marca registrada quando se nega a reconhecer as identidades de gênero, principalmente as identidades trans, né. Numa sociedade onde a base é religiosa em que apenas o sexo feminino e masculino são reconhecidos como aceitáveis socialmente, a desvalorização das identidades trans acaba acontecendo exatamente pela negação, né. Negação dos direitos, negação dos desejos, das oportunidades. Então, eu costumo dizer que quando se é identidade pessoa trans a pessoa acaba tirando os direitos e isso significa uma morte social, né. Uma morte social que acontece através da invisibilidade e do discurso, de que nós não temos direito algum enquanto pessoas trans, numa sociedade cis-hetero-normativa.”

“Uma das coisas que sempre me incomodou enquanto pessoa trans é que tudo que acontecia de visibilidade sobre as pessoas trans era pejorativa, no senso de desvalorização, no senso de condenação, de estigmas, de retirada de direitos, e isso acaba jogando as pessoas trans em um sistema à margem da sociedade. E através da negação de direitos e oportunidades, a maioria das pessoas trans acaba por sobreviver do universo da prostituição, estigmatizadamente, eu acredito que a culpada é a sociedade, que cria esse universo através da retirada dos direitos, mas também sustenta esse universo consumindo esse serviço, esses corpos, esse trabalho. Isso sempre me incomodou, porque eu sempre senti toda a potência do meu corpo enquanto pessoa trans, enquanto mulher trans, enquanto identidade de gênero feminino”, avalia Melissa Campus.

A visibilidade desejada é bem diferente das estigmatizadas páginas policiais ou de serviços sexuais, que historicamente foram destinadas às travestis e transexuais. Para Melissa Campus, “a visibilidade que eu sempre desejei, trabalhei e continuo trabalhando pra criar literatura, pra criar materiais que façam a sociedade conhecer, não superficialmente, mas aprofundadamente, o universo das pessoas trans, todo mundo que trabalha comigo, inclusive você, sabe que eu sempre toquei muito nessa tecla, de que nós precisamos criar uma visibilidade positiva, através dos nossos trabalhos, criar as oportunidades para que se possa desenvolver atividades pra que se possa criar literatura, ensinamento e entendimento, com relação às nossas pautas, às nossas existências, mas eu também reconheço as dificuldades que são muito grandes em desmitificar toda marginalização que existe sobre a população trans, através de toda uma história de discriminação. Eu acredito que a visibilidade que nós queremos hoje é a visibilidade da nossa alegria, da nossa positividade, do nosso brilho, dos nossos talentos, de todas as nossas produções, dos nossos ensinamentos, porque nós também temos muito o que somar, temos muito o que aprender, o que dividir e o que compartilhar com a sociedade.”

“Caraca, travesti tem tanta potência, sabe?! Eu sobretudo aqui em Londrina, conheci tantas tão poderosas, inteligentíssimas, muitas que escrevem bem, que seriam incríveis roteiristas, outras que dominam muito a câmera, que seriam social mídias babadeiras. As potências que todas tem. O que falta é oportunidade. As pessoas estão muito fechadas em seu pré-conceito, muito, muito, muito fechadas, assim… Eu participo de uma bolha, de um nicho pequeno de travestis que tiveram muitos acessos, sobretudo a partir de uma universidade pública, que é a Universidade Estadual de Londrina, que possibilitou muitos acessos para todas, aí eu vivo nesse nicho de travestis que não precisam se prostituir, de travestis que não estão vulneráveis a ponto de não estarem em situação de rua, e todas brancas, em sua grande maioria, que tiveram acessos e são privilegiadas, porque quando eu faço o recorte das trava preta, mesmo as que tem acesso à universidade, elas estão passando por uma série de dificuldades para se manterem lá, desde a prostituição, até pegar o ônibus, violência familiar, violência na própria universidade, então é muito tenso, porque é uma linha tênue ente uma possível meritocracia, porque você quer ficar falando pra essas pessoas que acessam esses espaços, pra elas continuarem o máximo possível, mesmo toda estrutura heterosexista e cisnormativa falando que ali não é o lugar dela. E aí a gente vê que não é só lá, todos esses espaços de poder e espaços de socialização, de um modo geral, eles não tido para as travestis. Então eu acho que a sociedade, alimentada, sobretudo pelo preconceito, alimentada sobretudo, pela ignorância, pela falta de conhecimento, sobre diversidade sexual, sobre identidade de gênero, sobre pessoas cisgeneras, sobre pessoas travestigeneres, enfim, toda essa falta de conhecimento legitima a forma como a sociedade nos vê, nos enxerga, nos coloca, nos aceita… é muito loco, assim, é muito loco… Se agente conseguisse impactar diretamente na empregabilidade, na moradia e no acompanhamento da saúde dessas pessoas, eu acho que, de repente, a gente poderia ter uma mudança aí nesse dado que coloca 35 anos pra vida dessas mulheres travestis”, analisa Juuara Barbosa.

Resistir e esperançar tem sido o trabalho e a vida de Melissa Campus, que tem na arte uma aliada de ativismo social e postura de vida e tem transformado sua existência e a existência de tantas e tantos: 

“Muitas vezes os discursos acabam caindo pelo vitimismo, se reduzindo muito à questão da falta de oportunidade e também da violência voltada às pessoas trans e a visibilidade que existe sobre isso acaba chegando ao outro lado da sociedade como um discurso de vitimismo, um discurso repetitivo, aonde a própria sociedade acaba desligitimando esse discurso pela falta de entendimento dela mesma. Eu sempre me dediquei à minha história, à minha vivência, aos meus trabalhos, sempre tentando criar uma visibilidade das belezas trans, as belezas que encantam, as belezas que mostram toda a satisfação de ser uma pessoa trans, partindo do corpo, partindo da força, partindo dos desejos, partindo de toda uma luta para se criar oportunidades muitas vezes não encontradas. A gente que trabalhou junto, sabe que a gente se sacrifica, a gente tira do bolso, a gente paga, a gente caminha, a gente produz, mas produz pra que haja mídias, pra que haja materiais, pra que haja visibilidade positiva. E você sabe, depois que nós começamos a trabalhar no ElityTrans, depois que nós começamos a trabalhar com a galera das artes, a gente acabou trazendo a existência trans travesti londrinense, eu digo em termos locais, pra um outro nível, um nível de reconhecimento, um nível de adoração, um nível de entendimento, que vai além dos discursos transfóbicos sociais. A gente acaba mostrando que o discurso de transfobia, o discurso de discriminação, o discurso pejorativo acaba não tendo sendo, exatamente porque na vivência, nas nossas ações, nos nossos trabalhos a gente mostra totalmente o contrário das pessoas que acham que tem o direito de nos julgar, de nos definir enquanto seres x, y ou vice-versa. Mas tamo aí, tamo aí na luta, tamo produzindo, tamo aí se renovando, estamos aí cada dia mais potentes, no sendo de para além das afetações para além os erros, para além de todas as questões que acabam muitas vezes nos tirando a vontade de trabalhar, a gente continua sempre firme e forte, produzindo e enxergando sempre o futuro, de onde essas ações positivas e de visibilidades positivas das belezas podem nos levar. Como diz você, uma frase maravilhosa que eu sempre levo comigo, que é de uma sapiência, de um ensinamento maravilhoso, que a gente tem, né querido, que criar novos mundos possíveis.”

Régis Moreira

Christiane Lemes

Juuara Barbosa

Melissa Campus

Renata Borges

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