Números disparam, a indiferença dos poderosos grita; só não mudam as angústias dos que seguem isolados

Por Mariana Guerin*

Eu me pego pensando no futuro sempre que me distraio. E para não enlouquecer, ligo a tevê. Num programa bem idiota para não pensar. Normalmente é uma receita, uma reforma, uma comédia romântica que faz meu coração palpitar. Mas quando acaba, eu penso. E não quero pensar.

Rezo para pegar no sono e quando acordo, os pensamentos flutuam a mil por hora: o que devo fazer? Estamos no meio de uma pandemia que só parece ter chegado por aqui. Só parece porque os números apresentados são baixos, então muita gente ainda não acredita. Às vezes eu não sei em que acreditar. Mas como eu sei interpretar textos, sei que uma hora esse número vai virar nome e eu sinto medo.

Não estou mais preocupada com o sonho que deixei fechado 40 dias atrás. Estou preocupada com o futuro. Mas eu sei que não adianta nada me preocupar com o que eu não posso controlar, e é por isso que a ansiedade grita.

Quando eu começava a viver o sonho, há pouco menos de um ano atrás, eu sentia os mesmos medos pelo futuro. As mesmas incertezas ao tomar as decisões. Então, o problema não é a pandemia, sou eu. Eu preciso aceitar que não sei muito bem o que quero para a minha vida.

Entre os pensamentos que me inquietam está a vontade de ir embora. De recomeçar em outro lugar. Como uma folha de branco a preencher com os dados da nova pessoa que me tornei enquanto aqui vivi nos últimos 17 anos.

Eu não sou aquela que se mudou para cá para iniciar a carreira na profissão escolhida aos 22 anos. Também não sou a jovem que morou sozinha pela primeira vez aos 26 anos e comprou apartamento aos 27. Não sou a maluca que iniciou uma sociedade com a professora de natação aos 28 anos e foi passada para trás. Já paguei essa dívida.

Eu não sou mais a balzaquiana que viveu os 30 anos como se não houvesse amanhã, enquanto tentava ocupar mais espaço na profissão. Eu descobri que já ocupava um grande espaço sendo apenas a repórter que era. Mas precisei experimentar um outro lado do jornalismo para entender isso. E tudo bem. Me fez ser quem sou hoje.

Eu não sou a prima que iniciou uma nova sociedade com a caçula da família para adoçar a vida alheia. Não sou mais a amiga que abriu a sociedade para outras pessoas opinarem no meu plano B e estragou tudo. De novo. Não sou a editora que chorava em frente ao computador todo dia e que pediu demissão da empresa que a ensinou a ser jornalista, apesar de estar sempre pisando em ovos desde o dia um.

Eu não sou a mulher que decidiu recomeçar um negócio sozinha, na cozinha de casa, vendendo, produzindo, embalando, entregando e agradecendo quando recebia pedidos suficientes no final de cada semana. Essa e outras tantas folhas em branco eu já preenchi. Tenho mais é que agradecer pelas oportunidades. E sou grata, de verdade.

Eu preenchi a folha que faltava do sonho de ter um café. Um sonho que nasceu sei lá como e se tornou realidade quando mais uma oportunidade se abriu para a pessoa corajosa que eu sei que sou quando o assunto é trabalho.

Mas cada parada para respirar me leva a pensar se esse é o sonho certo. O derradeiro. Se é que precisamos ter um único e derradeiro sonho para nos sentirmos realmente completos. Esse é apenas mais um sonho bonito e tangível, que se mostra vazio como todos os outros vividos até aqui. Não sei. Só sinto.

Uma imagem reconfortante que vem sempre, desde a adolescência, é a de andar de bicicleta livremente pela cidade de nome diminutivo. De visitar as tias, uma a uma. De ouvir histórias, comer pão quentinho e bolo gelado. Beber tubaína. Essa imagem nunca sumiu. Vira e mexe ela volta. E quase sempre quando a dificuldade da rotina aparece. Coincidência ou escape. Não sei. Só sinto.

Então eu escrevo para colocar os pensamentos em ordem. Meu pai diz que eu devo mesmo é escrever. E eu vejo minha profissão ser massacrada dia sim outro também. Vejo amigos com o dom de informar sendo demitidos, mal remunerados, quando pagos. Eu sinto medo de trocar o certo pelo incerto. Mas mais uma vez eu não sei se este certo é realmente palpável. Não dá para saber o que será amanhã. Essa incerteza e essa angústia é geral, eu acho.

Pensar demais, sentir demais, ouvir demais é assustador para quem não sabe muito bem o que fazer com toda essa informação. Não adianta ser racional ao interpretar uma notícia sobre uma pandemia e não ter forças para levantar da cama pela manhã. Não adianta saber que é preciso retomar uma certa normalidade na vida e ficar se perguntando se a antiga normalidade realmente fazia algum sentido.

Eu tenho ouvido o canto dos pássaros. Eu tenho cultivado a paciência de esperar o tempo do fermento natural fazer o pão crescer. Eu tenho parado para respirar quando a mão sua sem mais nem menos. Eu tenho ouvido sobre o sentido da vida. E tenho dormido no sofá sempre que a cama me parece grande e solitária demais. Eu não cheguei a nenhuma conclusão e talvez nunca chegue. Viver um dia após o outro é a coisa mais difícil que já tive que fazer.

A única certeza é a de que nunca tivemos controle de nada. Nem quando fizemos tudo certo, seguindo o plano. Nem quando criamos novos planos, achando que a alternativa era garantia de felicidade. Nem na ausência de planos temos controle sobre o que a vida nos oferecerá.

Será que ao assumirmos esse descontrole conseguimos ser finalmente livres? Será que essa é a resposta que estão querendo nos mostrar e estamos com medo de ver? Será que se assumirmos que não temos controle, podemos sair por aí como se nada fosse e se morrermos é o que deve mesmo acontecer? Será que o medo é só mais uma forma de controlarmos o incontrolável? Será que ele é mesmo desnecessário se passarmos a enxergar o descontrole como parte vital da existência?

Se existe um vírus, se pessoas transmitem e outras morrem, se o mundo parou, será que não devemos parar também, ainda que tenhamos abandonado qualquer sensação de medo? Quando minha loucura começa a afetar o outro? Até que ponto eu sou só mais um ou sou peça importante da engrenagem chamada humanidade? Eu não sei. Num isolamento escolhido e por tempo indeterminado eu só posso sentir. E seguir duvidando.

*Mariana Guerin é jornalista e confeiteira em Londrina. Adoça a vida com quitutes e palavras.

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