Por Carlos Monteiro*
Dias atrás conversava com o jornalista e escritor Eduardo Reina. Ele se preparava para um exame e precisava ficar dois dias em completo jejum. Aquelas histórias que não sabemos exatamente se é uma auditagem corpórea, prova para faquir ou penitência pelos pecados cometidos em relação à gula. No dia seguinte, horas intermináveis, Reina me confessou que estava tendo delírios com comidas, sentia os aromas, aguava a boca e prendia o fôlego. Enxergava à sua mesa um belo filé à milanesa, acompanhado de salada russa, ali no Café Lamas, mesmo estando em São Paulo. Teve um delirium Manducare e assim ficou até conclusão da averiguação. Uma tortura.
Como dizia o saudoso Joelmir Beting, na conclusão de seus comentários televisivos no Jornal da Noite: “é matéria para pensar com os travesseiros”, pus-me a fazê-lo naquela madrugada insone, imaginando qual seria o meu êxtase comensal, além de indagar a amigos queridos qual seriam seus desvarios caso passassem por tal experiência almejando o nirvana cenobita.
Ouvi histórias maravilhosas e confissões de gula explícita, não essa pecaminosa, listada entre as sete capitais, mas a comedida, saudável, salutar, legitimada e limitada aos prazeres cometidos, conscientemente, à mesa. Foram muitos os deságues em oceano do “deu água na boca”, aliás a expressão que mais ouvi e li.
Percebi que muitos restaurantes fizeram mais que história. Eles deixaram marcas importantes na memória gustativa e afetiva sobremaneira. Como as cidades perderam casas antológicas e pratos memoráveis, deixando convivas à deriva e desamparados.
Foram lembranças muito interessantes, indo de comidas caseiras, preparadas com doses especiais de carinho e afeto, tradicionais restaurantes brasileiros indo até além-mar em tascas e osterias. Tudo muito bem temperado como manda a receita e os cardápios.
Fotógrafos costumam ter memória visual acurada, isto é fato. Costumam também ter boas lembranças quando se trata daquele prato que provoca tremedeira. Orlando Brito não fez por menos “Ahhhh. O filé fininho à milanesa do Le Coin, com purê de batata. Pena que o Le Coin não existe mais… ou o fusilli aos quatro queijos do Cesare, no Posto 6“. A fotógrafa, mediadora de conflitos, empreendedora social e carioca Márcia Barros, atualmente morando em BSB, mandou na lata: “pode colocar aí o Parmegiana do Beirute. É divino! Só que esse é de Brasília“. Foi quase uma declaração belchiorana.
Jornalistas são os mais ecléticos, o Affonso Nunes, por exemplo, fica com o Lombo de Bacalhau do Barsa do mestre Marcelo Barcellos. A querida Anna Maria Ramalho vai de moqueca de siri catado do Yemanjá de Salvador. Nossa intrépida Sônia Pompeu não titubeia: “camarão VG ao molho de champagne do TZ Leblon“. Já a Lu Fernandes nos conta passagens deliciosas: “Restaurante? Brasil? A sopa de feijão do Parreirinha depois das longas assembleias do Sindicato dos jornalistas. Madrugadas boêmias encerradas ali e, principalmente, os inesquecíveis pagodes da turma da Mangueira, incluindo o queridíssimo Jamelão, realizados anualmente para o show antes do carnaval. Aconteciam no Tom Brasil e depois a turma toda ia ‘pra lá’. Fechou, infelizmente”.
Chris dos olhos de mar, como fala o Mollica, se divide entre a paella, “que não tem mais no Shirlei, do Leme”, comida mineira só nas Gerais e, “pra simplificar: amo o Kasler com salada de batatas do Bar Brasil”. Boa pedida Christina. Tânia Machado é outra jornalista que traz lembranças de sua infância em Minas: frango com quiabo, arroz e feijão feito pela sua avó.
João Luiz de Albuquerque, sempre deliciosamente bem humorado escreveu: “meu prato preferido se estivesse fazendo um jejum rigoroso ia ser uma feijoada completa à Augusto Severo da Casa da Feijoada. Já que é Carnaval, o restaurante patrocinou, durante anos, o Vem Ni Mim Que Sou Facinha, bloco que nunca saiu de um canto da General Osório. E não ia contar para o médico”. O Vem Ni Mim é exemplo de que concentrar e não sair leva ao nirvana. Nelson Vasconcelos, apaixonado por uma feijoada completa, foi exatamente nela. Jogada certeira. Arroz branco, farofa e a malagueta, laranja-Bahia ou da seleta. Vamos pôr água no feijão.
(continua amanhã)
*Carlos Monteiro, 61, é cronista, jornalista, fotógrafo e publicitário carioca. Flamenguista e portolense roxo, mas, acima de tudo, um apaixonado pela Cidade Maravilhosa.
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