Designer de moda, o paranaense César Scolari lavou pratos para sobreviver e revelou-se um talentoso cozinheiro ao disputar a final do Top Chef Brasil
Por Mariana Guerin*
Tudo o que o chef de cozinha paranaense César Scolari, 40 anos, mostrou em 2020, quando foi um dos finalistas do Top Chef Brasil, exibido pela Rede Record, é exatamente ele, sem tirar nem por. Inclusive o amor por sabores, cores, formas, pessoas e pela Maria Bethânia.
Nascido em Alvorada do Sul, filho de mãe italiana, César tem Pedroso no sobrenome, mas adotou Scolari em homenagem à avó materna, sua maior incentivadora na cozinha. Cresceu com as irmãs mais velhas na cidadezinha do interior paranaense, “brincando nos quintais, nos pomares e na roça”, lembra.
Muito estudioso, passou a adolescência imerso nos livros: cursava magistério pela manhã e contabilidade à noite. Às tardes, estudava espanhol, pintura e desenho. “Era aquele CDF enturmado e comunicativo, mas não namorador.”
Assumir sua homossexualidade vivendo numa cidade pequena como Alvorada do Sul foi uma luta interna. “Foi o que me fez ser mais forte porque não era permitido assumir a homossexualidade numa cidade pequena. Tinha essa coisa de ficar no armário. E quando saí, foi uma coisa que levei para a vida: a gente não deve negar a si mesmo. Me aceitar foi ótimo. Em termos de postura e no geral. Você se aceitando fica mais feliz”, explica César.

“Com 18 anos, quando saí de Alvorada do Sul e fui para Londrina, eu me permiti ser gay e não lutar comigo mesmo. Isso me fez ser mais forte”, completa o chef, que garante ter um ótimo relacionamento familiar. “Por opções da vida acabei escolhendo a carreira e morando distante da família, mas isso não impede que tenhamos afeto e contato”, declara César, que hoje comanda o restaurante Veríssimo, na capital paulista.
Sua primeira tentativa numa universidade foi cursar desenho industrial, que ele abandonou no último ano, quando o curso ganhou o nome de design. Anos depois e já com bastante experiência como cozinheiro, ele se formou em gastronomia pela Unifil. Mas o encontro dele com a culinária começou anos antes, quando decidiu sair do Brasil em busca de um sonho em terras italianas.
“Saio do Brasil com 20 e poucos anos e vou para Milão, com aquele sonho de ser um garoto da moda, de emplacar como estilista ou um byer de moda e, chegando lá, a realidade é outra. Não foi fácil, passei um período que chamava de ‘Carandiru’, num lugar meio clandestino”, recorda César, que viveu oito anos na Itália.
“Comecei em subempregos, desde passar roupa até cuidador de idoso. Até que com um mês na Itália comecei como lavador de louça num restaurante peruano. Sempre me dedicando e ajudando o chef na cozinha. Era um chef de Santo Domingo, que cobrava muito e me deixava com raiva, mas lá criei uma base e passei a compreender a cozinha latina, até que passei a cozinhar em um dos turnos do restaurante”, lembra.
Dentro do restaurante peruano havia um mercado, onde eram vendidas marmitas latinas preparadas pelo jovem de Alvorada do Sul. “Dali veio um convite para participar de um festival latino americano, no qual tive a oportunidade de viajar pela Itália fazendo cozinha brasileira. Cozinhava feijoada. Nunca tinha cozinhado na vida, mas a necessidade de sobrevivência faz com que a gente se reinvente profissionalmente.”
Enquanto trabalhou no Nova Andina, restaurante peruano que ficava na região central de Milão e foi premiado como o melhor restaurante latino americano da Itália na época, César morou num apartamento que ficava na parte de cima do restaurante e agrupava gente da América Latina toda. “Lá a gente morava no trabalho e recebia café da manhã, almoço e jantar.”
Um amigo o convidou para trabalhar em um restaurante chamado Al Covo, na região da Porta Romana, especializado em easy food. “Eram carnes grelhadas e tudo para se comer com a mão. Comecei como lavador de prato e como já falava italiano e era muito comunicativo, o gerente me convidou para ser garçom. De garçom passei a gerente da casa e responsável pelos molhos. Entrava de manhã e preparava as salsas e à noite era gerente”, conta César, que trabalhou lá por três anos. Na época, o local ganhou como melhor restaurante easy food da Itália, de acordo com um ranking divulgado por uma revista italiana especializada em gastronomia.
“Queria crescer e fui trabalhar em um restaurante perto de uma universidade, onde assumi a cozinha. Lá tinha mesa de frios e pratos do dia e pude fazer a minha cozinha, no dia a dia. Foi a primeira vez que tive liberdade criativa.”
Em seguida, César transferiu-se para o Palo Alto Cafe, que era uma mistura de balada com aperitivo bar. “Eu montava os aperitivos, trabalhava como garçom e era responsável pelo bar”, rememora o chef, que em seguida ingressou na equipe de um restaurante de cozinha mexicana. “Tive bagagem. Conheci várias cozinhas, truques e condimentos, foi um momento de muito aprendizado.”
“Quando você mora fora acaba tendo contato com pessoas do mundo todo. Eu morava numa república onde tinha gente da Bielorrússia, do Cazaquistão, do Sri Lanka, que levo para sempre no meu coração, até por ver o sofrimento dessas pessoas. Porque eu fui para a Itália num sonho, mas não como esses meus amigos bielorrussos que saíram de casa pela fome, a pé.”
“Eu cresci muito, conheci várias culturas: tinha francês e cubano também. No reality, fiz cozinha cubana e nunca fui a Cuba. Mas tinha amigos cubanos e frequentava a casa deles e comia pratos que eles faziam”, comenta o chef, reconhecendo que a melhor lição de sua temporada italiana foi a vivência multicultural, “que te abre a mente para um processo criativo e até mesmo para se entender”. “Ao mesmo tempo que você vê grandes vitórias e muito luxo, como na cidade de Milão, você vê a realidade de muitos estrangeiros que saem de muitos países para correr da fome.”
Para César, sua experiência como designer de moda, em Londrina, antes de partir para a Europa, contribuiu diretamente para seu sucesso na gastronomia. “Caí na moda por acaso. Estava fazendo uma peça de teatro e por meio de uma relação com o figurinista, acabei aprendendo sobre esse universo da moda. Tivemos uma sociedade, que não deu certo, assim como o relacionamento. E aí criei uma marca própria, tinha costureiras, fazia croquis e estudava design”, enumera.
“Nesse ponto, a criação ajuda muito na cozinha. O gosto pelo belo, tendência. Por que tem que ser tudo padrão? Por que não podemos ousar, criar, usar atitude, ter estilo?”, questiona o chef, para quem seu próprio modo de vestir demonstra atitude, senso de liberdade, ainda mais quando ele não podia ser quem era quando vivia na pequena cidade do interior paranaense.
“Moda traz uma forma de atitude, de berro: pode ser política, pode ser movimento de expressão. Isso tudo a gastronomia também tem e isso é legal. Essa visão que a moda me deu, de ter uma identidade, eu levei comigo como chef e consigo me ver nos meus pratos”, compara César. “Até mesmo no reality, os críticos falaram: pessoas vão passar uma vida inteira tentando ter a assinatura visível que você tem. A moda ajuda a forma, a atitude. Você pode ser um ser político por meio da imagem, por meio da gastronomia”, completa.
Para César, participar do Top Chef foi um sonho realizado. “Você ir para a TV, num talent show, é muito gratificante mesmo. Só de passar por um processo seletivo e saber que seu trabalho está sendo avaliado por críticos e não só pela produção”, opina.
Outro sonho é se dedicar à carreira acadêmica, “passar um pouco dos meus conhecimentos, e também ter um canal de gastronomia, estilo de vida, música, moda. Nem eu sei, mas é um sonho um canal onde as pessoas possam ter mais acesso ao meu trabalho. Mostrar um pouco como funciona essa cabeça louca do César que mistura moda, design, gastronomia, atitude”.
Apesar da personalidade alegre e expansiva, César cultiva um “espírito velho” nas horas vagas. “Gosto de ficar em casa, amo receber, acho que é um dom, o da hospitalidade. Gosto de receber pessoas, de ir em sebo procurar vinis, visitar museus, ir em brechozinhos procurar objetos de decoração, peças que possam servir para fotografias de gastronomia, e gosto de ler livros na área da gastronomia”, cita.
Além de ser um ótimo anfitrião, ele se considera muito musical e curte especialmente MPB. “Gosto muito de Maria Bethânia, Caetano, escuto muito essa nova MPB, Johnny Hooker, Silva, Urias.”
“Estou ouvindo, nesse momento, essa comunidade trans, que está transformando não só uma Pabllo Vittar, que mostra uma representatividade numa comunidade, mas também Urias. Tem também As Baías e a Cozinha Mineira, muita coisa alternativa. Mas não abro mão dos meus vinis de Bethânia, Caetano, Lulu Santos, mesmo Xuxa, porque recordar a infância traz alegria.”
“Creio que meu gosto musical é tão louco quanto eu”, brinca o chef, que em sua participação no reality da Record ficou conhecido por cozinhar tranquilamente cantando Maria Bethânia atrás da bancada e “rebolar a raba” como Anitta depois de conquistar uma faca de ouro, além de ser elogiado pela própria rainha dos baixinhos após cozinhar pratos veganos deliciosos para a convidada do programa.
“Meu maior desafio até agora é trabalhar com criação. O Top Chef era sonho e desafio. Lá eu tinha que mostrar minha criatividade para o Brasil todo, porém lidar diariamente no restaurante com custos, fechar as contas, fazer com que seja lucrativo, ver que seu trabalho pode gerar renda para outras pessoas, esse é o desafio mais difícil”, reconhece.
“Manter uma equipe dedicada e aplicada e até mesmo alimentar sonhos é o que me deixa mais feliz no meu dia a dia. É ver que pessoas que não tinham nenhum conhecimento de gastronomia depois de anos saíram de situações de risco, das drogas, das ruas e hoje estão ocupando cargos de subchefia e primeiro cozinheiro. Isso é muito gratificante. É melhor que qualquer reality.”
César destaca a história de uma de suas funcionárias, que saiu de Jericoacoara, no Ceará, e chegou em São Paulo com 13 anos, sofrida, sem dinheiro para estudar, mas com amor pela gastronomia. “Começou comigo como auxiliar de louça e hoje é subchefe e meu sonho é que um dia ela seja minha chefe.”
“No dia a dia, ver os sonhos de pequenos funcionários serem realizados é muito gratificante e é um desafio, porque além de entregar um produto para o cliente, tem que gerir várias pessoas de vários caráteres e origens diferentes e transformar isso num ambiente harmônico. E esse é meu maior desafio e o que eu amo: acordar todo dia, ter uma equipe, cativá-los e mostrar que gastronomia vale a pena”, declara César, reconhecendo que não leva tão a sério a competição que existe na cozinha.
“Hoje posso dizer que grande parte dos meus amigos são colaboradores com quem tive a possibilidade de trabalhar e vê-los crescer e ficar feliz de eles irem embora”, comenta o chef, que não se considera generoso, apesar de todo mundo que o conhece dizer o contrário.
“Conhecimento tem que ser passado à frente, com cada pessoa a quem eu ensinei algo, eu aprendi algo também. É muito inspirador, muito gratificante ter essa troca de energia. Dá para fazer amigos na cozinha sim”, finaliza o chef, que de tão autêntico, se define como “não recomendado à sociedade”. “Essa frase eu cresci ouvindo e hoje eu posso ser quem eu sou, da forma que eu sou. Goste ou não, esse sou eu.”
*Mariana Guerin é jornalista e confeiteira em Londrina. Adoça a vida com quitutes e palavras
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