Foram 58 mortes causadas por agentes de segurança em 2020, contra 36 no ano anterior; PM encara números com normalidade
Murilo Pajolla, especial para a Rede Lume
Foto em destaque: Reprodução Tem Londrina
No ano marcado pelas perdas trágicas provocadas pelo novo coronavírus, o aumento da letalidade policial engrossou a assustadora estatística de mortes em território londrinense. A cidade registrou em 2020 aumento de 60% nos óbitos provocados pelas forças de segurança. Foram 58 mortes em 2020 contra 36 em 2019. O quadro é encarado com relativa normalidade pela Polícia Militar (PM) e pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR), órgão responsável por divulgar o balanço e fazer o controle externo da atividade policial.
Por outro lado, os familiares dos mortos se revoltam alegando falta de transparência nas investigações e por verem os inquéritos sendo arquivados sem que haja responsabilização por excessos ou crimes praticados pelos policiais. É o caso da professora Lúcia Solange Bueno, que teve o filho de 27 anos morto num alegado confronto, mas tem certeza que, na verdade, houve uma execução. Clique aqui e leia mais.
Com as 58 mortes no ano passado, Londrina se manteve na segunda posição no ranking de cidades paranaenses com ações mais letais, atrás apenas da capital, Curitiba. A elevação observada na cidade é superior à do Paraná, onde os casos cresceram 23,8% no mesmo período, passando de 307 para 380. As estatísticas também levam em consideração óbitos em ações de guardas municipais e da Polícia Civil, mas a maioria dos episódios ocorre durante operações da PM.
O coordenador estadual do Gaeco, Leonir Batisti, aponta que o crescimento das mortes coincide com o início da pandemia. “Até março [de 2020] tínhamos números compatíveis com o ano anterior. E a partir de abril nós tivemos um aumento que gerou este triste resultado”. No início deste ano, entretanto, a tendência é de estabilização dos confrontos resultantes em mortes. “A pandemia continua, mas até agora os números estão similares. Neste momento não estamos constatando o recrudescimento”, avalia.
O Gaeco afirma que a maioria dos episódios no Paraná envolve criminosos perigosos. “Uma boa dose dos casos é tida como morte por reação policial de pessoas que estavam armadas e comprovadamente cometeram crime. A outra situação é quando o policial chega sem maior zelo e atira. Há casos extremos em que o policial está em desvio. Esses últimos são bem mais raros”, diz Batisti.
A atuação do MP-PR é alvo de críticas do representante do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH) no Paraná, Carlos Enrique Santana, que atua junto aos familiares dos mortos. “Eu tenho pessoas que foram mortas injustamente, tenho comprovação. O MP demora dois ou três anos para investigar, e depois a gente fica sabendo que o acusado foi inocentado. Nós não vemos esse órgão atuar com firmeza e qualidade. As famílias já começaram a perder a esperança no Ministério Público”, lamenta.

O coordenador do Gaeco garante que o MP-PR está fazendo a sua parte e atua no sentido de investigar, produzir provas e levar os casos à Justiça, mas o desfecho nem sempre é o esperado pelas famílias. “Talvez nós possamos dizer que nem nós próprios temos, em todos os casos, uma aceitação plácida daquilo que está sendo decidido [pela Justiça]. Mas o fato é que, mal ou bem, existe um sistema de Justiça que é esse em que funcionamos”. Ele admite que, muitas vezes, a falta de testemunhas e provas contundentes resulta em absolvição. “Existe a presunção de inocência. Pode não ser merecida, mas é o que há”.
O representante do MNDH reconhece a ausência de evidências como um fator que dificulta a condenação dos culpados. Por isso, defende medidas mais duras contra possíveis interferências no procedimento investigatório, como a coação de testemunhas. “Precisamos mudar a legislação. Sou da opinião que o policial que comete o crime de morte deve ser preso durante o processo de investigação. Se atirou e matou a pessoa, deve ir preso, até ser inocentado ou não”. Para o ativista, a “blindagem” da qual desfruta a PM contribui para a impunidade. “Só tem uma forma de resolver isso. Parar com esse ‘mimimi’ da sociedade em relação à PM. Eles são agentes de segurança, não são os donos do mundo. Enquanto isso continuar, não dá”.
PM defende risco iminente
O crescimento da letalidade policial não é motivo de estranhamento para o comandante do 5º Batalhão da PM, tenente-coronel Nelson Villa Junior. Ele aponta que a modernização e o investimento em tecnologia possibilitam mais agilidade e assertividade no trabalho da polícia, facilitando o flagrante delito. “Mais do que nunca a polícia está equipada, tanto logisticamente quanto tecnicamente. Temos uma central de operação e um mapeamento de onde está cada viatura. De modo que o rádio operador consegue fazer um cerco visualizando a situação. Ou seja, a polícia chega mais rapidamente do que chegava”.
O militar defende que os policiais têm o direito de preservar a própria vida, mesmo que o resultado seja um confronto armado. “Trata-se de repelir injusta agressão atual ou iminente. Esse risco iminente, quando o criminoso saca a arma, fica perfeitamente demonstrado. Quando se fala em legítima defesa, não se fala apenas de reação. O policial militar não é obrigado a esperar que o indivíduo atire”, explica, ao citar o artigo 25 do Código Penal, que também relaciona a legítima defesa ao “uso moderado dos meios necessários”.
Punitivismo não é voz única
Diferente da pandemia, as vidas perdidas em ocorrências policiais são majoritariamente de jovens e adultos. Um levantamento feito pela Rede Lume com base em informações divulgadas pela imprensa demonstra que os mortos em 2020 tinham entre 17 e 46 anos. A presidente do Conselho Municipal da Promoção da Igualdade Racial (CMPIR), Fiama Heloisa, ressalta que as vítimas também têm cor, endereço e classe social: em sua maioria, são negros, pobres e moradores das periferias.
“Eles são simplesmente tratados como bandidos por carregarem essas marcas. Esse tratamento nos remonta à nossa formação racista enquanto sociedade. E isso continua sendo reforçado, inclusive pelos agentes de segurança que estão nas ruas. Eles são treinados para identificar o bandido que tem essas características. O racismo permeia todas essas relações”, pontua.
Para Fiama, o poder público falha ao não oportunizar melhores condições de vida à população, mas investe cada vez mais em ações repressivas. “O Estado seria falho nesse ponto, e essa falha reflete nesse sistema que continua eliminando pessoas pretas. Com essa formação voltada à punição, abandona-se o conceito de apostar em uma via da educação, de regeneração dessas pessoas”.
A ideologia punitivista, expressa pela máxima “bandido bom é bandido morto”, promove a desumanização do negro pobre, naturalizando a violência contra esse segmento, que corresponde à maioria da sociedade brasileira. Questionado sobre esse ponto, o coordenador estadual do Gaeco aceitou deixar de lado, por um momento, as necessárias explicações jurídicas e lançou mão de um palpite sociológico.
“A sociedade parece responder a esse discurso [punitivista]. As mortes são indesejáveis, mas a sociedade é violenta. Entra o papel da disseminação das notícias, principalmente com a TV, que parece nos tornar um pouco insensíveis. O clamor social pode fazer o policial agir com menos prudência”, admite Leonir Batisti.
Por outro lado, há setores que se organizam na busca de uma solução real para o problema da violência urbana. A presidente do CMPIR reconhece na população tendências contrárias à letalidade policial. “Temos sim uma parcela que chancela essas atitudes, mas ela não é uma voz única. Nós defendemos um outro tipo de estrutura social, em que o Estado esteja presente desde o início oferecendo educação, creche, acesso à cultura, como forma de vislumbrarmos uma sociedade diferente, que se fortaleça por outros mecanismos que não sejam a repressão e a violência”, finaliza Fiama.
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