Por Carlos Monteiro*
Malhar o Judas – são muitos necessários atualmente, em todas as esferas – era uma diversão sem fim na minha adolescência. Passávamos a quinta-feira, no subúrbio carioca do Engenho de Dentro, Zona Norte da cidade, onde moravam meus avós, juntando trapos, calças velhas, sacos de estopa e aninhagem, material para enchimento e tudo mais que rendesse um bom boneco-representante de algum “desafeto”.
Podia ser o dono da vendinha que não fiava as bolas de gude, pipas, as balas de tamarindo e o Grapette, o Gini, a Mirinda, o Pop Laranja e o Crush à garotada. Um vizinho ‘goleiro’, das bolas de meia alheias, zunidas por um centroavante mais afoito, no campinho improvisado na rua de paralelepípedos com traves de Havaianas. Confiscava a pelota sem dó nem piedade, intramuros de sua residência – diziam as más línguas que as usava para sair, sorrateiramente, pelas madrugadas a desfilar nos inferninhos de Copacabana sob a alcunha de “Julliette – A Malvada do Méier”; puro desprezo da molecada.
Uma vizinha fofoqueira e faladeira, daquelas rádio-rua, pior que a Candinha, o Leão Lobo e o Nelson Rubens em conjunto, do tipo tudo sabe, tudo viu, tudo tem absoluta convicção, dando conta até do improvável. O vascaíno doente que importunávamos vestindo-o com a camisa do Flamengo, improvisada é claro, para sua alucinação roxa e promessas de vinganças da inquisição. O chato de galochas que reclamava da algazarra feita nas disputas com as pipas, linhas com cerol – mistura de vidro moído nas linhas de trens com cola de marceneiro -, ‘desbicadas’, ‘laçadas’, ‘relos’ e ‘marimbadas’ a fim de cortar o maior número de ‘adversários’ possível.
Na lista, preparada durante a semana, além dos nomes que todo ano a encabeçavam, só de chacota ou pirraça da turma, vinham também eles, sempre eles: os políticos. Eram tempos duros e difíceis, anos de chumbo, tudo era preparado na calada da noite com muito cuidado. Não dava para se expor.
Na sexta-feira guardávamos silêncio e oração, minha querida avó, católica fervorosa, seguia com toda fé e deferências necessárias o rito imposto pela Igreja Católica. Não se ligava o rádio, não se via televisão, não havia falatório, comia-se frugalmente um peixe somente à noite, pois o dia era de jejum. Cantar? Nem pensar! Lembro um certo dia, ainda bem menino, assoviei e cantarolei uma melodia qualquer dos Beatles de quem era fã mirim. Imediatamente fui repreendido. Me perguntou se eu não sabia que era Sexta-Feira Santa. Confirmei que sabia, no que fui retrucado:
— Então por que você está assobiando?
— Porque eu sou feliz!

Ela riu, me fez um afago e pediu carinhosamente que eu mantivesse, naquele dia, a felicidade consternada. Havia outros 364 dias para demonstrá-la.
Na madrugada de sexta-feira para a de sábado, os títeres eram pendurados nos postes sem as placas de identificação. O grande barato era a surpresa dos homenageados.
Dava um trabalhão; tinha o magote responsável pela guarda fiel dos bonecos, devidamente concluídos. Tinha a turma que despistava a vizinha mexeriqueira, montando guarda à sua porta observando o movimento das cortinas. A massa do poste, incumbida em pendurar o “enforcado” Judas-representado. A malta encarregada pela logística das escadas que deveriam ser altas o suficiente para que os janotas não fossem alcançados antes do malho. A mais importante função do grupo eram os vigias. É óbvio que as figuras carimbadas, já saturadas da “homenagem”, tinham a intenção de acabar com a nossa farra naquelas deliciosas manhãs de sábado. Aleluiah!
Ao amanhecer eram penduradas as placas de identificação. Outra festa. Desenvolvemos uma técnica eficaz e rápida para fazê-lo. Com uma vara de bambu, prendíamos os galhardetes à ponta e medalhávamos os agraciados pelo pescoço. Vez ou outra havia um “erro de pesso e o goleiro encimava a vizinha fofoqueira, de saias, e vice-versa, pura molecagem.
A malhação se dava com uma série de impropérios deflagrados de todas as partes, discursos emocionantemente engraçados, xingamentos dos condecorados, uma série de porradas no boneco e sua queima final. A única fogueira das vaidades que se extinguia para sempre ou, pelo menos, até o ano seguinte.
Essa tradição aos poucos foi sendo esquecida, já não se vê mais a “Malhação de Judas” no Sábado de Aleluia por aí. Neste passado, três de abril, a turma de Santa Teresa enfeitou os postes do bairro com uma série de eles, claro, políticos. Diante de tantos desmandos e insensatez, diante de tantas mortes ignoradas, diante de tanta dor e descaso, faltaram postes no bairro.
Como bem colocou Nando Reis, “…O mundo está ao contrário e ninguém reparou”.
A farra virou tristeza imensa!
*Carlos Monteiro, 62, é cronista, jornalista, fotógrafo e publicitário carioca. Flamenguista e portolense roxo, mas, acima de tudo, um apaixonado pela Cidade Maravilhosa.
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