Por Régis Moreira*

A necropolítica, a partir de minha livre interpretação das reflexões de Achille Mbembe, é instaurada e sistêmica contra corpos dissonantes: indígenas, afrodescendentes, idosos, crianças, pobres, latinos, pessoas com deficiência, mulheres, LGBTIA+, Queer… As políticas de extermínio matam esses corpos de diversas formas. As interseccionalidades de subalternização, quando somadas, sobrepostas, aumentam o potencial de vulnerabilização destes corpos. Assim nos matam com mais facilidade, com mais ódio. Os índices de violência dizem sobre isso. Quem são os inimigos internos e externos destes territórios devastados?

Somos o país que mais mata LGBTIS+ no mundo. Um dos que mais mata mulheres por feminicídio no mundo. Um dos que mais mata pobres, jovens negros periféricos. Um dos campeões do genocídio pelo Covid-19. Violências praticadas num terrorismo muitas vezes fardado, revestido das esferas de poder, que autorizam os assassinatos em nome da soberania, da ordem, dos valores tradicionais, da segurança pública, dos bons costumes, da família tradicional, e até, em nome de um certo deus, muito distante de ser amor.

Esse ódio está associado às formas de exercer a soberania sobre o outro, o domínio, a colonização ainda em curso, calcados nas geopolíticas corporais de processos de extinção das vidas que julgam valer menos, nas lógicas da passividade, das submissões, das subalternizações, a partir das performatividades femininas, negras, pobres, indígenas… Tudo que é diferente dos colonizadores masculinos brancos hegemônicos, que se julgam soberanos, e condenam à morte, tanto os humanos (que eles nem mesmo consideram humanos), como os animais, o meio ambiente, os rios, as florestas.    

Esse falo armado de poder soberano que invade, coloniza, na lógica que tudo pode, pois é valorado, detentor de poderes podres, dos mandos e desmandos, dos extinguires, das extirpações, genocídios e matanças em nome da lei. Acreditam que ou os que julgam subalternos se sujeitam ou morrem, nas lógicas de legítima defesa da honra, da pátria, da ordem, da segurança, do patrimônio, do privado… Porém, essa soberania falocêntrica, no fundo, é frágil, fraca, fracassada. Quanto mais esse falo se vê fragilizado, maior é o ódio empregado contra os corpos dos que consideram valer menos, dos diferentes, dissonantes, dissidentes. O perigo de uma fragilidade recalcada e revestida de ódio dos diferentes e das diferenças: ódios de classe, de gênero, de raça… ódios que se somam, por serem interpretados como ameaça à essa soberania patriarcal falocêntrica hegemônica.

O mercado, como regulador das lógicas falocêntricas, e seus governos fascistas, revelam a categoria do macho recalcado, das masculinidades ameaçadas, que os levam a matar o outro para se virem livres do risco de perderem a soberania. O poder da morte em suas várias dimensões, em tudo que se extingue: a morte de direitos, leis, conquistas. O poder da morte como ameaça, até a extinção definitiva, a execução à cabo, para a submissão das vidas.

A criação de mundos de morte, territórios devastados, caos, para subjulgarem e controlarem o outro, com objetivo de continuarem a exercer a soberania sobre os corpos que consideram, classificam diferentes, estigmatizando-os como abjetos, inumanos… vidas que valem menos, menor valia, ou nada valem. Segundo Emerson Merhy, o viagra para esse falo murcho das masculinidades ameaçadas se manter ainda ereto é a própria morte e os negacionismos em curso. Só a desobediência, revestida de esperança, pode ser uma dobra, uma fresta, uma possível resistência. “Eles combinaram de nos matar, mas nós, combinamos de não morrer”. Mas tá difícil diante de tantas vidas perdidas. Tá dolorido. Tá triste. O descaso e a violência tão duros de engolir. E não é pra engolirmos nada. Considero que somente a desobediência contra a ordem de morte, em suas pluralidades capilares, é que possibilitam produções de vida. De mortos-vivos/vivos-mortos a vivos-vivos, a vidas vivíveis. Diante dos territórios devastados pela pandemia, pelo massacre da comunidade de Jacarezinho/RJ, entre tantas outras matanças, pergunto: Quais utopias e lutas necessárias para que as produções vida possam se sobrepor às da morte?

*Régis Moreira, Comunicólogo Social e Gerontólogo, doutor pela ECA (USP) em Ciências da Comunicação, docente do Depto de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (UEL), onde atua como pesquisador na área de comunicação, envelhecimento e gênero. Pesquisador do Observatório Nacional de Políticas Públicas e Educação em Saúde.

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