Ser mãe e pai é a herança familiar da rapper Rita de Cássia Lemos Barbosa, a MC Potyra, que canta a luta das mulheres amigas do Vista Bela em suas letras

Por Mariana Guerin*

Mãe de cinco, avó aos 34 anos, “mãe” dos gatinhos Polaca e Khal-El e do cãozinho Jughead. Voluntária que ajuda incansavelmente 40 famílias carentes do Residencial Vista Bela, em Londrina, mesmo com as dores constantes no corpo, resultado da fibromialgia. Rapper, pregadora, meio indígena, meio cigana. E dorameira nas madrugadas. Esta é Rita de Cássia Lemos Barbosa, a MC Potyra, de 38 anos.

Sua história em terras paranaenses começou aos nove anos, após a separação dos pais, que moravam em Salto, no interior paulista. “Foi uma mudança brusca. Viemos morar na casa da minha vó materna, eu, minha mãe e meus três irmãos. Meu irmão mais novo tinha apenas quatro anos”, lembra Rita, que estranhou o clima, o sotaque e a nova escola.

“Morávamos na casa de parentes, apertados. Minha mãe era sapateira e então montou uma pequena sapataria no quintal da casa da minha vó. Assim que juntou algum dinheiro, alugou uma casa para nós na mesma rua, no Conjunto Luiz de Sá”, diz Rita, recordando que pouco tempo depois, o pai veio buscar a mãe: “Eles se reconciliaram e meu irmão mais novo nasceu.”

“Meu pai era baladeiro. Era muito rígido e bruto. Mas minha mãe compensava sendo sempre muito carinhosa. Ela foi mãe e pai”, admite a rapper, contando que logo após a reconciliação dos pais, quando ela tinha 12 anos, o pai sofreu um AVC, uma panela de pressão explodiu no rosto da mãe enquanto ela estava grávida do caçula e sua avó faleceu. “Aconteceu tudo isso ao mesmo tempo e meu irmão nasceu com problema.”

Na primeira foto: Rita e os filhos Andjara Ketlyn, Carlos Daniel, Nicolas Emanuel, Elissa Mayra, João Lucas, o marido Lucas e o neto João Miguel/ Na segunda foto: Rita com a mãe e a irmã caçula

Nessa época, a mãe de Rita, já cheia de responsabilidades, teve que assumir os cuidados de um irmão e um sobrinho que dependiam da avó que faleceu. “Foi quando minha mãe começou a atrasar o pagamento do aluguel e fomos despejados. Acabamos indo morar no João Turquino.”

Rita lembra que foi nessa época de necessidade que a mãe começou a se dedicar ao trabalho voluntário. “Ela começou a trabalhar com a Pastoral da Criança, ajudando na distribuição de multimistura às crianças carentes do bairro. E eu fui aprendendo a necessidade de fazer trabalho social”, diz.

Mas a adolescência chegou e por conta de “pedras no caminho”, Rita se envolveu com drogas e foi presa, aos 14 anos. “Foi a primeira e única vez que estive presa. Falei para mim mesma que nunca mais deixaria minha mãe passar por aquilo novamente.”

“A rua ensina muito”, constata Rita, que apesar da experiência ruim do cárcere, teve mais uma recaída, com drogas mais pesadas. “O rap me salvou. Tive um choque de realidade e foi ouvindo a música Depoimento de um Viciado, da banda Realidade Cruel, que decidi me tornar rapper, há vinte anos.”

Aos 16 anos, se tornou mãe de Andjara Ketlyn, hoje com 21 anos, e se casou com o pai da menina. “Fomos morar juntos, mas éramos dois adolescentes. Ficamos juntos por três anos e nesse tempo tivemos nosso segundo filho, Carlos Daniel, hoje com 19 anos. Mas acabamos nos separando. Ele nunca ajudou em nada em casa e eu trabalhava em dois empregos para dar conta das crianças.”

Nessa época, a mãe dela a incentivou a estudar. Ela cursava o ensino médio enquanto fazia cursos de costura industrial e auxiliar de escritório na Epesmel (Escola Profissional e Social do Menor de Londrina). Rita não conseguiu concluir o ensino médio, mas começou a trabalhar como atendente em um buffet que mantinha também uma lanchonete na cidade. Foi quando ela conseguiu comprar uma casa no Jardim União da Vitória.

“Por conta de alguns contratempos, precisei vender a casa e acabei me mudando para Rolândia. Na época, me cadastrei na Cohab para receber uma casa no Residencial Vista Bela e em 2012 consegui a casa”, recorda Rita, que se casou com o atual marido em Rolândia, com quem teve mais dois filhos: Nicolas Emanuel, hoje com 12 anos, e Elissa Mayra, 10.

“Conseguimos uma das primeiras casas do bairro no primeiro sorteio da Cohab. Chegando lá, encontramos muitas crianças e muitos cachorros na rua. As casas eram todas iguais. Nos prometeram cercas e não tinha: um podia entrar na casa do outro porque não tinha divisão. Não tinha infraestrutura nenhuma: caía um pé d’água e acabava a luz. E quando você tem um pé no trabalho comunitário, só de olhar você já identifica o que precisa ser feito.”

Foi aí que nasceu o primeiro coletivo de mulheres do Vista Bela. “Começamos a nos movimentar por ônibus, hospital. Era muito difícil levar as crianças para a escola e meu filho mais novo sofreu atraso nos estudos por falta de ônibus”, constata Rita, reforçando que a prefeitura sabia que tinha “despejado as famílias no local, sem estrutura alguma”. “Eles recebiam nossas reivindicações, mas era muita burocracia”, diz a líder comunitária, que acabou recebendo apoio da Câmara de Vereadores. “Eles abriram as portas para que a gente pudesse negociar melhorias, mas o que conseguimos foi sempre por abaixo-assinado.”

Um problema recorrente para os moradores do Vista Bela, na época, era a adesão ao programa estadual Leite das Crianças. “Como o leite era entregue apenas em equipamentos do Estado e não tinha nenhum no bairro, nos organizamos para receber e distribuir o alimento a partir da creche municipal. Era uma fila grande e mais de 400 famílias foram contempladas. As sobras de leite a gente repassava para famílias com idosos acamados ou pessoas que tomavam remédio de uso controlado”, relembra Rita.

“Cada mãe lutava por si, mas acabava lutando por todas porque era a mesma luta”, destaca Rita. Segundo ela, o coletivo começou a perceber outras demandas relacionadas à violência doméstica e sobrecarga das mulheres nas famílias. “Foi quando criamos o coletivo Hora de Viver, em parceria com a Igreja Adventista.” Hoje, seis mulheres lideram o trabalho voluntário que atende 40 famílias.

Segundo Rita, foi esse coletivo de mulheres, hoje batizado de Coletivo Amigas de Mulheres Moradoras do Vista Bela (Amvibe), que a resgatou quando ela viveu um dos piores momentos da sua história. “Em 2012, passei por uma cirurgia de laqueadura. Sofri um erro médico e passei quatro meses acamada, com sonda, me alimentando pouco. Fui afastada do trabalho, passei por fisioterapia. Cheguei a pesar 33 quilos e definhei na depressão. Eu sentia muita dor e não via saída. Foi quando consegui uma consulta com um médico do Cismepar (Consórcio Intermunicipal de Saúde do Paraná), que constatou o erro médico e pediu correção. Mas seis meses depois engravidei do meu caçula, João Lucas, que hoje está com oito anos”, conta.

“Fiquei dois anos sem condições de trabalhar com o público, desenvolvi síndrome do pânico, fibromialgia, mas na hora de fazer o trabalho voluntário, a dor some”, admite Rita, ressaltando que “todos precisam de ajuda, mas nem todos sabem recebê-la”. “Muitas vezes eu recebo as mesmas doações que as outras famílias porque estou precisando, mas a gratidão de ser voluntária é algo além do material”, garante a rapper, que conhece bem o contexto de cada família que ajuda. Em um ano de pandemia, o Coletivo Amvibe já realizou mais de 1,2 mil atendimentos no Vista Bela, desde arrecadação de fraldas, leite, remédio, botijão de gás, até pagamento de fretes para buscar doações de móveis e eletrodomésticos.

Seguindo os passos da mãe, que foi mãe e pai, ela se desdobra para manter os cinco filhos caminhando bons caminhos. “Sou meio controladora, quero que eles tenham um futuro brilhante.” Todos estão na escola e a mais velha já trabalha. “A mesma presença que tenho no coletivo tenho dentro de casa. Eu falo para os meus filhos: a gente não pode querer só para si. Eu só vou ficar bem se ajudar.”

Neta de uma indígena “domesticada para casar”, filha de mãe trapezista que deixou o circo para estudar e viver uma vida melhor, a rapper hoje tem pouco tempo para compor. E nas horas vagas, quase sempre às madrugadas, gosta de assistir dramas coreanos. “As mulheres são mais respeitadas na Coreia”, pensa.

Com o marido preso por conta da dependência química, Rita só pode contar com ela mesma e com as amigas do coletivo. “Minha trajetória me ensinou que eu ajudo pessoas que passam pelo mesmo que passei. Já fui humilhada, agredida, meu pai não me registrou porque nasci negra. Ele até me pediu perdão em seu leito de morte, reconhecendo que tinha orgulho da filha que ele chamava de ‘negrinha da canela fina’.”

Na infância, ela tinha o sonho de ser jornalista: “Queria ser a âncora que mostra o trabalho final de toda uma equipe”, confessa a voluntária, que é missionária evangélica, grava vídeos com mensagens motivacionais no TikTok e é também a MC Potyra que leva a cultura hip hop às ruas do Vista Bela. Seu sonho atual é voltar a se reunir com as amigas do coletivo para tomar chá e conversar. E também publicar o livro Amigas Moradoras do Vista Bela, com depoimentos e fotos do antes e depois da pandemia.

“Vamos levar o projeto ao Promic e batalhar por um livro e uma exposição de fotos para marcar a história dessas mulheres tão sofridas”, planeja a MC, que ensina aos filhos – e a nós – que a realidade é o que se encontra nos trabalhos do Coletivo. “Se tem gente que não está bem, então não está tudo bem. E que é preciso ter dignidade: se não serve para mim, não serve para o outro”, reforça Rita, explicando a diferença entre caridade e solidariedade: “Quando você é solidário, você não simplesmente doa algo, você se compadece do outro.”

*Mariana Guerin é jornalista e confeiteira em Londrina. Adoça a vida com quitutes e palavras. Siga @bolachinhasdamari

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