Objetivo do órgão é monitorar, receber denúncias e promover medidas políticas e judiciais contra violações de direitos da comunidade escolar
Mariana Guerin
Foto em destaque: Marcelo Camargo-Agência Brasil
Com o lema “Por uma educação plural, democrática e de qualidade”, 18 entidades ligadas aos movimentos sociais e à educação pública lançam, nesta segunda-feira, o Observatório das Escolas Militarizadas (OEM) no Paraná, com o objetivo de promover ações de monitoramento, levantamento de dados e medidas políticas e judiciais contra violações de direitos da comunidade escolar.
Estabelecido pelo governador Ratinho Júnior (PSD) em 2020 por meio da Lei 20/338/2020, o modelo de escolas militarizadas foi alvo de críticas da sociedade civil. Atualmente, o Estado tem 206 colégios públicos estaduais enquadrados no padrão das escolas cívico-militares, sendo 15 em Curitiba e o restante no interior do Estado. O OEM surgiu organicamente e aproxima entidades representativas de docentes, trabalhadores da educação e de estudantes, coletivos, núcleos e centros de pesquisa e movimentos sociais e populares que já vinham atuando em conjunto ou isoladamente contra retrocessos na educação.
Segundo o advogado Rafael dos Santos Kirchhoff, presidente da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI e membro do OEM, sem qualquer diálogo com a sociedade, o governo do Paraná enviou projetos de lei à Assembleia Legislativa e articulou a votação em caráter de urgência, durante a pandemia e recesso legislativo. A comunidade escolar foi convocada a opinar em voto aberto e presencial, num momento em que as autoridades sanitárias recomendavam o distanciamento social. “Um assunto que não era urgente, enquanto havia outros assuntos de saúde com mais urgência. Até porque sequer havia aulas presenciais. Também não há nenhum dado que demonstre que essa militarização melhoraria a qualidade da educação, ao contrário, a tendência é que ela piore.”
Contrária a esse modelo, a APP-Sindicato é uma das entidades que irá compor o OEM. Para a secretária geral da APP-Sindicato, Vanda Bandeira Santana, “a disciplina militar é incompatível com o espaço educacional, pois a educação pressupõe estabelecer um espaço de diálogo nas escolas. Outro ponto é a separação entre direção militar e civil, enquanto a primeira terá sob sua responsabilidade questões financeiras, a segunda terá a pedagógica. Isso não corresponde ao princípio da gestão democrática normatizado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, além do desvio da função constitucional dos militares”, declara.
A APP-Sindicato reconhece ainda que a disciplina militar é incompatível com o espaço educacional, pois neste modelo não existe a abertura para o diálogo, a pluralidade e o pensamento crítico para formar cidadãos capazes de reconhecer e obedecer a regras justas, mas também de contestar o poder estabelecido quando se distancia de práticas democráticas.
Segundo Rafael Kirchhoff, é importante destacar a diferença entre os colégios cívico-militares e os colégios militares, que possuem orçamento próprio e atendem uma parcela bem específica da população, normalmente familiares de militares. “Eles têm realmente um débito mais alto do que as escolas públicas em geral, mas não maior do que, por exemplo, os IFPRs, que são institutos com um alto grau de qualidade de ensino, mas que vêm perdendo recursos federais.”
“A proposta de militarização do ensino vem ganhando espaço e é importante ser feita essa diferença em relação aos colégios militares porque não há nenhuma formação específica desses militares que vão entrar nas escolas regulares quanto à educação ou pedagogia. A principal mudança vai ser a divisão entre uma diretoria civil e uma diretoria militar. Além disso, outra grande diferença é que a disciplina militar não é compatível com a educação. A disciplina militar, por exemplo, é voltada à obediência hierárquica, sem questionamentos, enquanto a educação é emancipadora e forma cidadãos críticos. Ela tem a ver com um olhar questionador e um ensino que ensina a obedecer a situações justas, mas que também ensina a questionar situações injustas e isso não acontece dentro da lógica militar”, opina o advogado.
Segundo ele, o OEM terá cinco eixos de trabalho: a produção de informação, levantamento de dados e artigos por profissionais da educação e acadêmicos que pesquisam o tema, o eixo da litigância estratégica e incidência política, que vai trabalhar as ações políticas e judiciais contra violação de direitos da comunidade escolar, e o eixo da comunicação, que irá repassar as informações coletadas em formatos diferenciados para cada público específico, seja paras as redes sociais, para a imprensa, para as escolas, para estudantes e sociedade em geral.
“Outro eixo é a interlocução com a comunidade escolar, muito mais presente no diálogo com as escolas, com funcionários, estudantes, professores, familiares que queiram dialogar com o observatório e queiram repassar informações, relatar situações de abuso ou então discordâncias em relação ao modelo”, cita o advogado, destacando ainda o eixo de recebimento de denúncias, “que está bastante conectado com a interlocução com a comunidade escolar”. “O que diferencia é que vai ser um atendimento mais específico para receber, tratar e orientar o interessado para tomar as medidas cabíveis, até mesmo judiciais se for o caso.”
Conforme Kirchhoff, o observatório não vai promover medidas individuais “porque não teria estrutura para isso, mas, dependendo da situação, em casos muito emblemáticos, o observatório poderia atuar”.
Ele explica que há uma diferença entre escolas que aprovaram, em consulta, a militarização e escolas que estão efetivamente em processo de militarização, já com pessoal militar aprovado em concurso e estruturação da forma de trabalho, inclusive com curso ministrado pelo governo do Paraná. “Houve esse processo atrapalhado de escolha das escolas. A gente tem a informação de que foram efetivamente militarizadas entre 20 e 30 escolas que já têm uma estrutura militar pronta para estar presente quando as aulas voltarem, mas é um número que a qualquer momento pode mudar.”
Para o advogado, chama a atenção o “apetite” do governo do Paraná em implantar 206 das 216 escolas militarizadas que estavam previstas no projeto piloto do governo federal. “Teve todo esse processo de consulta, com militantes em frente às escolas, pressionando as pessoas a votarem pela militarização. Não houve um debate com a comunidade, com estudantes, professores, movimentos sociais e a sociedade civil organizada em geral. Então as pessoas não sabiam o que estava acontecendo e 206 escolas acabaram sendo escolhidas”, ressalta Kirchhoff, informando que não há militares suficientes interessados em trabalhar nessas escolas, seja porque teriam que atuar em cidades pequenas ou em locais de alta vulnerabilidade social ou porque as aulas seriam no período noturno.
Ele destaca ainda que os cursos de formação de militares determinam que o monitoramento da disciplina dentro dos colégios cívico-militares será feito por meio de um aplicativo: o responsável por observar os espaços escolares e o comportamento dos estudantes terá, em mãos, um celular com um aplicativo que vai avaliar, de forma arbitrária, a conduta dos estudantes. “O aplicativo pontuará o aluno com 0,25 a mais ou menos, conforme seu comportamento for negativo ou positivo”, explica o advogado.
Para ele, há uma grande arbitrariedade neste tipo de avaliação, que acaba penalizando aqueles que sempre são penalizados, de acordo com os preconceitos enraizados na sociedade. “E muito mais agravado ainda por se tratar de militares aposentados, com uma visão muito específica do que é a sociedade e do que são os direitos”, completa Kirchhoff.
Segundo ele, o juízo vai recair sobre preconceitos que já orientam a sociedade brasileira e que envolvem a população negra, as mulheres, a população LGBT, a população quilombola, consequentemente em “alunos e alunas que não estejam conforme a disciplina do comportamento, mas também da aparência, como um certo tipo de corte de cabelo ou um certo tipo de maquiagem”.
Ele cita casos de intolerância em colégios cívico-militares da Bahia, que levaram a Procuradoria Geral para os Direitos do Cidadão local a recomendar que não fosse militarizada mais nenhuma escola no estado por conta do aumento no número de denúncias de perseguição de alunos que faziam alguma crítica à escola ou ao tipo de ensino nas redes sociais, como também em relação ao uso do cabelo black power, por exemplo, ou ao namoro.
“Teve um caso em Goiás de um aluno que tinha feito um vídeo engraçado com a imagem de um monitor e o diretor militar daquela escola interrompeu uma aula on-line e ameaçou o aluno de expulsão. Aí houve uma confusão total dessa ideia de separação entre civil e militar. São perspectivas que realmente não combinam. Como se fosse possível separar o que é gestão do que o que é pedagogia, sendo que é preciso conhecer os dois lados para fazer uma boa gestão e uma boa construção da pedagogia escolar”, avalia o advogado.
Para ele, a criação de um observatório de escolas militarizadas serve para mostrar o quanto as entidades da sociedade civil não foram respeitadas dentro do tema da educação e dos direitos humanos. “Elas não foram sequer ouvidas no processo de discussão das legislações para esse modelo, então o observatório vem como uma forma de trazer esse debate. E para ver o que está acontecendo nas escolas, o que é promessa e o que é realidade. A proposta é também de monitoramento. Há um tempo se falava em escola sem partido e em legislações antigênero e professores e professoras eram alvo de vigilância e perseguição. O observatório trabalha numa inversão dessa lógica. Não estariam mais professores e professoras nesse alvo, mas a estrutura militar.”
Em relação à construção da cidadania, o observatório trabalha com a ideia de violação de direitos da comunidade escolar e isso tem a ver com proteger uma mínima estrutura democrática na escola, o respeito ao estado de direito, mas também de evitar que a disciplina impeça os alunos de terem acesso a conteúdos mais críticos. “Que não seja uma mera reprodução daquilo que os militares entendem como uma visão de mundo correta”, comenta Kirchhoff.
Para ele, a construção da cidadania tem a ver com um pensamento crítico, livre, democrático e plural. “Eu acredito que o impacto da militarização é grande, a começar pela evasão escolar, por exemplo. O uso do aplicativo para medir a disciplina vai mostrar alguns marcadores sociais e a gente vai poder entender um pouco qual é o impacto sobre os diferentes alunos e isso pode aumentar a fuga da escola. Outro impacto é na própria liberdade dos professores ensinarem os conteúdos de acordo com a metodologia que eles entendem mais adequada. Não vai ser algo mais pontual, como a reclamação de alguns pais sobre ideologia de gênero ou escola sem partido. A presença militar o tempo todo sobre esse corpo docente e sobre os alunos terá um grande impacto e me parece que vai haver um reforço dos preconceitos, prejudicando o esforço da educação para superá-los dentro da escola.”
O observatório vai trabalhar de forma on-line, facilitando o diálogo com entidades do interior do Paraná, e a ideia é abrir para novas adesões e potencializar a interlocução com a comunidade escolar por todo o Estado. “A ideia é que ele não seja centralizado, mas sim disseminado”, reforça Kirchhoff, citando que já existe um trabalho parecido com o do OEM na Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa Distrital do Distrito Federal. “É uma iniciativa do legislativo que conta com a parceria da sociedade civil. A diferença do OEM é que ele é totalmente integrado por entidades da sociedade civil.”
Fazem parte do Observatório o APP-Sindicato (Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Paraná), Articulação Paranaense por uma Educação do Campo, Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais, Auditoria Cidadã da Dívida Pública de Curitiba, Central Única dos Trabalhadores (CUT), Conselho Paranaense de Direitos Humanos, Direitos em Movimento/Universidade Federal do Paraná (UFPR), Fórum Paranaense de Educação de Jovens e Adultos, Fórum Permanente de Educação Étnico Racial do Paraná (FPEDER), Laboratório de Investigação em Corpo, Gênero e Subjetividades na Educação da UFPR, Liga Brasileira de Lésbicas (Labin), LBL, Mães pela Diversidade, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre o Ensino de Filosofia da UFPR, Observatório do Ensino Médio da UFPR, Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade da UFPR, Terra de Direitos e a União Paranaense dos Estudantes Secundaristas.
Programa
O investimento direcionado a cerca de 129 mil alunos será de cerca de R$ 80 milhões. É o maior projeto do País nessa área, segundo dados do governo do Estado. Segundo o governador Ratinho Junior, a média das escolas cívico-militares no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) é 20% maior do que na educação tradicional. “Esse é um modelo vencedor. Se é vencedor, queremos ofertar essa modalidade. A implantação será feita de forma democrática”, declarou o governador, em outubro de 2020, quando daria início às consultas públicas.
Conforme o planejamento da Secretaria de Estado da Educação e do Esporte, a nova modalidade de ensino funcionará com gestão compartilhada entre militares e civis em escolas do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. As aulas continuarão sendo ministradas por professores da rede estadual, enquanto os militares serão responsáveis pela infraestrutura, patrimônio, finanças, segurança, disciplina e atividades cívico-militares. Haverá um diretor-geral e um diretor-auxiliar civis, além de um diretor cívico-militar e de dois a quatro monitores militares, conforme o tamanho da escola. Um dos diferenciais é o aumento da carga horária curricular, com aulas extras de português, matemática e valores éticos e constitucionais.
Neste ano, o programa contempla 197 escolas do Estado. Até o momento, há 721 vagas destinadas ao Corpo de Militares Estaduais Inativos Voluntários (CMEIV). Das 197 unidades, apenas 19 ainda dependem da seleção de monitores militares. A Secretaria de Estado da Segurança Pública vai abrir novo edital de processo seletivo para preencher as vagas remanescentes.
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