Por Paula Vicente e Rafael Colli*

O autoritarismo é uma doença. Um vírus que, como o coronavírus, entra pelas vias respiratórias do Estado, se replica e, célula por célula, toma todo o organismo governamental. Quando a sociedade se dá conta, o corpo social está internado, intubado, morto.

É assim. Tudo começa com uma ideia viral, fácil de se transmitir: um inimigo. Esse estereótipo de inimigo sempre permeou a sociedade – e normalmente são os mesmos. Os comunistas, a população negra, os estrangeiros, os “menos civilizados”. Uma vez forjado o inimigo, basta que se desenvolvam discursos simplórios, que também são facilmente transmissíveis, para legitimar a cura, o tratamento precoce, como poderíamos assim chamar: a violência estatal.

Com a institucionalização da violência como única forma de combate ao inimigo escolhido, o verdadeiro inimigo se fortalece e toma o sistema estatal por completo, levando ao fim já comentado.

E assim ocorreu e novamente ocorre aqui, no Brasil.

O inimigo, ou melhor, os inimigos são os mesmos. Os subversivos, ou aqueles com grande potencial de subversão, que, se unidos, poderiam alterar significativamente o sistema dominante, a elite, dona do capital e dos meios de produção: o trabalhador, o povo marginalizado, favelado, o povo preto. É contra eles que o sistema joga; é neles que recai a força dos instrumentos de opressão do Estado, principalmente a Justiça Criminal. São eles os inimigos.

Aí você, caro leitor, vai pensar: ué, mas onde que falam que devemos ter medo de negros e pobres? Onde diz que devemos puni-los por isso? Isso é “mimimi”. O que a população quer é “jus-ti-ça”! Que bandidos sejam punidos, ladrões, traficantes; não é? – Será?

A pergunta que se faz é muito simples: a polícia trata um trabalhador da mesma maneira que trata um empresário? Trata da mesma maneira uma pessoa negra e uma pessoa branca? Um pobre e um rico? Onde de fato a polícia atua? É prendendo os traficantes internacionais que moram em prédios de primeira classe nos bairros de elite? Ou é aterrorizando e dando esculachos nas favelas, em pequenos traficantes e pessoas da comunidade? Qual “ladrão” é realmente preso todos os dias? Aquele que, por nada ter – por negligência do Estado -, tira dos outros ou aquele que rouba para acumular bens que já tem? Já parou para pensar que quem explora o corpo dos trabalhadores e trabalhadoras lhes rouba o bem produzido, lhes rouba o tempo e a vida? Mas esses não são ladrões, não, são empreendedores. Esses são intocáveis. Esses não formam o corpo carcerário brasileiro, o terceiro maior do mundo.

Essa ideia viral, de que a criminalidade é uma condição dos trabalhadores, das pessoas pobres e da população negra – e não um efeito da desigualdade social que massacra nosso povo – é, ao fim e ao cabo, uma tática da elite para manter os subversivos marginalizados e controlados, se não pela manipulação ideológica, pela força estatal. E funciona. A população fica com medo. A arma da elite é poderosa, há propaganda massiva da mídia, novelas e jornais mostrando, rotineiramente, os perigos dos subversivos. Medo de ser assaltado, sequestrado, morto; medo de perder um filho ou filha para as drogas – esse monstro que tira a alma das pessoas desde a primeira vez que se faz uso dele, eles dizem; medo de perder seus bens e sua liberdade para o monstro maior, os comunistas – que rotineiramente são ligados, de alguma forma, aos criminosos que tiram o sono social.

E sim, quem tem medo é, também, trabalhador, um possível subversivo, por isso se ele não for controlado pelo medo, pelo discurso, há sempre a força estatal ali, esperando sua hora de atuar. Experimenta sair desse casulo de ignorância e questionar esse sistema opressor para ver se não te transforma num inimigo também? Um comuna perigoso…

Essa ideologia toma conta das forças do Estado – policiais, promotores, juízes -; toma conta da mídia, que toma conta do povo e, quando se percebe, essa onda de medo, ódio e soluções simplórias elege seus representantes e, pouco a pouco, todos os órgãos estatais estão tomados pelo vírus do autoritarismo. Em nome da cura para um falso problema, se legitima a transmissão, réplica e desenvolvimento da doença que mata a liberdade e a democracia; que mata os direitos individuais e coletivos; que suga a alma social. O que se pretende proteger é perdido pela arma autoritária.

O autoritarismo já está, há muito tempo, agindo no Brasil. Mesmo com o fim da ditadura, a ideia do inimigo continuou e cresceu. O tráfico passou a ser a bola da vez, mais uma forma de se criminalizar a pobreza e o povo negro. E com isso, a ideia de que o Estado precisa oprimir os favelados, os marginalizados, ou não? Você arrisca perder seus bens para esses bandidos? Esses aí, que você vê na TV todo dia? Melhor não, né? Melhor votar nesse candidato que promete acabar com o… “banditismo”… Melhor deixar pra lá esse candidato ou candidata que falar que tudo isso é uma ilusão, falta de educação e políticas públicas. Esses aí são… comunistas? Inimigos da mesma “laia”.

Quando vemos, não há volta. O Estado já criminalizou não a conduta delitiva, mas a cultura do povo; a pobreza; a cor da pele; quando observamos, o Estado já criminalizou o questionamento e a liberdade de expressão. O esculacho vem para quem tenta se subverter. Esse foi o caso de um professor preso há poucos dias por ter no carro uma faixa escrito “Bolsonaro Genocida”; esse foi o caso de um rapaz negro preso por questionar o procedimento do policial – procedimento claramente racista, já que o rapaz estava apenas andando de bicicleta num parque; esse foi o caso da prisão de Renato Freitas, advogado e vereador curitibano, preso porque tentou questionar uma ordem racista da polícia que estava tentando confiscar uma caixa de som que tocava rap, um símbolo da cultura negra tão marginalizada e criminalizada. Todos diferentes, mas iguais: são tudo aquilo que a elite não quer e que usa seu arsenal para exterminar, revolucionários, anti-sistema, anti-capitalistas, conscientes da violência que sofrem. Subversivos!

Hoje foi um professor; hoje um youtuber; hoje um vereador negro que representa, no seu cotidiano, sua cultura e seu povo. Hoje o inimigo é alguém relativamente longe de você, um militante, um jovem negro na favela. Mas amanhã, quando o autoritarismo tiver tomado – mais uma vez – todos os tentáculos do Estado, aí o inimigo será… você. Por enquanto estamos na luta, meio capengas, para parar essa doença. Estamos já internados, poderíamos dizer. Mas não falta muito. Daqui para frente não tem mais volta, ou extinguimos esse vírus fascista de vez, ou voltaremos aos tempos sangrentos de outrora – não tão outrora assim.

Seja por impeachment, seja nas eleições em 22. Talvez seja nossa última chance de termos liberdade de verdade, democracia e dignidade. Talvez seja nosso último suspiro antes da intubação. Que nossos pulmões aguentem!

*Paula Vicente e Rafael Colli são advogados especializados em causas de Direitos Humanos, minorias políticas e Direito Penal em Londrina

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