A documentarista Coraci Ruiz captou o processo de transição de gênero do filho Noah no filme “Limiar”, uma aula de diálogo e acolhimento ao diferente
Por Mariana Guerin*
Fotos: Arquivo Pessoal
Ela cresceu num ambiente de contracultura onde muitos comportamentos eram naturalizados e quando se tornou mãe, viu seu mundo ser virado do avesso pela geração do filho mais velho, que veio para quebrar paradigmas e teve a coragem de assumir sua identidade não-binária aos 16 anos. Esta é a história da doutora em Multimeios pela Unicamp Coraci Ruiz, 43 anos, fundadora da produtora audiovisual Laboratório Cisco, sediada em Barão Geraldo, em Campinas.
Para absorver a “surpresa”, que não lhe causou choque, mas a levou a um processo de amadurecimento, ela decidiu gravar entrevistas com o filho e essa conversa deu origem ao filme “Limiar”, que tem circulado por festivais em vários países e deve estrear nos cinemas brasileiros em agosto.
“Eu comecei a filmar o Limiar em 2016. Eu tinha acabado de entrar no doutorado na Unicamp para estudar documentário autobiográfico no Brasil e eu tinha o desejo de fazer um filme que fosse entrar em diálogo com a tese, até porque eu já tinha feito isso desde a iniciação científica passando pelo mestrado”, lembra a documentarista.
Desde a sua formação acadêmica ela sempre atrelou sua produção artística à sua pesquisa teórica. “Eu estava cursando as disciplinas e tudo mais e o meu orientador já vinha me sugerindo fazer uma mudança no recorte da pesquisa para incorporar as questões de gênero. Eu fiz uma disciplina que foi superimportante para mim, de estudos de gênero e audiovisual, e foi um momento em que eu entrei em contato com a teoria feminista do sistema pela primeira vez”, recorda.
No mesmo período em que ela decidia se seguiria o caminho proposto pelo orientador de estudar documentário autobiográfico de mulheres, seu filho mais velho, Noah, então com 16 anos, lhe contou que estava em dúvida sobre sua identidade de gênero. “Eu sabia pouquíssimo sobre o tema na época e fiquei curiosa para conversar com ele. Pedi se eu poderia gravar uma conversa e ele topou, então a gente fez uma primeira conversa com a presença da câmera. Uma conversa filmada, que foi superlegal. Ele me fez uma explicação literal, desenhou para eu entender como ele estava vendo as questões de gênero e sexualidade e me contou como estava se sentindo, quais eram suas dúvidas e tal”, descreve.
“Eu percebi, nesse momento, que esse espaço com a presença da câmera, nesse ambiente fora do cotidiano que a gente criou, foi muito legal. Abriu um espaço de diálogo mais facilitado, mais aprofundado do que a gente tinha na correria da vida, no dia a dia”, avalia Coraci.
Ela conta que o processo de transição do filho não foi linear. “Ele passou por vários momentos diferentes e cada vez que ele estava numa nova fase, ele vinha me contar e a gente gravava uma nova conversa.” As gravações aconteceram entre 2016 e 2019 e são a alma do filme.




No decorrer do diálogo com o primogênito, Coraci se viu resgatando sua própria história. “Na organização da narrativa, fiz também uma conversa com a minha mãe e com meu filho. Fui atrás do material de arquivo, de fotos e vídeos da família, algumas coisas que eu tinha também sobre política e manifestações, de outros projetos que eu tinha feito, e acabei tecendo, para costurar tudo isso, uma narração em off, que é uma narração em primeira pessoa, a minha.”
No texto, ela compartilha coisas que não estavam impressas no material filmado. “Eu sabia da potência que é você contar uma história pessoal quando, obviamente, ela pode ter um interesse público e, de certa forma político, então, não sinto que o ‘Limiar’ é uma pura exposição. Ele é um compartilhamento de uma história íntima que tem a possibilidade e a capacidade de se comunicar e contribuir para outras pessoas em seus próprios processos, principalmente para os jovens trans e a relação e o diálogo das famílias que têm um jovem trans.”
A onda conservadora que tomou conta do País em 2016, após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, contribuiu para acender na documentarista a necessidade de fazer um filme. Na história, fica claro que produzir “Limiar” também foi importante para a relação entre mãe e filho.
“A partir de um certo momento ele mesmo passou, de vez em quando, a pedir essas entrevistas. No começo, eu não sabia se isso ia ser um filme mesmo porque eu não sabia quantas entrevistas seriam, quanto tempo levaria, aonde esse processo chegaria. Não tinha como prever nada disso, então, no primeiro momento, eu estava ali guardando, acumulando material, e depois de um certo momento, obviamente, eu fui entendendo que era um processo que poderia ser transformado numa narrativa de um documentário.”
E a história se construiu conforme as entrevistas aconteciam, refletindo os avanços na transição de gênero de Noah. “No momento em que eu concordei em assinar o papel que permitiu com que ele iniciasse o tratamento com testosterona, eu achei que era o fim de um ciclo que já vinha longo. Um ciclo de conversas, discussões e pensamentos que já estava durando alguns anos. E quando eu tomei essa decisão, eu senti que ali um outro ciclo ia se abrir, que era a transição física dele, e aí eu achei que era um momento para encerrar o filme. O que viesse para frente era uma outra história”, explica Coraci.
O título “Limiar” foi escolhido após a cineasta ler um artigo da professora mineira Roberta Veiga, durante o doutorado, que diz: “Ao contrário do limite que delimita, o limiar é área da oscilação, da atenção, da contradição. É estar na soleira da porta que pode se abrir e pode se fechar. É estar prestes a tornar-se. É um estado entre. O limiar entre micro-história e macro-história, passado e presente, pessoal e político, feminino e masculino. Permite o jogo que faz oscilar as imagens, que desconstrói certezas e faz coro à noção de gênero como um sempre a se fazer”.
“Quando eu li isso, eu tive certeza de que o nome do filme era ‘Limiar’ porque ele dialoga em vários lugares. Eu acho que desde o Noah, como uma pessoa não-binária que está no limiar entre o masculino e feminino; essa ideia de que é um filme que está entre o pessoal e o político; que está entre a micro-história da minha família e a macro-história do Brasil, então, por todos esses pontos, eu decidi que seria esse título”, descreve.
O processo de edição da película foi longo e passou por diversos cortes. “A primeira versão tinha uns 40 minutos e era muito diferente. Tinha um outro caminho estético, um pouco mais experimental, que eu acabei abandonando”, comenta Coraci, que contou com a parceria da montadora e corroterista Luíza Fagá, com quem ela trabalha desde 2008. “É uma pessoa com quem eu sempre tive um diálogo muito bom, é muito amiga também, então foi uma relação de confiança que foi muito importante. Eu sempre digo que a Luiza era a única pessoa que poderia montar o filme, a pessoa certa para partilhar comigo um filme que é muito íntimo, muito pessoal e exigiu muita confiança.”
Ela confessa que foram muitas “ideias, muitas insônias, muitas anotações” e vários roteiros diferentes até chegar ao corte final do filme, que passou por cinco edições. Segundo Coraci, o processo de filmagem e edição foi artesanal, contou com uma equipe pequena e desafios de verbas, sendo produzido com recursos próprios, além do desafio pessoal de colocar sua própria voz para narrar sua própria história. “Eu tenho ficado muito feliz com a recepção que o filme tem tido. A maior parte das pessoas que assistiu veio conversar comigo, muitas pessoas se emocionaram muito. O filme tem chegado muito perto dos jovens trans e isso, para mim, é muito importante. Tem contribuído com processos de muitas pessoas, então tem sido muito legal ver o filme pronto e circulando.”
A exibição do filme está sendo feita em parceria com a distribuidora Taturana, especializada em distribuição de impacto. A ideia, segundo Coraci, é tornar o filme o mais acessível possível, já que a plataforma da Taturana facilita a organização de seções autogestionadas, para que grupos de pessoas em centros acadêmicos, centros comunitários, movimentos LGBTQIA+, entre outros possam se organizar nas suas comunidades e exibir o filme.
“A gente tem trabalhado para conseguir chegar em grupos nos quais a gente acha que o filme pode ter uma contribuição por trazer um diálogo entre gerações, porque tem eu e o meu filho e ainda tem a minha mãe que contribuiu bastante nas conversas. A gente sente que é um filme que pode ajudar justamente nesses processos em que pessoas de diferentes gerações precisam se entender, se acolher. Então a gente aposta na ideia de que o filme chegue nas famílias que têm pessoas trans, pessoas LGBTQIA+”, diz a cineasta, que torce para que “Limiar” chegue também nas escolas.
“A gente sabe que a escola, hoje em dia, é um ambiente muito hostil para pessoas trans. A evasão escolar é altíssima, então é um espaço que poderia ser muito importante, principalmente quando não tem acolhimento da família. Se a escola pudesse acolher, seria um ganho para a sociedade, para a experiência de cada um desses jovens.”
Coraci conta que o filme já participou de um circuito de festivais, estreando no Festival Mix Brasil de 2020, onde recebeu prêmio de melhor direção. Este ano, foi exibido na mostra competitiva do Festival Hot Docs, no Canadá, e foi convidado para abrir o Festival Internacional de Documentários de Viena, na Áustria.
Para Coraci, “Limiar” fala, principalmente, de acolhimento e contribui para a construção de uma sociedade mais empática. “O filme abre possibilidades de as pessoas vislumbrarem uma outra forma de se relacionar, delas sentirem mais de perto quais são as questões que aparecem quando tem uma transição desse tipo dentro de uma família. A ideia é que o filme de fato consiga contribuir para o acolhimento dos filhos trans e para o acolhimento também das dificuldades dos pais. Que essas dificuldades possam ser acolhidas e superadas. O foco principal, na verdade, é pensar que esses jovens precisam de suporte, da família, da escola, precisam de uma rede.”
“Foi um momento muito interessante da minha vida porque meu lado documentarista, pesquisadora, acadêmica e meu lado mãe dialogaram e se enriqueceram mutuamente durante esses anos. Eu estava fazendo um filme, estava estudando, estava vivendo esse processo em casa e tudo meio caminhando junto, uma coisa estava ajudando a outra. De repente, eu estava lendo alguma coisa na teoria que me ajudava a entender o que eu estava sentindo. Eu me abri para entender o mundo de uma outra forma, como um diálogo”, desabafa a documentarista.
Mas ela confessa ter sentido alguns medos durante o processo de transição de Noah: “Meu medo era de que ele tomasse decisões irreversíveis sendo muito jovem e depois se arrependesse ou também me responsabilizasse por ter deixado ele tomar essas decisões tão novo. Mas eu tinha um outro medo que era de não permitir os tratamentos que ele queria fazer, não deixando ele se livrar dessa dor que ele sente. Ficar no meio desses dois extremos sem saber muito para onde ir foi o mais difícil.”
Ela garante que nunca sentiu medo da reação da sociedade ao filho trans. “Eu acho que a gente está aqui para transformar a sociedade, não para ficar com medo dela. Eu sei que a gente é uma família muito privilegiada, de pessoas brancas de classe média com acesso à educação superior, então eu acho que é muito diferente a situação das pessoas trans que são periféricas, que são pretas. A gente sabe da violência.”
Para Coraci, a mensagem de “Limiar” é sobre o potencial transformador do diálogo e do acolhimento. “A potência que é a gente se desapegar das nossas certezas e se abrir ao que o outro tem a dizer. A gente tem que se educar e se apoiar, tem que defender as coisas que a gente acredita e quanto mais a gente puder ser e apoiar a resistência plena do outro, maior será nossa contribuição.”
*Mariana Guerin é jornalista e confeiteira em Londrina. Adoça a vida com quitutes e palavras. Siga @bolachinhasdamari
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