Mostra Individual do artista londrinense está aberta ao público, com entrada gratuita, até 12 de agosto
Ana Maria Alcantara, especial para a Lume
Fotos: Bruno Mazzoni
Podia ser só isso, dois pretos no cadeião da cidade, mas foi muito mais. Ele, um artista preto de reconhecimento internacional. Eu, uma jornalista preta. E, o que outrora foi um espaço de uma cadeia municipal, hoje um espaço que abriga e oferece cultura.
Foi assim que se deu meu encontro com o grafiteiro londrinense Tadeu Júnior, mais conhecido como Carão, que expõe dez de suas obras na Expo40, no Sesc Cadeião, em Londrina, até 12 de agosto.
Adentrar o espaço que um dia foi uma cadeia para entrevistar o artista que me inspira há tanto tempo foi uma experiência com várias camadas de significados.
Embora nunca tivéssemos nos encontrado pessoalmente, temos em comum a dor de sermos lidos todos os dias como o “outro”. O “diferente”. O “marginal”. Leitura feita pela cor da nossa pele. Somos pretos.
“Eu sei bem o que é isso”, relata Carão. “As pessoas, em geral, fazem essa associação de gente preta com o crime. Mas quero, com minha arte, que elas entendam que nós, os pretos, podemos estar em diferentes espaços e em diferentes posições. E a tendência é entrarmos em espaços como este aqui de outra forma. Não por meio do crime, mas por meio da arte, da educação, da cultura.”
Da suposta marginalidade, a pichação e da pichação surgiu, no final da década de 1990, o interesse de um jovem preto pelo grafite. “Meu primeiro contato com as latas de spray foi lá por volta do início dos anos 2000 com o Tota, um grafiteiro de São Paulo que veio a Londrina pela rede de cidadania ministrar um workshop. Ali me identifiquei e nunca mais parei”, diz Carão.
O primeiro grafite, lembra ele, foi realizado em um muro na Zona Norte. “Eu escrevi Negro e pintei um homem preto com cabelão Black Power do lado.”
Daquela primeira experiência já se passaram 21 anos. E ele, que este ano completa 40 anos, resume em poucas palavras o papel transformador do grafite em sua vida. “A arte do grafite na minha vida foi um divisor de águas. O Carão tem mais tempo de vida do que o Tadeu! Digo que Carão tem 21 e Tadeu tem 20 anos”, explica ele, se divertindo.
A trajetória do artista é marcada pela constante evolução, mas preserva em seu DNA o retrato de sua raça. O que faz de seu trabalho algo único e inovador.
“Desde o meu primeiro grafite sempre pintei gente preta. O grafite vem da periferia e tem essa característica de democratizar espaços variados da cidade. Somos a maioria da população nesse país, mas não temos liberdade de transitar em todos os espaços. Então, quando faço minha arte na rua, eu quero, justamente, que pessoas como nós se sintam representadas e quero reforçar para elas, e para todos, que nós pretos somos lindos, somos capazes e podemos estar sim, onde quisermos estar.”
A curadora da exposição no Sesc Cadeião, Viviane Feitosa, explica a importância dos trabalhos do artista. “As obras do Carão são super relevantes para a cidade e quando ele nos procurou para expor aqui eu topei na hora! Ele trabalha com grafite bem realista e tem esse foco no tema do negro, então essa exposição abre esse espaço para o diálogo sobre representatividade”, opina.
E como é ser um artista preto? “Ser artista já é difícil. Ser um artista preto é mais difícil ainda e retratar pessoa preta então… É um outro nível de complexidade e de dificuldade, mas me defino como um homem preto feliz fazendo minha arte.”
E essa arte já levou o artista londrinense para vários países. “Já pintei em Paris, na França. Na Bélgica, nos Estados Unidos, na Colômbia, Argentina. Nossa, foram vários países, mas nunca pintei em nenhum país do continente africano, então, quando passar esse perigo da pandemia, quero grafitar na África”, planeja.
Ao longo dos anos, Carão foi adicionando outros elementos ao seu grafite. “A marca vermelha sempre esteve presente, mas com o tempo incorporei o sol e a lua também. Então, nas imagens mais quentes uso o sol e nas mais frias a lua, mas a essência do meu trabalho é a mesma. São pessoas pretas com um brilho no olhar.”
A técnica utilizada segue sendo a tinta em spray, característica do grafite, mas ele reforça que as obras em exposição na Expo40 não são grafites. “Os trabalhos expostos aqui foram feitos com técnicas do grafite, mas para ser considerado grafite, a arte tem que estar na rua.”
Mais do que pinturas em muros, o grafite é uma forma de artivismo. “Isso de ser artivista para mim é algo natural que sai de dentro de mim. É a mensagem que levo para a rua e que vai conversar com as pessoas”, acrescenta.
E essa conversa de fato acontece. Sou uma jornalista preta e minha relação de identificação com o artivismo de Carão foi assim, meio por acaso, quando em 2012, passando pela lateral do Bosque Central, cruzei com ela. Uma mulher negra, com um olho roxo. De imediato identifiquei nela uma dor dentro de si que era também a minha dor. Era a dor solitária e funda que mulheres pretas sentem pelas várias opressões que nos atravessam. Era dororidade.
Representatividade e Identificação
No dia seguinte, aquela mulher estava ali de novo e no seguinte também e no outro… E de repente éramos eu e ela todas as manhãs, trocando olhares que alcançavam a profundidade de saber-se sujeito, mas de ser lida como objeto. De saber-se ser, mas de ser lida como não sendo. Eu era ela. E ela era eu. E na nossa dor fomos nos identificando, até ela ser transformada assim, sem aviso prévio, num muro cinza.
Para alguma autoridade aquela arte era só uma poluição visual. Mas para mim, mulher preta, foi o assassinato sistêmico de uma irmã. E a exata analogia à vida das pessoas pretas que ousam ser e ocupar espaços não marginais.
“Como artista, para mim é uma alegria saber que a minha arte toca a vida das pessoas. Você vê como a arte do grafite tem esse poder de representatividade, de identificação. Você se identificava com aquela mulher da minha obra no Bosque e assim acontece em todo lugar. As vivências são diferentes, mas sempre há a identificação das pessoas com meu grafite. Sempre alguém vem me falar que se sente bem, feliz ou tocado vendo um dos meus trabalhos e isso para mim é excepcional. É muito gratificante”, relata Carão.
“Quero que as pessoas olhem e tenham esse entendimento de que nós, os pretos, podemos estar em outros espaços. Embora sejamos insistentemente desvalorizados. Com as crianças pretas, por exemplo, se cria na cabeça delas que elas não têm valor, então essa criança vira um adulto que se acha feio, que não se acha capaz e através da arte talvez ele tenha uma outra visão de si mesmo. Se vendo representado ali no grafite a pessoa vê que ela tem valor. E ela realmente tem”, conclui o artista.
A exposição de Carão no Sesc Cadeião é composta por dez telas que estão à venda. Parte da renda será revertida para famílias carentes que estão em dificuldades durante a pandemia.
Mais informações sobre a Expo40 do artista do grafite Carão pelo fone (43) 3572-7700.
Serviço
Expo40 Carão
Onde: Sesc Cadeião. Rua Sergipe, 52, Centro, Londrina- PR.
Quando: De terça à sábado, das 9h às 18h.
Entrada: Gratuita
Capacidade: 10 pessoas
Encerramento: 12 de agosto
Protocolos de Segurança durante a pandemia: Uso obrigatório de máscara e respeito ao distanciamento.
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