Tenho um filho de quase 4 anos de idade e iniciamos esta semana a fase de adaptação dele ao ambiente escolar. Estava eu ali, acompanhando todas as atividades da turma a uma certa distância quando fui surpreendida no pátio da escola por um pai que me abordou com a seguinte frase.

“Oi, você pode limpar ali, pra mim? Meu filho derrubou o suco.”

Minha primeira reação foi o choque. Cercada ali de crianças do jardim de infância, vi meu mundo virar de ponta cabeça em um segundo.  E, com grande esforço, respondi:

“Eu não trabalho aqui. Sou mãe de aluno.”

Ele me olhou com estranheza e falou:

“Mas você não é daqui, né?”

E assim, no meio do pátio, em plena quarta-feira à tarde, recebi a fatídica dose diária de racismo. Porque essa é a perversidade do racismo, ele é cotidiano, diário, escancarado, invasivo, violento e atravessa a existência de pessoas negras sem aviso, sem cerimônia, sem reserva, sem local definido. Não existe zona de segurança psicológica, mental, física ou emocional para uma pessoa negra quando ela é surpreendida pelo racismo.

Pela construção social da mulher negra como a subalterna, a serviçal, a mucama, aquele homem branco supôs que eu, uma mulher preta, estando ali, no pátio de uma escola particular, no meio da tarde, só poderia ser uma funcionária e não qualquer funcionária. Eu só poderia ser uma funcionária da limpeza.

A cena colonial se recria e o “senhor branco”, se vê na liberdade de dar uma ordem a uma “escrava negra”.

Veja bem, não há problema algum em ser negra e trabalhar no setor de limpeza de uma escola particular. O problema tem início quando, pelo gênero e pela raça, as mulheres negras são confinadas a este espaço de subalternidade e apenas a ele.

Se a pessoa parada naquele pátio não fosse eu, uma mulher preta, mas sim um homem branco. Será que ele teria sido abordado por outro homem branco com uma solicitação para executar um trabalho de limpeza?

Se fosse uma mulher branca naquela situação, ela teria sido abordada com a mesma solicitação? Talvez se houvesse apenas homens ali e ela fosse a única mulher, sim. Mas será que essa mulher branca teria sido questionada sobre pertencer ou não pertencer àquele ambiente?

No imaginário de pessoas brancas, a mulher negra só ocupa espaços se for para servir. A herança do período escravocrata nunca permitiu às mulheres negras transpor esses limites impostos pelo racismo. É uma construção social que confina o corpo feminino negro a este imaginário da subalternidade.

O evento que acabei de descrever se caracteriza como um ato de racismo genderizado, porque foi um ato de racismo baseado na percepção de raça e gênero, numa associação direta entre minha raça, meu gênero e minha utilidade para aquela situação.

E quando o sujeito branco foi informado de que eu estava na mesma posição em que ele naquele momento, afinal éramos ambos pais de alunos em adaptação na escola, a reação imediata dele foi me deslocar daquela posição de igualdade com a pergunta: “Mas você não é daqui, né?”.

A conjunção adversativa no início da sentença já me desloca da posição de pertencimento àquele local, já me situa como alguém não pertencente àquele ambiente. A cultura patriarcal e o racismo tornam aquele um local interdito para um corpo feminino negro. Ele só é tolerado ali se for para servir.

Ou seja, em uma relação pais – filhos – adaptação na escola, eu não sou diferente de nenhum outro pai ou mãe ali, mas pela minha raça e pelo meu gênero eu sou interpelada com um discurso que faz questão de me colocar como não pertencente aquele lugar e aquele grupo.

Pela irracionalidade do racismo, eu, pessoa negra entro em choque com a abordagem e quando tento me articular para lembrar ao sujeito branco que eu também estou ali nas mesmas circunstâncias em que ele, eu sou separada do senso de comunidade, eu sou privada do pertencer, privada da ideia de comunidade, pela pergunta: “Você não é daqui, né?”.

E assim, pouco importa que o sujeito negro tenha transposto as barreiras de classe, porque as barreiras relacionadas à raça e no caso da mulher negra, as barreiras relacionadas também ao gênero ainda vão garantir que não nos seja permitido o acesso à noção de comunidade.

Alguém mais aí vê a relação entre a casa grande e a senzala?

Ana Maria Alcantara é mulher preta, mãe, jornalista e feminista negra. Ligada no rolê de skincare nas horas vagas.

Uma resposta para “Racismo Cotidiano”

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