Não há pensamento que não corte minha escrevivência desta semana. Sangra! Toda carne esfola! Todo estômago revira diante do cenário grotesco que estamos vivendo.
Quase 600 mil mortos pela Covid-19. Destruição pelos campos, cidades e florestas. Medicamentos e vacinas vencendo e estragando sem utilização, diante da necessidade das pessoas. Feijão sendo menosprezado à revelia dos fuzis. Na semana em que se comemora a Independência do país, ameaças à democracia e às instituições. Dói ver o território minado. Não precisávamos passar por isso. Cadê o momento do basta, que não chega?
Ruminando o mundo, cercado de incertezas, sendo picado pelas moscas varejeiras que tomaram o poder pelo golpe, desejantes que nos tornemos mais um no rebanho. Acontece que orgulhamo-nos de nossa potência! Viva a independência! Viva a resistência! Que nossas diferenças sejam tratadas com equidade e nossos novos quilombos possam romper com as lógicas necropolíticas. Valas abissais empurrando os corpos para precariedades inumanas e desiguais.
Somos mais que moscas ao redor da lâmpada. Somos multidões de vagalumes, que subvertemos a ordem posta, do pastor, do líder, do profeta. Quem precisa de profecias, sendo corpos imanência do devir potência para além dos órgãos, do eu e da consciência? Somos corpas em luta. E o que pode uma corpa? O que podem corpas dissidentes em luta? O que podemos nós?
Esse cenário devastador tem nos roubado, empobrecido, matado. A tara da necropolítica instaurada… mas há resistências, mesmo que por vezes exaurida. Gotas d’água em pedras duras, tanto batem até que furam, mas sem perder a função água, seu molejo, que sacoleja, corre curso, leitos, ondas avançares latentes e pulsantes, arruinando os frágeis pilares, que julgava forte o suficiente. Somos correnteza, queda d’água, cachoeira, quebradeiras rio afora, vida que atravessa, rompe, segue o fluxo… Ah, mas dói. Tá doendo.
O Grito dos excluídos apropriado pelo berro dos privilegiados apoiadores dos abismos sociais, que nunca deixaram de existir na história de nosso país e agora ganha proporções agigantadas. Um Brasil colapsado, devastado, num banquete de poucos ossos e muitos ossos, duros de roer, também duros para resistir. Nos pratos esvaziados cada vez mais de feijão, multidões de Lancellottis se multiplicam. Por quanto tempo? Até quando?
“Constitui crime inafiançável a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” diz o art. 5º, da Constituição Federal. Os manifestos sangram a atual história de nosso país. Pus-me a recolher as mensagens que produzimos pelas ruas, a espantar-me, encorajar-me, procurar as mãos para alianças, para seguirmos em frente, Muitas declarações aspadas, de muitos de nós:
Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.
A democracia é inegociável
Genocida!
Fora Cafonas!
Celebrar o crime. Vergonha. Problemas de caráter e hipocrisia. Tirar a foto ao lado daquele que rouba tua dignidade.
Expectativa: derrubar o STF. Realidade: foto com ao lado do ídolo torpe.
Vestir-se bandeira, desviando do corpo estendido no chão.
Pagamentos para lotar um evento, que mesmo assim, não teve a adesão esperada.
Discursos messiânicos, de ódio, opressão, ressaltando ditadores em nome de deus. Colocando-se como escolhido de deus. Que deus? Que escolha?
Vergonha diante do mundo, o país se arrasta no grotesco espetáculo.
A mãe do Brasil é indígena.
Arroz, feijão, vacina, educação! Armas não!
Nossa bandeira não será miliciana.
Pátria ameaçada, Brasil: desespero federal.
Toda essa movimentação para testar as instituições e ver os limites. Parece que certo limite foi dado, ainda que tímido, e o rugido virou miado. É um tsunami que nos revira, contudo, não vivemos sem utopias e sonhos e esperançares. Como escrever sem que as palavras não tragam outros novos possíveis e respirares. Não dá pra escrever sem transformar os caracteres em outros registros possíveis de realidade. Estar entre sempre foi minha condição existencial, e as palavras não fogem à regra. Como destaca Virginie Despetes, no Prefácio do livro, Um apartamento em Urano: crônicas da travessia, de Paul B. Preciado, ao se referir ao amigo:
“não se faz política sem entusiasmo. Quem faz política sem entusiasmo é de direita. E você faz política com um entusiasmo contagioso — sem nenhuma hostilidade contra os que exigem a sua morte, apenas com a consciência da ameaça que eles representam para todos nós. Mas você não tem tempo para a hostilidade nem o temperamento para a cólera — revela mundos a partir das margens, e o que tem de mais surpreendente é essa capacidade de continuar a imaginar outra coisa. Como se as propagandas deslizassem sobre você e seu olhar fosse sistematicamente capaz de desestabilizar as evidências. A sua arrogância é sexy — a arrogância alegre que permite que pense em outros lugares, nos interstícios, que queira morar em Urano e escrever numa língua que não é a sua, antes de dar conferências numa outra língua que tampouco é a sua… Passar de uma língua a outra, de um tema a outro, de uma cidade a outra, de um gênero a outro — as transições são a sua casa.”
Nossas crônicas brasileiras, latino-americanas, são crônicas dessa travessia pela qual passamos juntes. Esse artigo tenta te abraçar, leitor, e dar a mão e tenta me abraçar e me dar a mão também. É bom sabermos que somos muitos e que não estamos sós. Estamos juntes e colorindo os muros e as paredes, como a artista Carolina Jesk, de Botucatu, interior de São Paulo. Por isso, ela foi multada em 35 mil reais, pelas artes com as quais coloriu a cidade. Acredita?
Queremos continuar a colorir nossos aqueerlombamentos! Queremos um país em que Jean Willys, Márcia Tiburi e outres tantes manos e manas trans e travestis, negros e negras, LGBTIA+ e queers, mulheres, indígenas, crianças… possam viver dignamente, sem serem ameaçados de morte! Queremos produção de vida! Queremos viver! É muito, querer viver com dignidade?
*Régis Moreira, Comunicólogo Social e Gerontólogo, doutor pela ECA (USP) em Ciências da Comunicação, docente do Depto de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (UEL), onde atua como pesquisador na área de comunicação, envelhecimento e gênero. Pesquisador do Observatório Nacional de Políticas Públicas e Educação em Saúde.