Destaque do projeto lançado em 2020 pela Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente de Londrina e região são os círculos de diálogo que usam elementos da justiça restaurativa

Mariana Guerin

Foto em destaque: Lançamento do Corre em Família em 2020

O projeto Corre em Família, lançado em 2020 pela Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente de Londrina e região, comemora um ano em 19 de novembro com um saldo bastante positivo, apesar das dificuldades de atendimento impostas pela pandemia.

Crislaine Fernanda Monico da Silva, 33 anos, moradora da Zona Sul de Londrina, recuperou o amor da família após participar de um círculo de diálogo proposto pelo Corre por intermédio do Conselho Tutelar. “Foi muito bom. Conversei, falei tudo o que eu sentia. Não tive dificuldade em me expressar e me emocionei na hora, até chorei”, resume a mãe de Nicolas, 14, Antony, 11, Pedro, 9, e Kauã Ricardo, 6.

A dona de casa conta que ela e o marido, o jardineiro Jhone Ricardo da Silva, 37, viveram momentos de dificuldade no casamento e, por conta das brigas, o casal decidiu se separar há três anos. Ela, então, mudou de bairro com os filhos e na nova casa, sozinha com as crianças e desiludida, começou a beber “exageradamente”.

“Eu comecei a dar mais atenção às amizades na rua do que aos meus filhos e comecei a perdê-los”, confessa Crislaine, que foi abordada pelo Conselho Tutelar e encaminhada ao Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD), onde iniciou um tratamento contra o alcoolismo.

Ela também foi convidada a participar de um círculo de diálogo ofertado pelo Corre e foi então que sua vida mudou. “Eu e meus filhos participamos da conversa e foi quando eu percebi o quanto estava me afastando da minha família. Depois dessa terapia, decidi procurar meu marido, nos entendemos e voltei para casa.”

Hoje, a família de Crislaine vive no mesmo quintal da sogra dela, num bairro onde os filhos podem brincar na rua com segurança. “Quando a gente estava no condomínio, eles ficavam o dia todo fora do apartamento e adquiriram o hábito de xingar muito.”

Para ela, participar do Corre foi como tomar uma injeção de esperança: “Ganhei uma segunda chance com meus filhos e meu marido. Comecei a ir ao Caps, a tomar remédio, a dar mais atenção para a família e vou até na igreja”, completa a dona de casa, que diz não sentir mais vontade de consumir álcool e pretende buscar um emprego no próximo ano. “Quero dar algo melhor aos meus filhos.”

Crislaine, o marido e os filhos-Arquivo Pessoal

A adolescente Gisele Mariane, de 17 anos, moradora da Zona Norte de Londrina, também está superando uma história de vida sofrida com o apoio do Corre em Família. “Moro no Vista Bela com meu marido Matheus e sou atendida pelo Conselho Tutelar desde os meus 12 anos. Por meio do projeto Corre, nos círculos de diálogo, comecei a ter mais proximidade com o Conselho Tutelar e outros serviços que me atendem.”

“Quando adolescente, já fui apreendida e fiquei um período no acolhimento institucional. Era bem rebelde, mas agora consigo ver que tenho apoio do Conselho Tutelar, que eles estão para me ajudar e estou conseguindo superar uma história de vida bem sofrida”, comenta Gisele.

Segundo ela, participar dos círculos a fez refletir: “Hoje estou estudando, trabalhando e conseguindo ser independente, aproveitando o que os profissionais me oferecem. Hoje sonho em construir uma família que eu nunca tive”.

 ‘Corre’ dirige olhar a famílias em desproteção social

Corre vem da união dos conceitos de companheirismo, ressignificação, respeito e empatia, com o intuito de olhar famílias em situação de desproteção social. Por meio de círculos de construção de paz, um dos elementos da justiça restaurativa, o projeto quer promover o diálogo, o acolhimento, o acesso à informação e às demandas individuais e coletivas, além do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.

“O projeto começa com uma inquietação do Conselho Tutelar, que recebe as famílias que procuram orientação em relação aos cuidados com os adolescentes. As dificuldades no exercício da maternagem, da paternagem, de como impor limites”, diz a juíza Claudia Catafesta, da Vara de Adolescentes em Conflito com a Lei de Londrina, integrante do Corre.

“Muitos adolescentes vinculados com práticas infracionais e as famílias sem saber como agir, então o conselheiro me procura, como juíza, para a gente pensar em alternativas para amparo e orientação dessas famílias”, completa Claudia, explicando que a participação do Judiciário no Corre é se colocar como mais um elo da rede protetiva.

“Não só esperar que o conflito aconteça, que um ato infracional aconteça para que a Justiça possa ser acionada, mas essa atuação mais moderna do Judiciário, mais contemporânea, que se antecipa aos conflitos e que procura se envolver com as questões sociais para poder fomentar a cultura de paz e resolução alternativa e mais pacífica.”

Para a juíza, o impacto do projeto na comunidade está na criação efetiva das redes de apoio às famílias e às crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. “A gente tem isso muito definido na legislação: que o trabalho deve ser intersetorial, que deve envolver várias políticas, que deve criar um sistema de garantias. Mas, na prática, essas políticas estão muito isoladas e o projeto junta essas pessoas que compõem essas políticas para pensar em soluções para os problemas que envolvem a violência e as desproteções sociais do público-alvo.”

Claudia cita que o projeto atua em duas frentes: uma delas são os grupos reflexivos para as famílias que procuram orientação no Conselho Tutelar, na premissa de que as famílias encontrem juntas alternativas e soluções para as dificuldades. “São círculos restaurativos, de diálogo, de conversas mediadas por profissionais da educação, que são professores-mediadores buscando esse protagonismo e autonomia das famílias na resolução dos conflitos.”

Segundo a juíza, quando as famílias não conseguem mais controlar os filhos, elas costumam procurar o Judiciário e as políticas públicas para resolver. “Mas a gente sabe que a Constituição Federal traz como princípio muito importante, no artigo 227, a responsabilidade compartilhada entre família, Estado e sociedade para garantir direitos de crianças e adolescentes.”

“Nós somos passageiros na vida desses adolescentes, as famílias são as verdadeiras protagonistas”, reforça Claudia, citando que outra ação importante do projeto está na participação da Polícia Militar.

“Quando um adolescente está numa situação envolvendo o tráfico e condutas ilícitas, está fora da escola ou sofre alguma abordagem policial, ou se não existe nenhum ato ilícito, nenhum crime, a polícia simplesmente não leva isso adiante. Com o projeto, nós queremos um elo entre a PM e o Conselho Tutelar. Então, quando não é caso de crime ou ato infracional, eles lavram um boletim de ocorrência diferenciado, narrando essa situação, para que o Conselho Tutelar seja acionado a ajudar essa família.”

Os encontros dos grupos reflexivos, que exigem espaços de compartilhamento de pessoas, foram prejudicados pela pandemia, mas estão sendo retomados com o avanço da vacinação contra a covid-19. “A gente já tem essa articulação da rede, que é uma coisa muito importante. Uma das grandes conquistas do projeto é a união entre essas diversas políticas, que envolvem educação, saúde e o próprio Poder Judiciário”, declara a juíza, lembrando que o Corre em Família é formado por voluntários.

“A gente vai percebendo, à medida que vai avançando, a importância de envolver a família no combate à violência. Nós todos, sociedade, família, Estado, temos uma responsabilidade pela garantia de direitos de crianças e adolescentes e quando crianças e adolescentes têm uma infância adequada, desenvolvem-se bem, estão sendo protegidos e cuidados, e isso evita que se envolvam na prática de atos violentos no futuro”, conclui Claudia.

Papel da PM é ‘servir e ajudar’

Segundo o Major Marcos Tordoro, da 4 Companhia Independente da Polícia Militar, o intuito da PM no Corre “é servir e ajudar”. “Nós, efetivamente, estamos em lugares onde outras pessoas não estão. Trazemos informações, trazemos nosso olhar para o grupo e para a realidade da periferia”, sinaliza.

“Nós também ouvimos as pessoas do grupo e as famílias, ouvimos o que elas percebem sobre a realidade, com o olhar que elas têm que nós não temos e, com isso, nós crescemos”, completa o Major. “São gerações impactadas pelas ações do projeto, seja nas comunidades periféricas ou nas comunidades de regiões de bairros mais organizados ou até na região central.”

Para Tordoro, a conquista do projeto está em desconstruir muros: “É quebrar fortalezas que existiam entre uma e outra entidade, entre uma e outra pessoa que representa esse ou aquele órgão, aquele segmento. O Corre é importante para que a família tenha todo investimento do Estado e do próprio Corre, de tempo e energia, porque a família estando orientada, a chance de uma criança ou adolescente ser bem orientado aumenta”.

“As famílias são a base da sociedade, por isso a importância de investirmos nas famílias, de cuidarmos das famílias, de estarmos atentos para a angústia e sofrimento das mães, dos pais e cuidadores que nem sempre são mães e pais biológicos, mas têm uma voz. É muito importante esse olhar para as famílias e para os lares”, opina o major.

Cassia Munhoz Silva, supervisora da Guarda Municipal Escolar Comunitária (GMEC), ligada à Secretaria Municipal de Defesa Social, integra a construção coletiva do Corre em Família com o intuito de “criar um vínculo entre a sociedade e a nossa instituição.”

“Para isso, em nossas capacitações, que acontecem anualmente, nós trabalhamos a abordagem humanizada da polícia comunitária e os direitos humanos nos nossos trabalhos preventivos. Este semestre, estamos realizando nas escolas do município palestras sobre violência intrafamiliar. Falamos sobre a violência contra a mulher, contra a criança e ao adolescente, falamos para o idoso e pessoas com deficiência”, cita.

“Participamos também de ações e campanhas educativas juntamente a outros serviços das secretarias de Educação, Assistência Social e Saúde, Conselho Tutelar, Polícia Militar, Ministério Público. Estamos todos juntos trabalhando por essa integração que acontece entre os serviços e que beneficia não só as famílias atendidas pelo Corre como toda a sociedade, porque estudamos maneiras de aperfeiçoar os atendimentos realizados à população londrinense”, opina Cassia.

‘Corre’ aproxima GM, PM e Conselho Tutelar

Para a conselheira tutelar da Zona Sul Ellen Luz, que também integra o projeto, o Corre em Família foi um grande passo para a aproximação entre Guarda Municipal, Polícia Militar e Conselho Tutelar. “A construção de uma rede é importante e algumas famílias atendidas já saíram da situação de desproteção. Como o Conselho Tutelar não é um órgão executor, mas tem um pé na comunidade, ele pode cobrar o Município sobre os problemas”, diz.

“A sociedade não pode ficar alheia ao que acontece na comunidade e o conselho, por meio de conexões com instituições que trabalham com adolescentes aprendizes, consegue sensibilizar a sociedade civil, a associação comercial, e acontecem vários desdobramentos que aproximam as pessoas das demandas dos conselhos tutelares”, completa Ellen, que iniciou seus trabalhos com famílias em vulnerabilidade social há 15 anos, no Provopar.

“Tudo é uma história. Quando entrei no Conselho Tutelar, percebi uma insuficiência de serviços para os jovens. Foi quando me aproximei da doutora Claudia e então criamos uma comissão específica reunindo outros integrantes que atuam com práticas restaurativas e tivemos a reunião com o major Tordoro”, recorda a conselheira.

Segundo ela, o objetivo do Corre é propor um olhar mais humanizado para a prevenção da violência e criar um fluxo de informações. “Um dos desdobramentos do Corre foi a criação de um canal de denúncias, que integra os boletins de ocorrência da PM e os atendimentos do Conselho Tutelar e das Unidades Básicas de Saúde para aproximar famílias.”

Círculos de diálogo são restaurativos

A professora-mediadora Lidiane Machado atuou nos poucos círculos de diálogo realizados pelo Corre na Zona Sul de Londrina desde o ano passado. “Os círculos de diálogo acontecem nos territórios. São reunidas famílias em situação de vulnerabilidade social, que vivem casos de violência ou outra dificuldade. A gente reúne em locais específicos, onde se possa colocar, no máximo, 15 famílias e trabalha uma temática conforme a demanda”, descreve.

“A gente sempre avalia antes quais são as generalidades daquela família ou daquele território ou daquele grupo específico. Sempre pensamos num círculo que traga temas restaurativos para essas famílias, temas que elas possam fazer reflexão, que elas possam sair dali restauradas.”

“A gente se conecta o tempo todo com os envolvidos”, declara Lidiane, explicando que o círculo é constituído por etapas: boas-vindas, explicação da peça centro, objeto da palavra, cerimônia de abertura, check-in, construção de valores, construção de diretrizes, contação de história, check-out e cerimônia de encerramento, que oportunizam sentimentos de pertencimento, igualdade, horizontalidade, segurança e visão compartilhada.

“É tão gostoso você ouvir e ser ouvido. O círculo tem essa conduta de saber ouvir o outro. Como é difícil a escuta ativa. Eles têm que ouvir as histórias dos outros e as pessoas, automaticamente, vão entrando na emoção, vão abrindo o coração, falando dos seus sentimentos, das suas dores, das suas fragilidades. E ele é tão horizontal, todo mundo igual. A sensação é de pertencimento. Quem participa de um círculo com certeza volta. Ao final do círculo, a gente gosta de ouvir como eles se sentiram e a fala é sempre muito positiva, muito acolhedora”, declara a mediadora.

Companheira de Lidiane nos círculos, a facilitadora Angelita Ferreira de Jesus lembra que os círculos de diálogo acontecem dentro da proposta da justiça restaurativa.  “Estes círculos acontecem de forma presencial e os participantes e os facilitadores se colocam em posição de horizontalidade, somos todos iguais. No último círculo, recebemos 12 famílias que se encontravam em diferentes conflitos e estavam sendo acompanhadas tanto pelos professores mediadores quanto pelo Conselho Tutelar.”

“Estas famílias foram recebidas com muito carinho e demos a elas a chance de serem ouvidas sem julgamentos. Acolhemos suas dores, suas alegrias e suas falas e tocamos a sua vida com respeito à sua vivência e praticamos a empatia através do olhar delas”, diz Angelita, informando que algumas famílias já sofreram mudanças.

“Como exemplo, a família da Crislaine, em que houve uma reestruturação familiar linda. Saíram do lugar que estavam e estão juntos, se reerguendo e buscando melhorar naquilo que foram falhos.  A fala da participante é: obrigada por ter me enxergado e ainda por me fazer enxergar que ainda sou pertencente”, cita a facilitadora.

Segundo ela, a cada círculo, algo novo surge. “Dizemos que é um momento mágico, pois olhamos para nós, falamos de nós e aprendemos com todos, pois em cada fala compartilhada, nos vemos nela. É impactante fazer a diferença sem fazer comparações ou ainda servir de exemplo.  É ser igual, com erros e acertos. É restaurar porque se quisermos e termos com quem contar, podemos, sim, sempre melhorar, errar e aprender.”

As professoras-mediadoras Angelita e Lidiane se preparando para um círculo de diálogo restaurativo-Arquivo Pessoal
Conselho Tutelar tem ação protetiva

Na Zona Norte, a ação do Corre em Família desmistificou o trabalho do Conselho Tutelar para a comunidade. “A população não via o Conselho Tutelar como órgão de proteção, mas como um órgão de punição e estava afastada. Quando o Corre começou a atender essas famílias indicadas por nós para os círculos restaurativos, vimos que as mães também precisavam ser ouvidas e acolhidas por um serviço”, destaca a conselheira tutelar da Zona Norte Fernanda Tassia Nascimento Oliveira.

“Hoje, a gente vê uma grande mudança porque foi um crédito que essas famílias deram ao Conselho Tutelar, para realmente saber se a gente ia fazer diferente. A gente acolheu essas famílias nos círculos restaurativos. As mães sempre falam que foram ouvidas, muitas pedem um círculo ali para a gente trocar informações, aprender uma com a outra”, avalia Fernanda.

Segundo ela, um dos medos das famílias era de que as informações divididas nos círculos chegassem ao juizado. “Nosso papel é de proteção à criança e ao adolescente, de acolher e não de punir. Fez uma grande diferença aqui na região Norte, onde as mães nos procuram mais e veem o Conselho como um órgão protetor, que vai realmente agregar na vida delas.”

“Pensando na perspectiva da ressignificação, cada um tem um histórico de vida e a gente mostra para eles que eles que o Corre é o nosso Corre. É um projeto bem significativo porque as famílias sabem que não precisam correr sozinhas e a gente já vê grandes mudanças a partir das sementes que estamos plantando.”

Para a professora-mediadora Simielle Borges Belisario, entre as ações mais importantes do Corre em Família na Zona Norte estão conhecer mais sobre a realidade das famílias e facilitar os círculos restaurativos, aproximando as famílias do Conselho Tutelar.

“A gente pode se aproximar ainda mais das famílias porque, nesse momento, somos todos iguais. É um momento no qual a gente troca com as famílias, no qual as mães veem que até nós, da educação, temos problemas e angústias e passamos por superações. O maior ganho foi essa possibilidade de se aproximar ainda mais da realidade das famílias dos nossos alunos.”

Outro ponto importante, na opinião de Simielle, é o trabalho conjunto com outros serviços: “Nós já temos um trabalho efetivo com o Conselho Tutelar, mas essa aproximação com o Judiciário, com a PM e outros serviços que atendem as famílias no território foi possibilitada graças ao projeto Corre, tornando nossas ações mais efetivas, não só da educação quanto da proteção da criança, com muitos atendimentos em posto de saúde, atendimento odontológico e até psicológico, mostrando o compromisso de todos em fazer algo diferente pelas nossas crianças e adolescentes”.

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