“Tribunal do Genocídio” foi organizado pelo coletivo Professor André Naveiro Russo, criado em homenagem ao docente que morreu por covid a poucos dias de receber a vacina

Mariana Guerin

Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi condenado na manhã desta quinta-feira (25) por genocídio e outros quatro crimes, em um julgamento simulado realizado no Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).  O “Tribunal do Genocídio” foi organizado pelo coletivo Professor André Naveiro Russo, criado em homenagem ao docente do curso de Jornalismo da PUC-SP, que morreu de covid, em junho de 2021, a uma semana de tomar a primeira dose da vacina.

O julgamento foi presidido pela desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo Kenarik Boujikian. A acusação ficou a cargo da ex-procuradora-geral da República Deborah Duprat e a defesa foi realizada pelo advogado Fabio Tofic Simantob. “No conselho de sentença, foi garantida a diversidade na luta, de gênero e raça”, destacou a juíza.

O júri foi composto por sete pessoas. Entre as três mulheres estavam Lucineia Rosa dos Santos, professora em Direitos Humanos dos Refugiados e Direito da Criança e do Adolescente na PUC-SP; Sheila de Carvalho, jurista e membro da Coalizão Negra por Direitos, e Luana Hansen, rapper, MC e ativista dos direitos das mulheres.

Entre os quatro homens, Arthur Chioro, médico e ex-ministro da Saúde no governo da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT); Frei David Santos, coordenador nacional da Educafro Brasil; Edson Kayapó, escritor, ativista no movimento indígena, ambientalista e doutor em Educação, e João Pedro Stédile, membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Condenação por genocídio é simbólica

O julgamento simulado durou 3h30 e contou com apresentação dos advogados de acusação e defesa, réplica da acusação, tréplica da defesa e argumentação dos sete jurados, que decidiram, por unanimidade, a condenação do presidente em cinco crimes, baseados em tipificações internacionais, como os crimes de genocídio e crime contra a humanidade, e do Código Penal brasileiro: crime de epidemia, infração de medida sanitária preventiva e charlatanismo.

No auditório do Teatro Tuca, convidados espalharam-se, com distanciamento entre as cadeiras, e todos usavam máscaras, respeitando os protocolos de saúde. Considerados pela juíza como membros do conselho de sentença estendido, os convidados também condenaram Bolsonaro por genocídio em unanimidade.

Segundo o professor de Direito da PUC-SP Álvaro Azevedo Gonzaga, que contribuiu com um parecer técnico-jurídico sobre o tema genocídio no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid do Senado, o ato simbólico revela a ausência de políticas públicas na contenção da pandemia. “Além da técnica jurídica, o tribunal teve caráter moral, tratando de temas caros à população brasileira: decisões políticas tiveram reflexos econômicos.”

Testemunha apresenta relatório da CPI da Covid

A acusação iniciou sua fala com um vídeo em que o senador Randolfe Rodrigues (Rede Sustentabilidade), em forma de testemunho, relatou o resultado da CPI da Covid. “As investigações apontaram que dos hoje mais de 600 mil mortos pela pandemia, pelo menos 200 mil destas mortes poderiam ter sido evitadas com providências mínimas tomadas pelo governo brasileiro.”

“Mais que isso, se nós tivéssemos iniciado a vacinação de brasileiros no tempo certo, em dezembro de 2020, sacramentando contratos com farmacêuticas, nós poderíamos aumentar o número de vidas de brasileiros e brasileiras que seriam salvas pelo menos metade de 600 mil”, relatou Rodrigues.

Conforme ele, de acordo com o Código Penal, Bolsonaro deveria responder pelos crimes de homicídio, crime de epidemia com resultado morte, infração de medida sanitária preventiva, crime de fake news, falsificação de documento particular, emprego irregular de verbas públicas, prevaricação, crimes contra a humanidade, incompatibilidade com dignidade honra e decoro do cargo. No total, as penas poderiam chegar a 78 anos de reclusão.

Acusação propõe condenação por cinco crimes

Em sua argumentação, a defensora Deborah Duprat criou uma linha do tempo de declarações polêmicas do presidente Jair Bolsonaro, destacando a estratégia dele em contornar a epidemia pela imunidade de rebanho. “Essa imunidade de rebanho surge na veterinária e num contexto de vacinação: vacinando-se uma parte do rebanho, a parte remanescente consegue se imunizar mesmo não tomando vacina. No mundo das pessoas, só com vacina também.”

Ela citou ainda as mortes de indígenas para caracterizar o crime de genocídio. “O relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas) para essa matéria de direitos dos povos indígenas chamou a atenção para essa vulnerabilidade histórica e socioeconômica e a procuradoria da República no Distrito Federal recomendou ao governo uma série de medidas para garantir o atendimento dos indígenas em seus próprios territórios, levando leitos e respiradores, equipes de saúde”, destacou.

Segundo ela, o relatório da CPI também mostrou que Bolsonaro foi o maior canal de desinformação em relação a medidas farmacológicas e uso de máscara. “Atribuir ao governo Bolsonaro, no contexto da pandemia, um crime que está previsto no Tribunal Penal Internacional de Roma: crime contra a humanidade, que são atos desumanos que causam grande sofrimento a afetam gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”, disse Deborah.

“O segundo crime é o de genocídio, com base no estatuto de Roma, e há uma lei nacional também que prevê o crime de pandemia, tal como feito pela CPI, e ainda o crime na saúde: Bolsonaro provocou aglomerações em unidades da federação que tinham disposições específicas para evitar aglomerações, e crime de charlatanismo. Bolsonaro é um charlatão”, finalizou a ex-procuradora-geral.

Defesa pede desclassificação de crime de genocídio

Em seu discurso de defesa, o advogado Fabio Tofic Simantob propôs que a lei fosse usada para desigualar a justiça progressista do modo Bolsonaro de fazer política. Ele pediu a desclassificação do crime de genocídio e sugeriu a condenação pelo crime de descumprimento de normas sanitárias, justificando que o juizado fizesse a “justiça possível”.

“O crime de genocídio é um crime razoavelmente novo na história da civilização. O curioso é que as definições de genocídio da Convenção Interamericana das Nações Unidas e do Código Penal Brasileiro têm praticamente a mesma redação.”

“A intenção de destruir no todo, ou em parte, grupo nacional étnico racial ou religioso como tal, matar membros do grupo, causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo, submeterem intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”, descreveu Simantob.

Para ele, a política criminosa do governo Bolsonaro não foi genocida e sim democrática: “Ela alcançou absolutamente todos e não um determinado ou específico grupo nacional étnico-religioso. Ela alcançou jovens, negros na periferia, idosos, ela não foi uma política de discriminação racial, foi uma política de obscurantismo.”

“Eu quero pedir que se quiserem culpá-lo pelo charlatanismo, pelo crime de pandemia, pelo crime contra a humanidade, que o condenem, mas que não por crime de genocídio. Condenar por crime de genocídio é usar o princípio de que os fins justificam os meios”, sugeriu o advogado.

Para ele, o tribunal deveria ser uma “barreira contra o autoritarismo penal”. “Que nós sejamos um exemplo de como se deve aplicar a lei penal no estado de direito, de que nós não usamos o direito penal como vingança.”

Jurados defendem suas agendas

Em seus discursos, os jurados tiveram oito minutos cada para defenderem suas agendas, desde a ciência, passando pelas lutas dos movimentos negro e indígena, da periferia e dos trabalhadores rurais sem-terra. E todos aceitaram a acusação pelos cinco crimes apontados pela acusação.

“Não podemos discutir genocídio sem olhar a história, sem tentar entender o impacto de mais de três séculos de escravidão na estrutura social brasileira. É preciso entender como isso estrutura todas as nossas relações na sociedade”, disse a jurista Sheila de Carvalho, da Coalizão Negra dos Direitos. Ela lembrou dos “indesejáveis” e que a intenção de “destruir” sempre permeou o governo Bolsonaro. “Genocídio não é só a bala direta.”

“Voltamos ao Mapa da Fome, tivemos a descontinuidade de políticas públicas, que fez com que nossa população ficasse cada vez mais vulnerável. Quais são os pilares que sustentam os crimes de genocídio? Não falamos só de bomba atômica, falamos de desinformação com poder letal, que talvez seja tão grande quanto”, concluiu a integrante do movimento negro.

A rapper Luana Hansen destacou a periferia com fome e a política brasileira fracassada, que fortalece o racismo estrutural. “Não tenho dúvidas de que ele é culpado. O que eu vim falar aqui não é sobre a culpa dele e nem usar métodos ou termos acadêmicos, eu vou usar o termo da periferia mesmo. Quando foi falado que a morte é o destino de todos, para nós, que viemos da periferia e somos negros, isso é um fato histórico.”

Para João Pedro Stédile, da direção nacional do MST, o comportamento do presidente agride a soberania nacional, em especial, sua política de privatização de serviços públicos. “As estatais são propriedades do povo brasileiro e não do governo e eles estão fazendo o desmonte.”

“Sua vida e obra devem ser depositados na lata do lixo da história. Proponho que se condene a ele devolver o cargo de presidente da República para o povo brasileiro”, sugeriu o líder do MST, citando as questões rurais, das queimadas na Amazônia, liberação de porte de armas e assassinatos não esclarecidos, como o da vereadora carioca Marielle Franco.

Arthur Chioro, ex-ministro da Saúde no governo Dilma, culpou Bolsonaro pela conjuntura de fome, aumento da população de rua e desemprego que assola o País há dois anos. “Quero expressar meu respeito e a minha solidariedade às mais de 613 mil famílias que perderam seus entes queridos, gente que poderia e deveria estar hoje ainda vivendo entre nós se não fosse o conjunto de crimes inacreditáveis e bárbaros, inclusive aqueles que tipificam como crimes contra a humanidade, cometidos pelo presidente da República.”

Segundo ele, Bolsonaro “é culpado por sustentar e colocar em prática, em conluio com membros civis e militares que compõem o seu governo, empresários, parlamentares e de todos aqueles que embarcaram e deram viabilidade à tese chula e absolutamente anticientífica da imunidade de rebanho, por exposição massiva da população brasileira ao coronavírus, desconsiderando a gravidade do invento pandêmico, o maior em 100 anos de história, e os alertas da Organização Mundial de Saúde”.

Para Edson Kayapó, ativista do movimento indígena, “está evidente a política do ecocídio, em que o próprio estado afirma sobre a necessidade de fazer a boiada passar: enquanto a pandemia acontece a boiada passa, especialmente dentro dos territórios indígenas, ou seja, na instalação do agronegócio”.

“Está muito evidente a repetição de uma ação de extermínio de grupos, de pessoas subalternizadas e fecho o foco aqui para me reportar aos povos indígenas. Está caracterizado, no meu parecer, um genocídio, que é, na verdade, um projeto histórico e que neste momento é retomado com bastante fôlego através da pandemia da covid 19”, declarou Kayapó.

A professora em Direitos Humanos Lucineia dos Santos e o Frei David Santos argumentaram sobre as mortes entre a população negra, que superam a de brancos, em decorrência da covid, caracterizando um “genocídio preto”. Frei David, inclusive sugeriu que parte do salário do presidente fosse destinado “ao pagamento de pensão aos órfãos do racismo estrutural”.

Juíza aplica pena máxima

“Eu espero que as autoridades próprias e as instâncias próprias façam esse julgamento. Que agora o Tribunal Penal Internacional cumpra seu papel. Que o Ministério Público brasileiro e o Judiciário cumpram seus papeis”, finalizou a magistrada Kenarik Boujikian, após proferir a sentença.

“Em cumprimento ao veredito do conselho de sentença, em cumprimento ao deliberado pelo conselho de sentença estendido, considero o acusado Jair Messias Bolsonaro culpado dos cinco crimes que foram imputados na acusação apresentada pela Dra. Débora Duprat.”

“Foi sugerido aqui por alguns membros do conselho aplicação de outras penas, mas nós vamos ficar restritos aos comandos do que está estabelecido na denúncia e nos termos da lei. Outras penas, outras consequências, nós temos que construir em outros espaços de luta”, propôs a juíza, que decidiu por aplicar pena máxima para cada um dos crimes.

“Muita gente ouviu que ele é um louco, é só um doido, mas não há nada relacionado à inimputabilidade. É uma pessoa sã e as suas ações refletem seu baixíssimo desenvolvimento moral.”

“Os atos são percebidos como instrumento da satisfação pessoal, não à internalização de princípios morais. Vamos muito longe de qualquer relação de respeito com a sociedade, de preocupação com o bem-estar do coletivo”, finalizou a magistrada.

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