Ministério Público deve apresentar esta semana, aos vereadores, relatório sobre a precarização do serviço municipal de saúde mental, que envolve as três unidades do CAPS

Mariana Guerin

Em outubro, a Rede Lume noticiou que a Saúde de Londrina está com dificuldades em contratar psiquiatras para atuarem nas unidades do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do município. Recebemos a denúncia de um paciente que buscou atendimento no CAPS III por duas vezes no intervalo de cinco dias e não conseguiu, por falta de profissionais.

Recentemente, outros usuários e até funcionários do serviço procuraram a reportagem para denunciar o sucateamento da saúde mental em Londrina. A promotora dos Direitos à Saúde, Susana de Lacerda, está preparando um relatório sobre este tema, o qual será apresentado à Câmara dos Vereadores na próxima quinta-feira. Segundo ela, o Ministério Público está em negociação com o Município e inclusive já há uma ação tramitando na Justiça no tocante às residências terapêuticas, serviço ainda inexistente em Londrina.

“O foco não é a negligência dos funcionários, eles estão sobrecarregados. Ponto importante do relatório que está sendo fechado é que há uma psiquiatra para atender toda a população infanto-juvenil e para o CAPS III, para adultos, idem. Além disso, a demora por uma consulta, que é de cerca de um ano, e a demora no retorno, de cerca de seis meses. Além da falta de equipes multidisciplinares e de terapia individual, sem busca ativa de pacientes, sendo que hoje, o único tratamento é a medicalização”, cita a promotora.

Ela explica que ainda não existem ações concretas para implementar a melhora no serviço. “Preciso que a problemática venha à tona, que todos tenham informação sobre as deficiências”, diz Susana. A vice-presidente do Conselho Municipal de Saúde, Vaine Teresinha Pizolotto Marques, informou que, até o momento, o CMS não recebeu nenhuma denúncia sobre a sobrecarga dos funcionários dos CAPSs.

‘Estão deixando os CAPSs como ambulatórios’

A filha de um paciente idoso que faz tratamento no CAPS III para transtorno bipolar procurou a Lume para contar sobre o desmonte do serviço. Ela faz parte da Associação Londrinense de Saúde Mental (ALSM) e não quer ser identificada por medo de comprometer o tratamento do pai.

“Tem trabalhadores que militam com a gente e ficam com medo da perda do vínculo. O Cismepar, que praticamente gerencia o CAPS em Londrina, já manifestou que não tem interesse em continuar com a terceirização e está demitindo aos poucos os trabalhadores. O CAPS Infantil, por exemplo, está trabalhando no limite. Eles estão sucateando e deixando os CAPSs como ambulatórios. A proposta de trazer oficinas terapêuticas e de arte e expressão corporal foi abandonada para virar tudo ambulatório.”

“A gente já acionou o Conselho Municipal de Saúde, sem resposta. A gente já provocou o Ministério Público e até agora nada. A gente apresentou os nomes das pessoas que foram demitidas e mesmo assim foi considerada pouca prova. A gente não sabe mais o que fazer”, lamenta a mulher, citando que a mãe dela decidiu acionar o Ministério Público após perceber a sobrecarga dos trabalhadores sempre que leva o marido para o tratamento no CAPS III.

“Ele não aceita grupo terapêutico e, quando vai na consulta, não é atendido por psiquiatra porque não tem psiquiatra no CAPS III. Estão muito a desejar as opções terapêuticas, mais ainda para usuários de grupos de expressão corporal e artes plásticas”, completa.

Usuária confirma sucateamento do serviço

Outra usuária que também pediu para não ser identificada mandou um depoimento em áudio confirmando o sucateamento do sistema: “No dia a dia, se um médico fica doente, as consultas são desmarcadas e não são remarcadas para a próxima semana ou assim que o profissional voltar. No atendimento, é apenas feita nova receita, ficando o usuário até seis meses ou mais sem atendimento com médico psiquiatra, a não ser que ele passe pelo plantão quando não estiver se sentindo bem”.

“Não existe uma rede de atendimento, somente CAPS e medicalização. Não tem psicólogo, não tem terapeutas, não existem mais os oficineiros, que faziam as oficinas de socialização, não tem atendimento primário nas UBSs, somente a aplicação de medicação de depósito. Não basta diagnosticar, é preciso tratar apoiar referenciar, incluir.”

“Os indivíduos com transtorno mental não são pessoas violentas. Se receberem o tratamento e acompanhamento correto, são capazes de viver produtivamente dentro das suas famílias, nas comunidades. A política pública de saúde em Londrina está gritando por socorro”, finaliza a usuária.

‘Muitos pacientes para poucos profissionais’

Uma paciente de 16 anos que trata de depressão e ansiedade uma vez por semana no CAPS Infantil precisa faltar nas aulas toda sexta-feira de manhã para poder participar do grupo de apoio, pois é o único horário disponível, já que ela não se adaptou ao grupo que se reúne no período da tarde.

“Percebo que há sim sobrecarga nos funcionários. Antes havia dois psiquiatras para atender no CAPS. Havia sobrecarga, mas nem tanto quanto hoje, que só tem um. Se eu precisar me consultar com a psiquiatra hoje, eu só conseguiria atendimento em julho do ano que vem, sendo que, antigamente, com um mês eu seria consultada.”

“São muitos pacientes para poucos profissionais, o que causa um grande incômodo para ambos. Ao paciente, por ter que esperar muito mais do que o horário combinado, e ao psicólogo, pois no momento em que ele termina um atendimento, já tem outro na porta esperando para entrar. Não há tempo nem de fazer um relatório sobre a consulta anterior. Isso, com o tempo, traz uma exaustão enorme no profissional, fazendo com que ele precise ser afastado por exaustão, sobrecarregando os outros funcionários ainda mais.”

Segundo a jovem, políticos têm usado o afastamento dos funcionários por exaustão como forma de convencer a população de que os trabalhadores do CAPS “não fazem nada”: “Nunca é possível ter atendimento e os profissionais vivem de ‘folga’, pedindo atestado, assim o CAPS é mais desvalorizado, causando muitas demissões, afinal de contas, para que ter funcionários folgados que vivem de atestado e não atendem ninguém? E assim começa um ciclo infinito de sobrecarga e exaustão”, alerta a paciente.

Funcionários atendem de 20 a 30 pessoas por dia

Conforme uma psicóloga do CAPS Infantil, os centros de atenção psicossocial de Londrina funcionam com mais da metade dos profissionais do Cismepar e uma boa parte já foi demitida “sem explicação nenhuma para os funcionários”.

“Temos ouvido que seremos demitidos pois o Cismepar está irregular por ter funcionários no CAPS. Esses fatos só nos são repassados informalmente, até porque o RH do Cismepar não nos recebeu quando fomos tentar nos informar sobre o que está acontecendo e se seremos mesmo demitidos.”

Ela confirma que a situação dos CAPSs está “terrível”. “Muitos pacientes desassistidos, muitos que estão aguardando serem chamados para atendimento com psicólogo ou outro técnico da equipe que, pela situação que está hoje, é impossível serem atendidos. A gestão tem encoberto essas situações, encaminhando pacientes graves para ambulatórios e até para internação sem, muitas vezes, nem ter sido atendido”, comenta.

A psicóloga alerta que neste período de pandemia aumentaram os casos de tentativas de suicídio, automutilação e ansiedade. “Mas nem conseguimos quantificar de tanta demanda. Cada profissional atende, em média, de 20 a 30 pessoas por dia, em seis horas de trabalho, sendo que o que preconiza o Ministério da Saúde para atendimento em CAPS por profissional é menos da metade.”

“Trabalhamos com pessoas e, neste caso, pessoas com sofrimento emocional intenso, que já passaram por todo tipo de problemas emocionais, muitas estão excluídas há anos”, completa a funcionária, recordando que o abandono da saúde mental em Londrina tem sido percebido há anos.

‘As violações de direitos continuam’

Uma conselheira tutelar que encaminha pacientes aos serviços de saúde mental do município comentou que tem tido dificuldade em dar continuidade ao atendimento de crianças e adolescentes por conta do sucateamento do CAPS Infantil.

“Realmente o que está ocorrendo é um descaso com a população que necessita do acompanhamento na saúde mental, principalmente com relação a crianças e adolescentes, pois o CAPS Infantil está sem corpo técnico suficiente e contando apenas com um médico. Enquanto isso, as violações de direitos continuam ocorrendo.”

“As demandas são enormes e o serviço, com a estrutura atual, não dá conta. Embora os técnicos atendam as situações, esse atendimento não ocorre da maneira como deveria ser, pois é humanamente impossível, por se tratar apenas de um CAPS Infantil”, opina a conselheira, reforçando a falta das oficinas terapêuticas, que eram importantes nos tratamentos dos jovens em situação de vulnerabilidade.

‘Há a necessidade de um olhar mais cuidadoso com a saúde mental’

Uma estagiária que atuou na saúde mental municipal detalhou a falta de estrutura física para a realização dos atendimentos nas unidades. “Para começar, eu gostaria de falar sobre a questão do abandono do poder público com o CAPS Infantil, que está contando com uma estrutura precária, salas sem equipamentos, sem ventilador, sem material adequado, uma fila enorme de espera para atendimento porque não tem profissional.”

“Nesse calor de Londrina, onde faz 40 graus, os pacientes têm acolhida em uma sala sem ventilador? Desculpa, mas quem não chega com surto, acaba tendo um por causa do calor”, denuncia a profissional, destacando a escassez de recursos na unidade.

“O CAPS não é um serviço de porta-aberta, quando se atende e a pessoa vai embora. É um trabalho contínuo, em que há a necessidade de um olhar mais cuidadoso com a saúde mental. Porém, tem-se investido muito mais em uma atração de fim de ano, em um lago todo iluminado, luz para todo lado, mas a luz que precisamos para os casos de vulnerabilidade está apagada.”

“Casos que necessitam mais do que nunca de todos os olhares possível. Nunca teve um retrocesso tão grande. Os profissionais que estão ali para cuidar da saúde mental das pessoas estão ficando doentes pela sobrecarga do trabalho, estão servindo para tampar buracos, fazendo trabalho de três pessoas ao mesmo tempo. Se desdobram e se multiplicam para atender. As pessoas precisam entender as dificuldades e as dores desse momento”, opina a estagiária.

Enquanto atuou no serviço, ela percebeu uma piora na saúde mental da população, principalmente por conta da pandemia. “O CAPS está com uma grande demanda de pacientes que sofrem com vários tipos de transtornos e a falta de profissionais na unidade tem feito com que os profissionais que estão ali dentro fiquem desgastados, trabalham no automático, sem apoio, sem recurso, sem estrutura, mas com coragem e disposição para contribuir para a saúde mental dessas crianças e adolescentes.”

Ela ressalta o fato de ter apenas um psiquiatra para atender jovens de toda Londrina. “Temos grupos de pais, mães, responsáveis que estão em causa porque não tem profissional para mediar e ajudá-los a entender as situações dos filhos.”

Para ela, a desigualdade social contribui para a proliferação de hospitais psiquiátricos, “onde os pacientes são torturados, abusados e dopados”. “Esquecem que tudo poderia se resolver com um lugar para atendimento adequado, com profissionais qualificados e recursos de qualidade, sem precisar desse terror de internação em manicômios. Se os jovens não apostarem forte e persistirem em uma saúde de qualidade, não sobrarão para o futuro. Sobrará muito luto e muita dor.”

Prefeitura alega dificuldade em contratar psiquiatras

Londrina tem três centros de atenção psicossocial: CAPS III (adulto), o CAPS Álcool e Drogas e o CAPS Infantil. Os dois últimos funcionam de segunda a sexta-feira, das 8 às 18 horas, enquanto o CAPS III funciona 24 horas todos os dias da semana.

À Rede Lume, a Secretaria Municipal de Saúde informou, em outubro, que todos os serviços contam com equipe multiprofissional formada por médico psiquiatra, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, educador físico para os CAPS AD e infantil, pedagoga e fonoaudióloga para o CAPS infantil, clínico geral, enfermeira e técnico e auxiliares de enfermagem. Hoje, a maior dificuldade da Prefeitura está na contratação de médicos psiquiatras.

Ainda segundo informações da secretaria, os serviços foram mantidos durante a pandemia, porém houve redução nos atendimentos em grupo e ampliação dos atendimentos individuais.

Aos poucos, os CAPSs têm retomado os grupos terapêuticos, com número reduzido de usuários, mas todos em atendimento presencial. A Saúde informou que não percebeu um aumento na procura do serviço nos CAPSs na pandemia, mas, sim, um agravamento dos casos.

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