Quem já me acompanha nas redes sociais ou aqui na coluna sabe que eu vivo a trajetória de “tornar-me” negra, ou seja, de assumir minha negritude como um ato político. E quanto mais negra eu me torno, me assumo, me expresso, mais a minha existência é cerceada e mais racismo eu sofro.
Na constante busca por ser tratada como a humana que sou, venho aprofundando meu letramento racial. Ao estudar as opressões que me atingem enquanto mulher e negra percebo várias opressões que atingem grupos minoritários. Enumerar as violências que vivenciamos enquanto minorias renderia páginas. Educar maiorias não é minha função, nem a função de nenhum grupo oprimido, mas acho que vale aqui um convite à reflexão. Suas falas são racistas?
A língua e a linguagem são os principais elementos articuladores de violências. E, atendo-me aqui exclusivamente à questão de raça, vejo como as falas, até mesmo de pessoas supostamente aliadas do movimento antirracista são carregadas de racismo.
Ao criticar um ato de violência relacionado à raça, não raro, percebo que as pessoas repetem os termos violentos para criticá-los. Um paradoxo? Uma antítese? Metalinguagem? Sem falso intelectualismo, confesso que não sei qual termo usar para definir o que ocorre neste caso, mas sei, com muita certeza, que se cria aí uma dupla violência àquele que foi oprimido.
Cito um exemplo hipotético. Imagine a situação de uma mulher que tenha sido sexualmente violentada e que teve o vídeo e fotos da violência expostos nas redes sociais. Se para criticar essa violência uma pessoa compartilha o vídeo e as fotos, há nisso uma contribuição ou uma nova agressão? Compartilhar as imagens para criticá-las não seria reforçar, reafirmar e causar uma nova experiência traumática à vítima, além de, óbvio, ser um crime?
Não é difícil entender quão agressivo e cruel seria reproduzir essa violência. Mas quando se trata de situações relacionadas à raça há uma subestimação desse crime, como se não fosse “tão grave assim”. Há uma desumanização da vítima, uma banalização do sofrimento que o racismo provoca não só no indivíduo a quem a violência foi direcionada, mas a todo um grupo.
O racismo se manifesta por meio do discurso, numa rede de palavras e imagens que, por associação, se tornam equivalentes. Pense na situação de um jogador de futebol que tem sua imagem associada à de um animal. Ora, se ao reproduzir a informação de que ele foi chamado pelo nome do animal a pessoa usa a mesma palavra, ou termo que foi direcionado ao jogador como ofensa, não se está cometendo a mesma violência novamente? O mesmo crime novamente? Assim como no primeiro exemplo que apresentei, não está a vítima sendo obrigada a vivenciar, repetidas vezes, aquela violência traumática?
Nos casos de racismo, o sofrimento é ignorado, subestimado, ele é cruelmente naturalizado e mais do que isso, ele é socialmente banalizado. Então reproduz-se termos racistas em posts, manchetes, entrevistas, rodas de conversas. Há uma perversidade tão absurda nas dinâmicas do racismo, que as pessoas reproduzem tais violências com a convicta certeza de que estão atuando como aliadas na luta antirracista.
Com a naturalidade de quem não tem sua humanidade agredida no nível que nós pessoas negras temos e com o egoísmo de quem mede o mundo por sua própria régua, os não-negros muitas vezes atuam como se soubessem mais do que nós o que é ser um corpo negro em uma sociedade racista, aquilo que sentimos, nossas dores, nossas vivências e, com isso, uma outra dinâmica perversa do racismo se manifesta: o silenciamento, o apagamento e a invalidação da nossa voz e da nossa dor.
O racismo se manifesta por meio de cadeias de fatos, imagens e palavras e assim ele se reproduz e se propaga. E às vítimas resta o confinamento de sofrer, repetidas vezes, a intensidade de uma violência a qual não se pode processar e que reverbera em looping.
É preciso amadurecer o senso crítico com relação à fala. É preciso assumir a responsabilidade com aquilo que se diz e é preciso também assumir uma postura ativa no compromisso com uma sociedade mais justa.
Da minha parte, ouso torna-me negra e ouso sonhar com o dia em que nós negros possamos não apenas sobreviver, mas viver sem termos nossa humanidade constantemente aviltada, diminuída e violentada com atos, palavras e discursos.
* Ana Maria Alcantara é mulher preta, mãe, jornalista e feminista negra. Ligada no rolê de skincare nas horas vagas.
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