Quando a literatura era oral não a enxergávamos. Sempre lá, na poesia dos rituais, na prosa das lendas e mitos, nas vibrações da natureza. Foi no tempo dos índios, conceito de povos dominados. Hoje, nomes como Ailton Krenak e Davi Kopenawa são publicados pela editora mais badalada do Brasil, a Companhia das Letras, e um certo Daniel Munduruku, pós-doutor em literatura com mais de 50 livros, acumula prêmios de literatura infanto-juvenil.

Em vez de dizermos que eles conquistaram espaços, diremos que estão onde sempre deveriam estar: em todos os lugares onde queiram. Assim, estão na literatura. Um dos maiores fomentadores de publicações para crianças no país, no ano passado, só aceitou inscrições de autores indígenas para a compra de milhões de exemplares.

Gosto muito do Munduruku, e dele tenho a honra do texto da contracapa do meu infantil “As árvores invisíveis” (Páginas Editora – 2019). Deparei-me com sua visão ampliada de mundo. Criei a história do Sebastião – um menino preto e feliz mas que vê criaturas estranhas pela cidade sem as identificar –, para que as crianças se atentassem às árvores da cidade e por ela criassem uma relação de afeto. Veio o autor e enunciou: muitas vezes não enxergamos o que está ao redor. Então era também isso? Sim, celebrei o brinde de sua riqueza perceptiva.

Dos absurdos de nossa história: até a Constituição Federal de 1989 se o sujeito indígena se alfabetizasse e publicasse um livro perdia sua identidade e era apenas um “cidadão brasileiro”. Desde os anos 90, são os próprios autores indígenas os protagonistas, e há editoras, e há livrarias, como a Maracá, e há perfis no Instagram (vide @leiamulheresindígenas) especializadas.

Este novo lugar para “tornar visível a história e as identidades indígenas” apontado pela socióloga Maori, a Linda Thiwai Smith, tenta deixar para trás a tradição colonialista. Afinal, num país com 305 etnias falando 274 línguas diferentes, o lugar da escrita é deles, como é do pensador Krenak, com seus Ideias para adiar o fim do mundo e O amanhã não está à venda, um dos autores que mais vendem no país.

Em fevereiro lancei pela Páginas Editora o título para crianças “Tucumã”, da indígena Lucia Morais Tucuju, mulher de trabalhos incansáveis na periferia do Rio de Janeiro de difusão da leitura e da escrita para além das causas do seu povo. No ano passado publicamos, “O soldado errante”, de Mauro Brandão, não índio, e apresentado por Edson Kayapó, escritor de vários títulos e de destaque no cenário editorial. Prova de que o site Bibliografia das Publicações Indígenas do Brasil está desatualizado, pois o nome dele não consta.

Ali estão catalogados escritores dos povos Baniwa, Desana, Guarani (quem não conhece Kaká Werá?), Kambeba, Kaingang, Kariri Xocó, Krenak, Macuxi, Maraguá, Maxakali, Munduruku, Nambikwara, Pataxó, Payaya, Potiguara (destaque para Eliane), Puri (prestem atenção em Aline Rochedo Pachamama), Tabajara, Tariano, Terena (do grande líder Marcos), Tremembé, Tukano, Tupinambá, Tuyuka, Sateré-Mawé, Umutina, Wapichana. Deste último, o regozijo são os prêmios para A boca da noite (Jabuti, FNLIJ e o internacional Estrela de Prata do Peter Pan-Suécia) de Cristino Wapichana.

Na comemoração dos 100 anos da Semana de Arte Moderna não poderia deixar de lembrar a icônica obra “Macunaíma”, de Mário de Andrade, desconstrutora da imagem pejorativa. O deus dos povos Macuxi, Taurepang e Wapichana é apresentado como um “índio” preguiçoso e sem caráter, e o livro, levado ao teatro e ao cinema, escancara o ridículo dessa visão. Que sejam páginas viradas!

*Leida Reis é autora de oito livros publicados – dentre eles o romance “A invenção do crime” pela editora Record e “A casa dos poetas minerais” -, sendo três para crianças. Criadora do Clube do Livro Infantil Solidário (Clis) e da Mercearioteca (biblioteca comunitária em BH), fundadora da Páginas Editora, com experiência em curadoria de eventos literários e jurada de prêmios. É também jornalista formada pela UFMG, com 27 anos de atuação.

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