Quando uma obra literária se torna fundamental? Quando ultrapassa as linguagens possíveis e vira um espetáculo de dança, por exemplo. Não um filme, não uma peça de teatro, traduções naturais da linguagem vertida no papel, mas a roupa e o movimento dos bailarinos. Assim é com Torto arado, romance acumulador de prêmios, que inspira Encantado, da diretora Lia Rodrigues, espetáculo em cartaz em São Paulo, cuja estreia se deu em Paris. Os corpos surgem de coloridos cobertores, embolados como jiboias para no final retornarem a um coletivo.
Quando uma obra traduz o social? Os cobertores a vestir Encantado foram comprados em Madureira, no Rio, como esses que aquecem, ou tencionam aquecer, moradores de rua. Foram eles, aliás, a inspiração de Lia para a peça. Pessoas se escondem no colorido dos cobertores e suas histórias são como as de Belonísia e Bibiana, mulheres-narrativas em busca de sentido. E o nome da peça se justifica porque é pelos encantados que se conta a terceira parte do livro de Itamar Vieira Júnior.
Num encantar e esperançar – o verbo criado por Paulo Freire – romances nos dão o lugar de memórias de onde tirar nosso sustento emocional. Mais do que experiências pessoais, pela literatura revisitamos o cordão umbilical com o social. Foi assim com Vidas Secas, de Graciliano Ramos, filmado por Nelson Pereira dos Santos em 1963, onde o lirismo permitiu a crueza para que o leitor não se engane nunca (afinal o livro é um clássico) sobre o que é ser um retirante, um imigrante sem dólares, um potencial náufrago.
Foi assim com Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, que volta ao cinema em breve com direção de Guel Arraes, em parceria com Jorge Furtado, transposto para o ambiente de uma favela e que vai mirar o ponto de vista do bandido. Se os jagunços têm suas razões para as matanças, veremos a interpretação do clássico na condição dos traficantes de drogas.
A obra de Rosa exige. Para quem preferir fazer a travessia com mais ciência, a Páginas Editora publicou “Para ler Grande Sertão: Veredas”, um guia construído pelo professor Luiz Carlos de Assis Rocha, que durante mais de dez anos de apaixonado estudo, desvendou palavras e expressões de um médico que escreveu uma das mais expressivas obras literárias do Brasil. Por ele o sertanejo mineiro (brasileiro) se faz presente em nós. E vem aí um livro de haicais com a mesma narrativa.
Se é a literatura a tradução do social, é do real. Então, concluiremos com poesia. Escreveu o mineiro Alphonsus de Guimaraens Filho, em O poeta e o poema: “nenhum poema se faz de matéria abstrata/é a carne, e seus suplícios, ternuras, alegrias/é a carne, é o que ilumina a carne/a essência, o luminoso e o opaco do poema”.
*Leida Reis é autora de oito livros publicados – dentre eles o romance “A invenção do crime” pela editora Record e “A casa dos poetas minerais” -, sendo três para crianças. Criadora do Clube do Livro Infantil Solidário (Clis) e da Mercearioteca (biblioteca comunitária em BH), fundadora da Páginas Editora, com experiência em curadoria de eventos literários e jurada de prêmios. É também jornalista formada pela UFMG, com 27 anos de atuação.
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