Marli Piraí foi morta a pedradas pelo companheiro, também indígena, em abril de 2019
Cecília França
Foto em destaque: Marli Piraí/Divulgação
Vai a júri popular nesta quarta-feira (20), em Londrina, Ailton Jacinto Camargo, acusado pelo feminicídio de sua companheira Marli Piraí, que tinha 21 anos na época do crime. Marli, uma mulher indígena da etnia Kaingang, foi atacada por Ailton, indígena da etnia Guarani, a pedradas. O crime ocorreu na madrugada de 20 de abril de 2019 na Reserva Indígena Apucaraninha, em Tamarana. O julgamento tem início às 9h no Fórum da Comarca de Londrina.
Néias-Observatório de Feminicídios Londrina analisa o caso em seu Informe n.11 e traz detalhes do processo e do relacionamento do casal, marcado por idas e vindas e um ciúme exacerbado do acusado em relação à companheira. A denúncia do Ministério Público informa que Ailton desferiu múltiplos golpes na cabeça de Marli, desfigurando seu rosto, atingindo a massa encefálica e deixando-a em coma. Como consequência, Marli ficou internada e morreu no dia 5 de maio de 2019. O réu é acusado pelo crime de feminicídio por motivo torpe e meio cruel.
Segundo informações trazidas pelo Observatório a partir da análise do processo, Marli e Ailton se conheceram ainda adolescentes e conviveram por quatro anos. A cunhada, a irmã e a mãe da vítima foram categóricas, em toda a instrução do processo, em afirmar que Ailton nutria um sentimento exacerbado de ciúme. Informaram também que Marli já havia tentado se separar por mais de uma vez, mas ele não aceitava o término do relacionamento. A mãe de Marli relatou ainda que já havia presenciado agressões contra sua filha e que, por ciúmes, Ailton não a deixava conversar sequer com os irmãos.
Embora o réu, que se encontra preso, tenha confessado a agressão a Marli, negou a intenção de matá-la, em que pese a crueldade com a qual provocou ferimentos na cabeça dela, motivado por uma suposta traição que teria presenciado em uma festa na reserva indígena. Em juízo, contudo, ele disse que perdeu a cabeça com as agressões da vítima, tapas e arranhões, mas não se lembra da agressão em si.
Defesa alega questões étnicas para atenuar o crime
Por envolver povos indígenas, a defesa alega que deveria ter sido produzido laudo antropológico do caso, para que assim fossem comprovadas as sanções já aplicadas pela aldeia indígena à qual o réu pertence, e, consequentemente, a não condenação do acusado pelos crimes do Código Penal nacional. Entre as sanções alegadas, estão a expulsão definitiva das comunidades em que residia e proibição de realização de comércio e participação de atos culturais, eventos e reuniões fora da aldeia.
A Funai (Fundação Nacional do Índio) também se habilitou no processo e acompanhou toda a instrução. Após a sentença de pronúncia, interpôs recurso alegando que apesar do acusado não ter sido submetido a exame pericial antropológico para constatação de sua baixa capacidade cognitiva e reconhecimento da inimputabilidade penal ou capacidade penal reduzida, a mesma teria sido comprovada nos autos.
Dessa forma, requereu que fosse acolhida a versão apresentada pelo réu de legítima defesa, decretando-se a sua absolvição sumária e em caso de possível condenação que a pena fosse atenuada, de acordo com o que prevê o Estatuto do Índio. Solicitou também a desclassificação do crime de feminicídio para o de lesão corporal ou homicídio simples.
‘A mulher indígena está sobrevivendo por si só’
Amaue Jacintho, ativista dos direitos das mulheres indígenas, acompanha o caso de Marli e acredita que a condução por parte das lideranças foi diferente do que ocorre na maioria dos crimes de violência contra as mulheres.
“Nesse caso específico acho que a liderança de lá fez o certo, colocou para ser resolvido fora, tanto que vai ter um julgamento, ele está preso desde que aconteceu o crime. Acho que é um dos poucos que fez o caminho que deve ser feito”, avalia. Segundo Amaue, mulheres indígenas têm muita dificuldade de acesso às leis de proteção, como a Maria da Penha, e acabam presas em relacionamentos abusivos.
“O que acontece é que em território indígena é muito dificil o acesso à Lei Maria da Penha e quando a gente recorre, geralmente, fica tudo nas costas da mulher. Elas passam a ser vistas difrentes dentro da comunidade, porque eles alegam que tem que ser resolvido esses casos dentro do território, entre cacique e lideranças. Mas a maioria tem essa influência machista externa não indígena, então, geralmente eles não fazem nada. A mulher passa a vida inteira sofrendo”, conta.
“A mulher indígena está sobrevivendo por si só, porque ela não tem proteção, nem da liderança indígena e nem externamente, porque elas não conseguem acessar a Lei Maria da Penha. É muito difícil, elas sofrem toda essa violência, e está sendo totalmente negligenciada. É como se não tivesse importância a dor das mulheres indígenas”, lamenta.
Para a ativista é necessário a união entre lideranças e poder público para um trabalho de prevenção realmente eficaz. “Se houvesse um trabalho de prevenção, juntamente com o Estado, de violência contra a mulher, educar novamente os homens indígenas, de que existe esse machismo e que eles estão reproduzindo, seria muito mais fácil, seria evitado esse tipo de violência, esse tipo de crime”, acredita.
Néias evidencia violência generalizada contra mulheres
No Informe 11, Néias reforçam que a análise do caso evidencia o quanto a violência contra as mulheres é generalizada e se encontra presente em diferentes culturas, povos e sociedades, exigindo, assim, do Estado nacional, respostas condizentes com os desafios da interculturalidade.
“Em que pese as culturas indígenas terem suas próprias regras e costumes, por vezes diversas do Estado nacional, Néias defendem os direitos humanos de todas as mulheres e meninas. Marli sofreu várias agressões físicas, todas as mulheres a sua volta sabiam do ciúme exacerbado de seu companheiro, mas mesmo assim nunca houve a comunicação dessas violências para as autoridades policiais”, diz o Informe do observatório.
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