Ultimamente estamos um pouco afastados desta coluna, devido ao nascimento, já há dez meses, de nossa filha. Infelizmente, a vida real não é igual à vida do Instagram, nem sempre conseguimos trabalhar, cuidar dos filhos, fazer exercício físico, nos alimentar adequadamente e, ainda, ler alguns bons livros, mas esse tema fica para uma próxima coluna. Hoje não temos como fugir, precisamos parar um pouco e escrever sobre ela, a graça concedida pelo presidente da república – sim, ambas com letras minúsculas – ao deputado – igualmente com letra minúscula – Daniel Silveira.

Tá, mas o que é isso, a graça?

Eu sei, eu sei, isso tem passado na TV, nos jornais e, provavelmente, até no Zap. Vocês já viraram experts em graça, ou indulto individual. Já sabem que é um benefício concedido pelo Presidente da República – agora sim com letras maiúsculas – a alguém e que tem como efeito impedir o cumprimento da pena principal – a privativa de liberdade. É uma prerrogativa do Chefe de Estado, aquele que representa o poder estatal.

O que queremos trazer aqui, para entendermos um pouco mais sobre isso, são dois pontos, que a nosso ver são muito importantes: o primeiro é sua origem, porque existe a graça e de onde veio; e o segundo é, desde sua origem até hoje, este Instituto permanece igual ou se alterou ao longo do tempo. Vocês verão que respondendo essas duas questões, não restará dúvida sobre a ilegalidade deste episódio trágico.

Pois bem, a graça não é atual, pelo contrário, é algo muito antigo, remete ao período da Idade Média e era um poder de clemência, um perdão concedido pelo Rei àquelas pessoas que, em tese, não mereciam a pena, fosse pelo clamor do povo ou da igreja. No final das contas, claro, tratava-se de ato pessoal do Rei, que era alçado à figura divina, sua palavra era lei na terra e nos céus e, portanto, seu perdão era sempre o certo.

E aqui temos o primeiro elemento que nos levará à resposta de nosso questionamento – a legalidade do indulto individual ao deputado bolsonarista – era um perdão concedido a quem merecia clemência.

Com o passar do tempo, no entanto, a graça se adequou às mudanças de Estado e foi introduzida na legislação moderna. Nos Estados Unidos, por exemplo, concede-se graça com frequência, ficando conhecidos os casos de perdão da pena de morte – entendem? Mesmo condenado, talvez aquele sujeito não mereça morrer. Mas mais importante, com a constituição do Estado Moderno e, principalmente, do Estado de Direito, não existe mais vontade real, o Estado é regido pela Constituição Federal, nossa Carta Magna, aquela que é a origem de todas as leis e princípios. Por isso, todo ato que represente o poder ou a vontade do Estado deve, sempre, seguir a Constituição – e, portanto, as normas e princípios que dela emanam.

Inclusive um ato privativo do Presidente da República.

Mas vocês podem, então, dizer que viram em algum jornal que a Graça é um ato “discricionário” do Presidente, que no dicionário consta como ato “livre de condições”. Ora, ora, então o Presidente pode conceder graça a quem quiser, não pode?

Bom, aí que o Direito fica difícil, e talvez por isso sua banalização pelas mídias – a estilo comentários de Camarotti e Cia na Globo News – tenha colaborado para nos levar muito próximos da ruína. No mundo jurídico, discricionário não é o mesmo que arbitrário. Pois mesmo livre, o ato discricionário está, de certa forma, preso ao interesse público, que, como dito, é a concretização das normas e princípios da Constituição. Se o ato, mesmo que privativo e discricionário, é dado com outro interesse, aí ele pode – e deve – ser analisado pelo judiciário, que é o guardião das leis. E isso já foi dito pelo próprio STF, em julgamentos de nomeação de cargos de confiança, por exemplo, e, até mesmo, em julgamento de concessão de indulto coletivo.

A concessão da graça, então, apesar de pessoal – pois é concedida a alguém – não pode ser pessoal para o Chefe de Estado, não pode ser íntimo, se não cumprirá função de satisfação de vontade própria, como era na época dos reis. Mas não vivemos mais sob o manto da vontade real, vivemos? Nosso Chefe de Estado não é todo-poderoso; nem a representação de alguma divindade. É a satisfação da vontade da Constituição que o ato deve satisfazer – respeitando as normas e princípios nela contidos e que dela emanam, como, nesse caso, os princípios da impessoalidade, da moralidade etc.

E verdade seja dita, é muito difícil dizer que a concessão de um benefício tão impactante como a graça – que extingue o Poder Estatal de punir aquela pessoa por um crime pelo qual foi julgado e condenado – seja convergente com o interesse social e constitucional, não à toa a última vez que foi concedida foi em 1945, portanto, sob a autoritária constituição vargista de 1937, ou seja, esse benefício nunca foi usado em tempos democráticos nessas terras de Pindorama.

A concessão da graça ao deputado Silveira, numa palavra final, é ilegal; um desvirtuamento da Lei e da Constituição; uma verdadeira desgraça à República – que cada dia que passa deixa de ter o R maiúsculo.

O juízo da execução penal, o STF, alguém vai julgar isso como deve e anular essa teratologia jurídica? A vermos.

Enquanto isso, a concessão da graça pelo genocida, que não teve qualquer graça, cumpre um papel simbólico na nossa tão desgraçada Democracia, afinal de contas Lula poderia ter concedido graça a seu amigo Zé Dirceu, não poderia? Aí é que vemos quem respeita as Instituições e quem quer usá-las para ter Poder.

Que não deixemos a desgraça tomar-nos a existência democrática.

*Paula Vicente e Rafael Colli são advogados especializados em causas de Direitos Humanos, minorias políticas e Direito Penal em Londrina

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