Londrina, 27 de setembro de 2021.
Cara pessoa a quem eu possa ter oprimido com minha fala ou não fala,
Escrevo-te esta carta com todo carinho e compreensão. Escrevo-te não no intuito de me desculpar, até porque este sentimento de “culpa” me parece carregar algo obscuro que acaba por escamotear as minhas ações e não ações, sem que de fato eu me comprometa com algum tipo de mudança. Assim, escrevo-te no intuito de dialogar.
Enquanto escrevo, te imagino. Mulher negra, retinta ou não, mulher transsexual, travesti e pessoa travestigênere, mulher favelada, indígena, quilombola, campesina ou ribeirinha; pessoas em situação de rua, em cárcere, crianças, idosas, com ou sem descapacidade. Mulheres de culturas e espiritualidades das quais me fogem a compreensão ou reconhecimento. Sei que não fomos ensinadas a nos ver, nos abraçar e nos termos enquanto amigas e aliadas. Mas te imagino travando lutas diárias das quais minha vivência (cis e branca, ainda que periférica) também não toca em sua completude. E hoje, conscientemente e afetuosamente, te abraço no intuito de estarmos lado a lado, também nos frontes que não compartilhamos.
Certo dia uma amiga me falou: “calma, você não está deixando outras pessoas se manifestarem”, e retrocedi. Não como quem foge da causa, mas como quem reconhece (ainda sem entender muito bem) a necessidade de silenciar. Desde então, passei a escutar, a ler e a compreender um pouco mais quais seriam os meus espaços de fala e de escuta. E… Nesse movimento, faz tempo, muito tempo que não tenho me direcionado a ti, pois os campos de incompreensão deste “além de nós” têm me parecido ser tão amplos e devastadores, que têm sido a eles e elas a quem me direciono com mais frequência, buscando abrir mais caminhos para nós.
Desta forma, gostaria que entendesse o meu desejo e felicidade em me aproximar de ti, e a dificuldade que existe em mim de não te sufocar, de não tirar teu chão e lugar. Pois sei que neste espaço que existe entre nossos corpos e vivências, existem abismos e frestas que tanto podem construir vulcões — que confluem mundos e desejos de mudança —, quanto bombas de autodestruição, que não são construtivas para ambas. Mesmo assim, na proximidade e na distância, sei que seguimos armadas, amadas por nossa parentalidade revolucionária. Não como heroínas, mas como sobreviventes de uma luta que é anterior e posterior às nossas existências.
Desejo assim que nos saibamos fortes e potentes, mesmo na distância. E, ainda assim, acolho o desejo de nossa amizade-vulcão, para que juntas possamos tecer outros mundos. Porque este, em que seguimos sobrevivendo, já não nos basta.
E… Quando fortalecidas, espero que possamos nos olhar frente a frente, de cabeça erguida, confrontando o que ainda nos desune e celebrando as nossas existências.
Assinado: Amanda Ferreira Marcondes
(Carta escrita durante Laboratório de práticas performativas: estratégias para guerrilhas artísticas, ministrado pela artista e pesquisadora anticolonial Idylla Silmarovi e pelo artista e educador Lucas Fabrício, junto ao CEFART – O Centro de Formação Artística e Tecnológica de Belo Horizonte em 2021.)
*Entretons é um grupo de pesquisa e extensão de gênero, sexualidade, teoria queer, feminismos, decolonialidades, na perspectiva das interseccionalidades de etnia, raça, classe social, etarismo, entre outras. Formado por pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e outres colaboradores de diferentes territórios de pesquisa e extensão, o grupo objetiva produções e ações implicadas com a realidades sociais diversas e seus movimentos.
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