Projeto de lei, aprovado em Londrina, que proíbe o uso da linguagem neutra nas escolas é um instrumento de manutenção do ódio à diversidade sexual

Por Reinaldo C. Zanardi*

Charge: Laerte/Reprodução Instagram

“Dispõe sobre a expressa proibição a instituições de ensino e bancas examinadoras de seleções e concursos públicos, de uso de novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas.” Esta é a súmula do projeto de lei, aprovado recentemente em primeira discussão, pela Câmara de Vereadores de Londrina.

Em um trecho da justificativa da proposta, a autora afirma que a linguagem neutra “tem como objetivo principal provocar caos amplo e generalizado nos conceitos linguísticos para que, em se destruindo a língua, se destrua a memória e a capacidade crítica das pessoas”. Ainda na justificativa, a vereadora diz que “os defensores da ideologia de gênero querem anular diferenças biológicas entre homens e mulheres (…). Para isto, tentam infundir a ideia que o gênero é uma construção sociocultural, não simplesmente biológica.”

Se o gênero é simplesmente biológico e não uma construção sociocultural, como a vereadora Jessica Ramos Moreno, cujo nome termina no feminino A, prefere ser conhecida e difunde seu nome no gênero masculino ÃO? Uma mulher chamada pelo gênero masculino não é uma construção social e, neste caso, uma construção política? Além disso, o argumento – de defesa da língua portuguesa – é mero pano de fundo para a manutenção do preconceito contra a diversidade de gênero e sexual. Sim. Há homossexuais homofóbicos, negros racistas e mulheres misóginas. Mas isso é tema para outro artigo.

A língua é viva e se constrói no uso, ou seja, os sentidos são operados na linguagem de todo dia. Não falamos – nem escrevemos – como falávamos e escrevíamos no século XVIII ou no século XIX. Um adolescente não fala como um idoso e vice-versa no mesmo século e ano. Atacar a linguagem neutra pelo viés da defesa da gramática é opressor e limitante. Opressor, porque esconde o verdadeiro sentido da proposta: a manutenção da exclusão da diversidade de gênero e sexual. Limitante, porque a norma culta é apenas uma das tantas normas existentes.

Peguemos a norma popular que diz que nós vai, em vez de nós vamos; que prefere mais abobrinha do que cabotiá, em vez de preferir abobrinha a cabotiá; que diz que marcou de ir no cinema, em vez de ir ao cinema; que convida para jantar com nós, em vez de jantar conosco. Alguém ataca a norma popular com a mesma virulência que ataca a linguagem neutra? Não, mas o preconceito linguístico contra as formas populares existe e, também, acende velas para a Deusa da Gramática, mas até mesmo portadores de diploma de mestrado e doutorado não seguem suas prescrições integralmente. O preconceituoso é seletivo.

A linguagem neutra não tem chances reais de ser gramaticalizada em substituição às formas consolidadas, porque os mecanismos de funcionamento da linguagem não operam por vontade do falante. Mesmo que seja, dificilmente será empregada massivamente, porque as estruturas da língua são fortes demais para permitir mudanças tão radicais. Como esperar que alguém fale que “e queije esté em cime de mese”? Toda mudança linguística significativa leva décadas ou séculos para ser incorporada e ocorre segundo regras semânticas, lexicais e fonéticas específicas.

O ensino da língua portuguesa não corre riscos com o pronome neutro, mesmo que professores de gramática – que não usam 100% do que dizem ensinar – digam o contrário. A rede de ensino – pública e privada – faria um bem danado ao ensino da língua se desenvolvessem competências linguísticas a partir normas linguísticas existentes, em vez de propagar formas cada vez mais arcaicas, como flexão de verbos e usos de pronomes que ninguém mais usa. Portanto, o problema a ser combatido não é o pronome neutro, mas a intolerância e o ódio, disfarçados na defesa da língua portuguesa.

Uma sociedade inclusiva que respeite a diversidade incorpora elementos não dicionarizados em sua fala ou escrita. Um “bom dia a todos, todas e todes” não tem poder de mudar a gramática, mas tem poder de respeitar quem se identifica com qualquer uma dessas formas. O não padrão da língua bem que poderia ser um padrão de respeito e empatia para com o outro. O que falta para isso acontecer?

*Reinaldo Zanardi é jornalista, licenciado em Língua Portuguesa e doutor em Estudos da Linguagem. Professor do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

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