Franciele Rodrigues, Gustavo Batista e Leiliani Peschiera
O teatro e a política grega convergem em um aspecto comum: sua gênese machista; no sentido de que as mulheres não participavam nem das decisões da pólis, nem das produções culturais e artísticas. Por outro lado, devido à participação exclusiva dos homens, principalmente no teatro, surge um enfrentamento aos modelos de masculinidades existentes. Explicamos: as mulheres eram proibidas de encenar, mas isso não quer dizer que deixavam de ser representadas. Os atores transformavam-se em mulheres e, logo na antiguidade, havia demonstrações artísticas de fluidez entre o binarismo “homem x mulher”.
O mesmo acontece no tradicional kabuki, uma das vertentes do teatro japonês. Reconhecido pelas maquiagens e coreografias, não permitia mulheres no elenco, as quais eram representadas pelos trajes, gestuais e outros elementos. Ou seja: a pessoa que se transforma e caminha entre os gêneros em seus estereótipos, formas físicas e modos de falar; se faz presente na arte, há mais de três mil anos – isso apenas nos registros dos quais temos conhecimento. Na vertente drag, é usual a referência à Shakespeare que, em seus roteiros, supostamente teria escrito “drag” como uma abreviação de “Dressed as girl”. Em tradução livre, “vestido como garota”. Seria um indicativo aos atores sobre a caracterização, tendo Julieta, Ofélia e Helena sido todas trazidas dos roteiros à vida por homens.
No nosso quintal
Diferentes formas de expressão ganharam os palcos ao longo da história. Com o passar dos anos, este movimento de atores que representam mulheres ficou conhecido como “transformismo”. A expressão artística não denota, necessariamente, a identidade de gênero com a qual se identifica o artista, que pode assumir ou não a persona artística. Trazendo para os dias de hoje, seria tal qual o trabalho da drag queen Pablo Vittar. Fato é que, no Brasil, apesar de quinhentos anos de catequese, as noites sempre foram dos subalternos, dos que resistem. Daniela Vieira, professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL), pesquisa as relações entre música popular urbana, indústria cultural, racismo e modernidade.
Ela adverte que, ao falarmos de expressões artísticas subalternizadas, é preciso considerarmos quais sujeitas e sujeitos as produzem: “As pessoas trans, assim como negros, mulheres, gays, indígenas são grupos subalternizados, contudo, a criação pode adquirir outro status”. Para Vieira, a arte pode tanto ser considerada uma forma de resistência quanto utilizada para conformação da ordem social estabelecida. Também pode provocar sentimentos diversos como a desnaturalização de preconceitos, mas também o avivamento deles. Em 2016, por exemplo, o deputado federal Filipe Barros (PSL) publicou diversas mensagens em suas redes sociais, criticando a apresentação da peça de teatro “Quando Quebra Queima” no Colégio Estadual Hugo Simas, localizado no centro de Londrina. O encontro integrou a programação do Festival Internacional de Londrina (FILO) naquele ano.
A “dança-luta” reúne, entre outras formas de expressão, músicas, poemas e gritos de ordem. A criação de estudantes secundaristas, que vivenciaram a ocupação das escolas contra a reforma do ensino médio, aborda a importância das discussões sobre as diversidades na educação. Mas, segundo as postagens de Barros, a peça promovia “doutrinação política” e “denigre a polícia”. O parlamentar repudiou também o que nomeou de “beijaço gay” durante a exibição. Ampliando o coro do deputado federal, pais e demais responsáveis de estudantes também utilizaram as redes sociais contrariando a intervenção artística, em prol da “família”. E foram além: organizaram um ato na frente do Colégio.
Além desse caso, a professora Daniela Vieira lembra de outros exemplos, como a censura à peça “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, protagonizada por uma mulher trans em Jundiaí, no interior de São Paulo, em 2017. Para ela, a chegada de Bolsonaro (PL) à presidência da República e suas ofensivas às artes têm empoderado grupos para que não haja mais: “pudor em generalizar a desumanidade. Há apoio federal para tanto”.
Já em Pernambuco, foi icônica a apresentação de artistas que interpretaram divas brasileiras, como Gal Costa e Maria Bethânia – em pleno período de repressão. A arte e o entretenimento sempre criaram possibilidades de existência. Porém, se o transformismo, enquanto expressão artística, já incomoda alguns setores da sociedade, a arte quando produzida, pensada e feita por corpos trans, segue relegada às margens. Em primeiro lugar, sendo atrelada à dor: temáticas como a da não aceitação dos familiares, dos assassinatos, miséria, fome e fobias perpassam o que se espera das canções, peças e outras expressões artísticas possíveis.
Sentir na pele a hostilidade de um país colonial, racista e homofóbico não implica que a arte seja apenas sobre isso, afinal, nem só das tragédias se forjam os artistas. Nesse sentido, a arte deve ser encarada como profissão, caminho a ser trilhado. A produção cultural e artística, apesar de atrelada à vivência de quem a produz, especialmente os subalternizados, nada tem a ver com narrativas de dor. E por isso são importantes as políticas públicas, para que corpos diversos ofereçam histórias diversas, sentimentos, questionamentos e, enfim, reconsiderações sobre esta cultura arcaica.
Artivismo
Os calçadões, esquinas, ruas, guetos e alamedas formam o território de trabalho adotado pelas travestis. Para muitas, a prostituição é a alternativa restante em meio a negativas de empregadores e barreiras de acesso à qualificação. As ditas “famílias de bem” toleram tal profissão, desde que ela seja exercida no intervalo de tempo em que o sol se recolhe para transferir protagonismo à lua. No entanto, em Londrina, assim como em todo o Brasil, as damas da noite seguem ressignificando o uso do espaço público com o fazer artístico. Nomes marcantes do ativismo transexual em Londrina, como Scarlett O’Hara Costa e Melissa Campus, reivindicaram pioneirismo no teatro. As aparições no palco não atendiam aos meros anseios do público inquieto por entretenimento, mas eram aproveitadas enquanto instrumento político útil ao ativismo.
As personalidades mencionadas acima desbravaram caminhos pouco abertos para que a Frente Trans de Londrina pudesse trilhá-los. Reivindicando políticas caras à população transexual aos governantes e legisladores municipais ou problematizando a escassez delas, o coletivo já conservou, ao longo de seu ano de atuação, uma estrita relação com o fazer artístico, mais especificamente o fazer que transborda para além das paredes que cercam as casas de cultura.
A arte, penetrada em suas tantas facetas de linguagem e gênero, é componente intrínseco da vida de grande parte dos integrantes. É o caso do DJ e produtor cultural Oliver Letícia de Oliveira, que é o secretário do coletivo. Homem transexual, ele conta que as inúmeras atividades culturais em que está envolvido traçam significados à sua existência: “Eu me considero uma pessoa arteira porque eu vivo respirando arte. Eu faço arte. Eu faço audiovisual. Eu faço música. Eu desenho. Eu faço arte designer. Eu faço lambe. Eu picho. Faço de tudo que eu precise e veja que é necessário para que eu possa respirar, para que eu possa me expressar e para que eu possa descarregar. É extremamente importante me dedicar a essas pautas, a esses lugares. É trazer a narrativa da minha vivência, que nem sempre é só de dor ou sobre amor”.
A rua é para quem?
“A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte”, expressavam os versos da faixa “Comida”, célebre pela versão dos Titãs. A Frente Trans de Londrina, assim como a banda brasileira, compartilha do entendimento da cultura enquanto um direito básico e geral. De acordo com Oliveira, os eventos promovidos pelo grupo são, prioritariamente, abertos ao público. Ocorreu desse modo com a “Mostra de Arte Trava”, que fez da Concha Acústica de Londrina uma tela de projeção para peças audiovisuais dirigidas por pessoas transexuais brasileiras. O dia 30 de janeiro foi escolhido para a exposição, já que ele antecede o Dia da Visibilidade Trans.
A iniciativa atraiu os olhares da população trans em situação de rua. Oliveira, revelando ter se afetado com duas mulheres transexuais que vibravam a cada cena em que se identificaram, comenta a potência da situação: “Imagina o poder desse momento, de você estar naquela situação de rua seja lá por qual motivo e ver uma pessoa que é seu igual em uma tela grande e enorme”.
Mas para intermediar esse processo de inspiração e identificação, a organização do evento teve de lidar com contratempos. O desejo inicial, segundo Oliver de Oliveira, era transmitir curtas-metragens ao longo de dias. No entanto, em contato com a Companhia Municipal de Trânsito e Urbanização (CMTU), órgão da administração indireta do Poder Executivo de Londrina, o coletivo foi informado de que, para a liberação da sede do evento, haveria uma taxa calculada pelo metro quadrado do espaço, alega o DJ. Já que o valor não coube no orçamento, a agenda foi realocada para uma única data. O evento poderia ocorrer como um ato durante aquelas horas.
Além disso, relata ele, a equipe da Companhia não compareceu para ativar a energia elétrica do local, o que não estava nos planos da organização. O imprevisto, no entanto, não impediu que as produções chegassem aos olhos dos espectadores. “Correu tudo muito bem. Deu uma atrasada. A gente passou um nervoso pela situação da energia elétrica. Mas, no final, aconteceu e foi maravilhoso, foi incrível”, diz Oliveira, manifestando o desejo em poder contar com o maior apoio da CMTU e da Prefeitura em eventuais próximas edições.
Procurada pela reportagem, a CMTU, por meio de sua assessoria, informou que “a cobrança pela utilização de espaços públicos, como a Concha Acústica, ocorre de acordo com o Código Tributário do município”. O órgão ainda alega que “a isenção das taxas de uso e ocupação de solo está prevista em casos de entidades sem fins lucrativos, com CNPJ em atividade. Essa não foi a situação do coletivo Frente Trans de Londrina (que não tem estatuto social ou CNPJ), já que a solicitação do requerente se deu em nome de pessoa física. Na ocasião, o solicitante foi orientado por telefone sobre as disposições da legislação, mas não entrou novamente em contato com a companhia até a data do evento”. Sobre a falta da ativação de energia elétrica no local, relatada pela organização, a CMTU declarou que o ponto precisa ser requerido à Companhia Paranaense de Energia (COPEL).
Colorindo a vida
Outra ação da Frente Trans de Londrina, juntamente com a Rede LGBT Ubuntu, ganhou espaço no jornalismo regional e não passou despercebida pelos ferrenhos críticos. Na madrugada do dia 17 de maio de 2021, com a devida autorização da administração municipal, o já desgastado tom da faixa de pedestres presente no cruzamento entre a avenida Rio de Janeiro e a rua Benjamin Constant ganhou uma pintura com as cores das bandeiras do orgulho LGBTQIA+ e transexual. Naquela data, se comemorava o Dia Internacional de Combate à Homofobia, Bifobia e Transfobia. Em 2019, na Praça Rocha Pombo, situada nas proximidades do local escolhido para o ato, o corpo de Hannan Silva, jovem que aspirava o ofício de jornalista, foi encontrado. A tragédia também estimulou a organização a realizar o ato artístico.
Foi pelas mãos do artista visual Caio Souza que a intervenção denominada “A vida livremente te convida para passar” se desenhou. Ouvido pelo A Borda, ele se diz honrado por ter sido convocado a participar e revela que a manifestação é fruto da luta pelas liberdades de ir e vir da comunidade LGBTQIA+. Daí o simbolismo em ter aquelas cores em um dos pontos mais movimentados da ‘pequena Londres’. Ele se diz satisfeito com os impactos sociais da obra: A arte toca as pessoas, reencanta o mundo e, naquele caso, surgiu para despertar uma reflexão sobre humanidade, cidadania e sobre a luta das minorias bem no 17 de maio, dia da luta contra a LGBTfobia. Tenho certeza de que todos que passaram pela intervenção se transformaram em seres humanos melhores, mais sensíveis”.
Quando o Portal Bonde, braço virtual do grupo Folha de Londrina, manchetou a notícia “Bandeira do orgulho trans é pintada no centro de Londrina em intervenção artística” em uma publicação com mais de 1,000 curtidas no Facebook, surgiram apoiadores e opositores. Um usuário escreveu: “Quero uma faixa do orgulho hetero também, afinal somos a maioria e não podemos ser esquecidos, uma linha azul e a outra rosa, vai ficar lindo.”. “Esses caras têm que pintar as casas, as calçadas deles …espaço público NÃO e espaço…pra essas pinturas…ninguém é OBRIGADO conviver COM essas grafitagem…”, expressou um segundo.
É evidente que, dentre as muitas interações, internautas parabenizaram o ato. E as críticas não foram algo inesperado para os envolvidos, como demonstra Caio Souza, que prefere se ater aos aspectos positivos do episódio: “Já esperávamos por reações negativas e já sabíamos que a arte não iria ficar ali por muito tempo, mas, não ficamos tristes, pois, a nossa mensagem foi dada.
*Entretons é um grupo de pesquisa e extensão de gênero, sexualidade, teoria queer, feminismos, decolonialidades, na perspectiva das interseccionalidades de etnia, raça, classe social, etarismo, entre outras. Formado por pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e outres colaboradores de diferentes territórios de pesquisa e extensão, o grupo objetiva produções e ações implicadas com a realidades sociais diversas e seus movimentos.
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