Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
[…]
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
(História Para Ninar Gente Grande, 2019)
O intuito desta carta não visa ganhar destaque nas redes sociais ou ser um ataque direto à edição do Festival Internacional de Londrina 2022, menos ainda uma nota de repúdio. Sabemos que o momento atual é crítico para o cenário da cultura no Brasil. Em vista disso, a carta também não compactua com retóricas conservadoras da extrema-direita brasileira, especialmente os ataques aos setores culturais. Deixemos claro que esse texto, nada tem referência também à atuação impecável do ator. Essa carta objetiva levar uma única pergunta aos organizadores do festival: qual o motivo da escolha do espetáculo de abertura da edição de retomada do FILO?
Após os dois anos de pandemia, que causou e continua causando a morte de aos menos 670 mil pessoas só no Brasil, em decorrência do projeto de extermínio e política de morte promovida por Jair Messias Bolsonaro, a peça apresenta o ponto de vista do colonizador mesmo sabendo que as populações continuam sofrendo com a repressão colonial e imperial até os segundos em que este texto é redigido. Então questionamos novamente, qual o motivo da escolha do espetáculo de abertura da edição de retomada do FILO?
Um festival de teatro que se pretende crítico iniciar a cerimônia de abertura sem mencionar a tragédia do cenário político, econômico, social e cultural do país nós até entendemos. Afinal, existem grupos que preferem manter certa “neutralidade”. Contudo, apresentar o enredo da peça, sem uma contextualização mínima da nossa conjuntura, no dia em que foi revelado o assassinato cruel seguido de esquartejamento e incineramento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Philipps na Amazônia brasileira, justamente por defenderem a floresta, seus povos e territórios, não nos parece ter uma única justicativa plausível.
Não é mais possível tolerar a continuidade da narrativa colonial. Narrativa endossada pelas inúmeras gargalhadas do público quanto aos discursos racistas e sexistas do enredo do texto. Risadas perante encenações que relativizavam o estupro sofrido por mulheres indígenas. É ilusão acreditar que a branquitude dará risadas de si própria, assim, não eram gargalhadas ao colonizador, mas gargalhadas perversas frente a violência perpetrada aos massacrados. E isso, para os massacrados, é dilacerante. É violento. Diante disso, quando permitimos que gargalhadas tão altas sejam proferidas da forma como foram, sem qualquer intervenção, escolhemos a narrativa política que queremos contar. E no caso, a narrativa do colonizador foi escolhida, mais uma vez. E se a proposta era trazer uma outra perspectiva, “uma outra versão da história” a partir de uma “rude ironia”, ela não foi vista. E caso a sensibilidade da causa indígena não seja uma questão extremamente relevante a ser revisada, poderíamos ainda observar o lugar em que as próprias mulheres foram localizadas na história do tal do “Zé-ninguém”. Desde a narrativa sobre a dita louca bruxa da inquisição até o discurso sobre Maria Madalena.
Apesar de sabermos situar na história o texto original escrito por Dario Fo, um dramaturgo e escritor anarquista e socialista italiano, transpô-lo para o contexto brasileiro de 2022 com uma plateia que, sabemos, em muitos casos, acessa o que concebem como arte apenas durante festivais como o FILO, é extremamente perigoso. Perigoso pois muita gente saiu do Teatro Ouro Verde sem nenhuma afetação ou problematização sobre a colonialidade, ou, achando que todos os grupos indígenas das Américas praticavam ou praticam canibalismo, algo que não é verdade. Inclusive sugerimos a leitura de A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá (1951), do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes, para que fique claro as múltiplas noções que o canibalismo possui. E por isso questionamos novamente, qual o motivo da escolha do espetáculo de abertura da edição de retomada do FILO?
Nossas mais humildes perguntas são sinceras, pois tornou-se inviável para nós continuarmos presentes no teatro ouvindo as pessoas gargalharem diante de falas que simulavam a invasão da América e suas práticas de crueldade e extermínio. Esse incômodo nos atravessa e nos preocupa pois além de espectadoras, éramos ali seis pesquisadoras de tais temas no âmbito das ciências sociais e psicologia. E mesmo sabendo que a arte não tem e não deve ter finalidade, sabemos que ela é, sobretudo, política.
O “pacto de cumplicidade com a plateia” realmente foi selado, mas, neste caso, a plateia precisa ser localizada como grupo social racializado, provocando, desse modo, a ebulição do pacto da branquitude e sua perversidade. Aos olhos de Maria Silva Bento, essa espécie de pacto narcísico da branquitude, diz respeito ao acordo entre os brancos de não se reconhecerem como parte absolutamente essencial na permanência das desigualdades raciais do país. Mesmo – e inclusive – entre os grupos progressistas e de combate às desigualdades. Existe ainda, em sua perspectiva, um silêncio que os protege das avaliações e análises. No caso, ao permitir que essa peça se transmita sem nenhuma ressalva ou revisão contextual, o que ocorre na prática, ao nosso ver, é a assinatura deste pacto, expresso em risadas. Resta retornarmos, portanto, a pergunta inicial: qual o motivo da escolha do espetáculo de abertura da edição de retomada do FILO?
Atenciosamente,
Ana Beatriz Boscariol – Mestranda em Sociologia pela Universidade Estadual de Londrina; Debora Corsino – Psicóloga clínica e Mestranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina;
Jaqueline Vieira – Mestranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ;
Laura Grosso – Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos;
Rafaella Vaz – Graduanda em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina;
Vivian Karina da Silva – Psicóloga clínica e pós-graduanda em Antropologia pela Universidade Estadual de Londrina.
Londrina, 16 de junho de 2022.
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