O estupro da dignidade

Nos últimos dias acompanhamos dois casos de gravidezes resultantes de estupro ganharem destaque nas redes sociais e na mídia tradicional, ambos os casos são de grave revitimização das vítimas, uma menina de 11 anos de idade e uma jovem de 21.

Ambas com gravidezes decorrentes de estupros, que encontraram no sistema, que deveria acolher, proteger e tentar amenizar o trauma, mais humilhações, violência e tortura.

A primeira, uma criança que foi engravidada aos 10 anos de idade, foi brutalmente retirada do convívio familiar quando a mãe tentou acessar seu direito legal de interromper a gestação, em hospital credenciado. Juíza e Promotora da Vara da Infância e Juventude de Tijucas-SC obrigaram a criança a permanecer com o feto, sendo mantida em abrigo, pois queriam fazer feliz um casal adotante, mesmo que às custas da vida e dignidade de uma criança..

Argumentam com a criança desacompanhada que ela poderia aguentar “mais um pouquinho”, para a criança poder ter chance de sobreviver. Sem qualquer dado científico, ou evidência clínica, estabeleceram que um feto de 26/27 semanas de gestação teria chance de sobrevida, ignorando as possíveis sequelas, ignorando qualquer dado que não fosse a própria imaginação e convicção pessoal.

Ambas, mulheres brancas e de classe média alta, submeteram uma menina e uma mãe à tortura insititucional, separando-as, infringindo grave sofrimento psicológico às duas e sofrimento físico à menina, que foi coagida a manter a gestação até alcançar 29 semanas. A criança só conseguiu acessar o direito garantido na Lei Penal na última quarta-feira (22/06), após a enorme repercussão do caso.

As duas mulheres olharam para o corpo de uma criança parda, de classe social claramente menos favorecida que a delas e entenderam que ela poderia gerar aquele bebê para que um casal pudesse ser feliz. Entenderam que uma mãe preta poderia autorizar que o corpo pouco desenvolvido de sua filha fosse utilizado como incubadora para satisfazer uma mulher adulta que não pôde gerar um filho – não se iludam, ela não estava pensando em casais LGBT ou pais solo, quando dizia à mãe da criança que o sofrimento que estavam passando seria a alegria de um casal; pensava na tradicional família branca, de classe média, que espera por um recém nascido para chamar de seu.

As duas, juíza e promotora, agiram como senhoras de escravos que utilizam o corpo de pessoas pretas a seu bel prazer. Praticaram tortura física e psicológica e revitimizaram a vítima, o que é crime de Violência Institucional, prevista no art. 15-A da Lei de Abuso de Autoridade. Mesmo assim, a primeira foi promovida.

No segundo caso, a atriz foi engravidada no início da idade adulta e decidiu, por conta própria, fazer aquilo que as personagens da história anterior tentaram obrigar a criança a fazer. Levou a gestação a termo, pariu e entregou o bebê legalmente para adoção, acreditando que sua vida íntima e seu direito de entregar o fruto da violência sofrida seriam respeitados por quem tem o dever legal de sigilo.

Mais uma vez, uma mulher ignorou, além do seu dever de manter sigilo, a dignidade humana da jovem atriz e, não só insinuou que a história poderia vazar para a imprensa, como ela própria quebrou o sigilo profissional e legal, expôs a história para o colunista de fofoca mais mal relacionado do país.

A anestesia da cesariana a qual foi submetida sequer havia passado e a atriz já era obrigada a lidar com sua vida íntima sendo exposta por uma mulher que não deveria ser enfermeira.

Com isso, outra mulher, uma pré-candidata, achou por bem julgar a escolha da atriz e condenar o exercício legítimo do direito de entregar o bebê para adoção. Achou por bem condená-la por fazer exatamente aquilo que clamava para que a criança fizesse.

Já foi dito inúmeras vezes que essas histórias não dizem respeito às vidas dos fetos, mas sim ao controle dos corpos femininos e seus úteros. O que querem são mulheres que sejam objetos de satisfação dos homens e do patriarcado, além de incubadoras de novos operários para a exploração do capital.

Outra coisa que pouco se falou até agora é algo que chamou atenção em ambas as histórias: as algozes daquelas mulheres violentadas são, também, mulheres. A maioria, mulheres que têm o dever profissional de cuidado e garantia dos direitos das vítimas que protagonizam os fatos narrados. Mulheres que estão à serviço do patriarcado, do conservadorismo, que têm cargos e posições importantes, que eventualmente são usadas como exemplos de acesso feminino aos espaços de poder, mas que estão apenas reproduzindo e perpetuando a opressão e a violência de gênero.

Mulheres que sabem de seu papel na sociedade e escolhem favorecer o outro lado, escolhem se juntar aos nossos algozes.

Aprendemos com essas histórias que nem todas as mulheres vão andar juntas, vão lutar a mesma luta, vão tentar proteger umas às outras. Relembramos que mulheres nunca estão seguras, em lugar algum, devem estar sempre vigilantes. Percebemos que, infelizmente, muito ainda precisa ser caminhado e mostrado para que meninas e mulheres não sejam torturadas repetidas vezes sempre que uma violência lhes for imposta.

A luta é contínua e deve ser cada vez mais intensificada. Nem toda mulher é sua companheira nessa luta, nem tudo que reluz é ouro.

*Paula Vicente e Rafael Colli são advogados especializados em causas de Direitos Humanos, minorias políticas e Direito Penal em Londrina

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