Ano passado escrevi para a minha coluna aqui na Rede Lume sobre os perigos de ser mulher. Agora, menos de um ano depois, constato com preocupação e profunda tristeza que os perigos só aumentam.
Nos últimos dias vimos criança estuprada sendo impedida de abortar. Vimos uma jovem atriz ter exposta a sua intimidade e ser julgada por ter entregue uma criança – fruto de estupro – para adoção legal. E vimos a Suprema Corte dos EUA suspendendo a decisão que garantia direito constitucional federal ao aborto.
Três casos que mostram como é urgente que repensemos esse modelo de sociedade que violenta, julga, subjuga e controla os corpos femininos. A passos largos nós, mulheres, estamos perdendo direitos e é inevitável que um misto de incredulidade, cansaço e impotência tome conta de muitas de nós.
Ser mulher em uma cultura patriarcal, machista e sexista é muito perigoso e cansa, cansa muito. São opressões que não nos dão tempo ou condições de baixar a guarda porque em um instante, lá se vão nossos avanços. A luta das mulheres por equidade de gênero tem incomodado as velhas estruturas que se articulam para a manutenção de seu poder.
Simone de Beauvoir, lá no século XX, sabiamente já nos alertava para não nos esquecermos de que nossas conquistas não são permanentes. “(…) basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”, orientava a filósofa.
E os homens nessa história?
Homens desfrutam de privilégios disponíveis a eles única e exclusivamente porque as regras sociais, econômicas, políticas, etc. são feitas para beneficiá-los.
Se você é homem vou lhe informar o óbvio: você tem a ver com os casos elencados no início deste texto. Fingir que o problema não tem nada a ver com você é um ultraje. E até posso imaginar você homem dizendo que não estuprou ninguém, mas aposto que conhece um amigo, um colega de trabalho ou um familiar que já passou dos limites com uma mulher e aí te pergunto: O que você fez na ocasião? Fingiu não ver? Não quis se intrometer em assunto alheio? Pois digo, o assunto não é alheio. O assunto é de todos nós.
Seja por brotheragem, camaradagem, ou, seja lá qual for a desculpa, ignorar esse tipo de atitude de outro homem te faz cúmplice da situação aviltante que nós mulheres estamos vivendo.
Dados do 14º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que a cada 10 minutos uma mulher é estuprada no Brasil e sabemos que, na realidade, o número é muito maior do que os dados oficiais, posto que a violência sexual é um crime tão devastador que muitas vítimas não denunciam, por trauma, por medo, por vergonha, por culpa…
Esses dados chocantes são resultado de uma cultura patriarcal que privilegia, acoberta e isenta homens de seus crimes e coloca na vítima a culpa pela violência sofrida.
Enquanto os homens não repensarem sua própria forma de performar masculinidade, nós mulheres continuaremos a viver nesse cenário de violência e medo.
E quanto às mulheres?
Se você é mulher, queira você ou não, sua vida, sua integridade e sua segurança estão em risco por esse modelo que exerce controle e poder sobre nós.
Machismo, sexismo, misoginia…são opressões que fazem com que todas nós vivamos sob o medo de sermos atacadas, agredidas, violentadas. Fingir que o problema não existe não vai resolvê-lo.
A decisão individual de cada mulher de fazer ou não um aborto não é a questão aqui. Se você não concorda ou não acha certo fazer um aborto, a resposta é bem simples: não faça. Mas não impeça o direito legal de outra mulher de ter autonomia sobre seu próprio corpo para decidir como ela vai lidar com uma gravidez indesejada e, não raras vezes, advinda de um estupro. A legalização do aborto é uma questão de saúde coletiva, de justiça social e de autonomia reprodutiva.
Para minhas irmãs de luta, meu acolhimento. Sem dúvida os golpes das últimas semanas foram duríssimos, mas seguimos resistido e lutando não só por nossa própria humanidade, mas pela de todas nós.
Mantenhamo-nos firmes e seguras. Não estamos sozinhas e somos inteligentes o bastante para encontrarmos novas maneiras de ser e existir nessa sociedade programada para nos odiar.
Fontes: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Pag. 11-12. E Simone de Beauvoir no livro O Segundo Sexo, 1949.
* Ana Maria Alcantara é mulher preta, mãe, jornalista e feminista negra. Ligada no rolê de skincare nas horas vagas
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