Por Beatriz Herkenhoff*

“Há sempre algo que falta. Guarde isso sem dor, embora em segredo doa” (Caio Fernandes Abreu).

Não damos valor à audição, até que nasce uma criança amada sem a capacidade de ouvir ou nos deparamos com a realidade de pessoas queridas que perdem esse sentido. Quando meu avô estava próximo dos 80 anos, foi perdendo a audição. Ele que era tão alegre, comunicativo, amava uma boa prosa! Com o avanço da surdez foi se isolando e ficando triste. Usou aparelhos, mas, não se adaptou.

Quando minha mãe Helida, com 87 anos, começou a ouvir menos, decidiu usar aparelho. Procurou Julia Jeronymo, da Audibe,l que realizou um lindo trabalho de adaptação. Sucesso absoluto!

Fiz audiometria com Julia Jeronymo e mesmo o resultado apontando perda leve, já havia indicação de uso de aparelho. Não pensei duas vezes. Também tive uma excelente adaptação.

Com o objetivo de ampliar meus conhecimentos e escrever essa crônica, busquei vários sites na internet direcionados para a comunidade de surdos, conversei também com: fonoaudiólogas; familiares que têm filhos surdos; um jovem que se comunica com Libras e sua namorada ouvinte.

Julia Jeronymo atende pacientes que sofreram perdas auditivas em diferentes graus. Na maioria dos casos, a pessoa escuta, mas, tem dificuldade de compreensão. Por isso vai se isolando, para de participar das conversas familiares, não quer mais assistir o programa de televisão favorito. Ela afirma que “é nítida a melhoria da qualidade de vida quando decidem usar aparelho. Aumenta a sua autoestima, autonomia e confiança”.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou o relatório mundial sobre a audição no dia 13 de maio de 2021. Constataram que atualmente existe um bilhão e 506 milhões de pessoas no mundo com algum grau de perda auditiva, a maioria com um grau mais leve.

O mais grave é que um bilhão de jovens no mundo estão correndo o risco de perder parte da audição porque ouvem, diariamente, música a uma altura de 100 decibéis. Nesse volume, as células morrem e não se regeneram.

Dentro da comunidade surda encontramos surdos que se comunicam somente com libras; surdos oralizados e que usam libras (surdos bilingues); surdos que realizam leitura da fala e também tem surdos que ouvem, através do implante coclear, entre outros recursos.

Entrei em contato com o irmão de um grande amigo que tem dois filhos surdos. Quiquito (José Quiquita) afirma que não foi fácil enfrentar os desafios com seus filhos surdos. “Amanda foi diagnosticada com Displasia de Mondine (má formação do ouvido no período da gestação). Quando soubemos que nasceu surda, ficamos apavorados. Buscamos todos os recursos no Rio e em São Paulo. Ela usou aparelhos e não adiantou nada, fez implante Coclear.”

“Nasceu o segundo filho Davi. Era ouvinte, mas teve hepatite e perdeu a audição. Ele sofreu bulling na escola e na rua onde morávamos. Muita dor ocasionada pela rejeição.” (Quiquito)

“Um médico agravou mais ainda nossa dor ao falar ‘que não deveríamos deixar nosso filho casar para não aumentar a comunidade de surdos’. Eu quase dei um tapa na cara dele, mas, um amigo impediu.”

Quiquito afirma: “Aprendemos a conviver com a surdez. Meus filhos frequentaram escola com educação especial e escola regular. Aprenderam a leitura da fala, fizeram curso superior, casaram e têm filhos.”

“Davi é pedagogo e dá aula de libras. Trabalha na Chocolates Garoto há 25 anos. Sua esposa é surda e eles têm uma filha ouvinte. Amanda fez pedagogia, trabalha numa empresa de produtos químicos que realiza projetos com escolas públicas. O marido de Amanda é surdo e eles têm duas filhas ouvintes.”

Fiquei emocionada com o relato de Quiquito. Fui permitindo que minha alma fosse tocada por essa realidade, muitas vezes, tão distante de nós. Descobri duas lindas mulheres nas redes sociais: #PaulaPfeifer que fez implante coclear e escreve crônicas abordando o tema #surdosqueouvem. E @maluparis, jovem que faz lives sobre a realidade dos surdos. Sua estratégia de comunicação é o humor, por isso, consegue atingir um público jovem.

Paula afirma que Malu é, para muitos surdos jovens, a amiga que ela (Paula) não teve na escola porque era a única surda e não tinha com quem falar.

Aprendi que, muitas vezes, o isolamento vivido pelos surdos se deve à sociedade que fica indiferente às suas demandas e necessidades. O mundo de ouvintes, incluindo familiares, educadores, comunicadores, não se esforça para aprender libras e para ampliar os canais de comunicação com os surdos.

Com muita frequência ocorre o capacitismo. Atitudes que discriminam pessoas com alguma deficiência. Gestos e palavras que subestimam suas capacidades e aptidões. Isso ocorre porque a sociedade constrói um modelo de perfeição e “normalidade” e a partir daí considera inferior àqueles que não correspondem a essa idealização.

O termo capacitismo vem ganhando espaço nos movimentos de luta e inclusão social das pessoas com deficiência. A luta contra o capacitismo e o assistencialismo está se ampliando.

Alexandre Ohkawa , um dos embaixadores do Movimento Web para Todos, destaca-se por sua incansável busca de soluções para aumentar a inclusão dos surdos, tanto no mundo físico quanto no virtual.

Apoiador e militante de diversas iniciativas, Alexandre afirma que a acessibilidade digital foi intensificada nos últimos cinco anos. Mas, precisa melhorar e evoluir. “Precisamos entender que, para os surdos, a acessibilidade compreende informações em Libras e também o texto em português. Uma opção não exclui a outra. Na prática, isso não está ocorrendo de forma efetiva. Faltam intérpretes de Libras, legendas e audiodescrição nos atendimentos médicos, portais de notícias, sistema bancário, redes sociais, programas de TV, nos chats dos planos de saúde e nos hospitais. As janelas de Libras são minúsculas. Você mal as enxerga! Há muito desencontro de informações, além da falta de planejamento e de conscientização” (Alexandre Ohkawa).

O amor é a mola motora para mudanças na garantia dos direitos e inclusão social dos surdos. A partir dessas interações, meu olhar se ampliou, por isso, quero fechar essa crônica contando uma linda história de amor entre Aline Mattar Ferraço e Lucas Gabriel Correia.

Aline é formada em artes plásticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Trabalhou como professora de artes e nesse período teve um aluno surdo. Na ocasião ficou incomodada pela dificuldade de comunicação com o mesmo, pelo fato dela não saber Libras. Quando surgiu a oportunidade entrou num curso de tradução e interpretação de Libras e, posteriormente foi cursar fonoaudiologia. Foi monitora na disciplina de libras no Centro de Ciências e Saúde (CCS) na Ufes.

Ela conta que em 2021 nasceu o Projeto de Extensão (na disciplina de Libras) com o objetivo de elaborar materiais informativos acerca dos aspectos preventivos em saúde com acessibilidade em Libras.

Aline continua: “Por algum motivo o perfil de Lucas me chamou atenção e entrei. Vi que ele era surdo e professor de libras, e achei que seria uma ótima opção para o projeto. Fiz o convite e ele aceitou. Certo dia surgiu uma dúvida na aula de Libras e pensei em perguntar ao Lucas. Não nos falávamos desde o dia do convite.”

“Depois desse dia começamos a conversar com frequência e não paramos mais. Na época ele tinha namorada e éramos só amigos. Porém, o interesse foi aumentando. Ele e a namorada decidiram terminar e quando ele me deu a notícia eu mal podia acreditar. Eu morava em Guarapari e ele em São Mateus, marcamos de nos encontrar pessoalmente em Vitória. E quando nos vimos pela primeira vez foi algo surreal, quase como mágica, uma química impressionante. Nesse mesmo dia conheci a mãe dele e começamos a namorar. Após dois meses de namoro à distância, surgiu uma oportunidade de emprego na região onde ele morava e mudei para lá. O namoro deu certo.”

Lucas enviou-me um vídeo em que conta sua história. Ele diz: “Minha língua é a Libras, depois o português. Nasci semimorto com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Por volta dos 4 anos, meu avô suspeitou que eu era surdo. Comecei a usar aparelho, fazer fono e aprender a oralizar. Quando mudei para Vitória, encontrei outros surdos que falavam libras e com 9 anos, comecei a aprender o alfabeto digital (datilologia) e também sinais. Até os 11 anos eu não sabia porque usava aparelho, continuava a pensar que tinha problemas na boca. Foi quando minha mãe explicou que o meu problema era auditivo. Fiquei triste, tentava me comunicar e não conseguia porque tinham poucos surdos nas escolas. Quando mudei para São Mateus comecei a jogar futebol com outros surdos e decidi não ficar mais triste por ser surdo. Descobri que posso ser feliz com libras.“

Lucas relata: “só no segundo ano do ensino médio que passei a ter intérprete de libras na minha escola. Até então era muito difícil entender o professor, perdi muita informação. A lei que obrigava a ter interprete nas escolas não tinha sido aprovada ainda. Fiz faculdade de pedagogia e comecei a trabalhar como professor ensinando Libras para alunos surdos em várias escolas”.

“Tive algumas namoradas, mas, quando Aline fez contato, comecei a observa-la, encantei-me por seus olhos bonitos e resolvi segui-la nas redes sociais. Aceitei o convite para participar do projeto de libras na área da saúde. Gostei dela, saímos para jantar, conversar e nos conhecer melhor. Apresentei-a a minha mãe e pedi-a em namoro. Quando a beijei senti que era o amor da minha vida”.

Agradeço a Aline Mattar Ferraço que dialogou lindamente com essa crônica, apontando meus equívocos nas terminologias. Com muita delicadeza, ajudou-me a perceber o capacitismo que há em mim.

E você? Que questionamentos ficam? Que comprometimentos? Como podemos contribuir com a inclusão social de todos que são discriminados? Como podemos quebrar o silêncio e a indiferença da sociedade?

Indico três filmes sobre essa temática: “A família Belier” (2014); “O som do silêncio” (2021) e “No ritmo do coração” (2021). “No ritmo do coração” é um remake do filme francês “A família Belier”. A diferença é que a segunda versão é estrelada por atores surdos. Troy Kotsur, que é surdo, ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante. A diretora Sian Heder é ouvinte, mas, afirma que para contar essa história cercou-se de colaboradores surdos por trás e pela frente das câmeras.

*Beatriz Herkenhoff é professora aposentada da UFES. Assistente Social. Doutora pela PUC – SP (Pontifícia Universidade Católica). Autora do livro “Por um triz: crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2022)

2 respostas para “O silêncio da sociedade”

  1. Avatar de Alcir Santos de Oliveira
    Alcir Santos de Oliveira

    Sem dúvida uma crônica que revela sensibilidade da autora, atenta aos .unidos que nos cercam e,grande parte das vezes, invisíveis aos olhos desatentos e apressados. Aplausos especiais para as fotos. É um artista consumado!

    1. Obrigada pela visita, Alcir.

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