Após roda de conversa com mulheres múltiplas, convido todas a pensarem e lutarem contra as violências que nos cerceam e matam
Por Cecília França*
Foto em destaque: Daniela Martinez/Unsplash
Quando eu tinha 16 anos um rapaz me beijou à força durante um show em uma exposição agropecuária. Recentemente, em um grupo de whatsapp de colegas, um homem fez uma pergunta, eu respondi, e ele solicitou a resposta de outro homem. Aquele deu resposta idêntica à minha e foi ovacionado e agradecido, enquanto meu retorno foi ignorado.
São dois casos de violência talvez pequenas – se é que se pode hierarquizar violências – que me atravessaram e deixaram algumas marcas. Durante anos não consegui esquecer a sensação do beijo forçado, mesmo não tendo consciência de que havia sofrido uma violência. Nem sei dizer se isso influenciou de alguma forma em meus relacionamentos; talvez não, talvez sim.
Quanto à invalidação da minha voz dentro de um grupo misto, eu, já madura e consciente do meu lugar na sociedade, fiquei muito p* da vida e teria exposto o ocorrido se não estivesse tão atribulada com afazeres. Não quis comprar a briga no momento, mas aquela violência simbólica não passou batido e me fez pensar em quantas vezes devo ter passado por isso na vida sem me dar conta.
Costumo dizer que sou uma feminista em construção. Venho de um lar conservador e meu contato com conceitos como patriarcado e misoginia são, por assim dizer, recentes. Estou rememorando essas “pequenas” agressões após uma roda de conversa sobre violência contra as mulheres promovida pelo Feirão da Resistência e da Reforma Agrária neste sábado, 9 de julho, no Canto do MARL (Movimento dos Artistas de Rua de Londrina), na qual representei Néias-Observatório de Feminicídios Londrina.
Dividi a conversa com Amanda Gaion, da Rede Feminista de Saúde, e outras mulheres que fizeram questão de estar presentes. Éramos poucas, falando sobre um problema que é de todes, enquanto os presentes, homens e mulheres, curtiam música no espaço ao lado, ignorando ou desconhecendo o motivo da nossa roda de conversa. Mais uma vez, falávamos entre nós mesmas.
Ainda assim, o momento foi extremamente rico. Amanda tem trajetória de uma década de militância e um amplo conhecimento, inclusive teórico, sobre o tema. Trouxe-nos dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2021, cujos números mostram leve queda no número de feminicídios no ano passado no país, mas aumento das outras inúmeras formas de violência, com destaque para as cometidas contra crianças e adolescentes meninas.
Uma das participantes compartilhou conosco sua experiência de violência doméstica, moral, física e patrimonial e requisitou voz para as mulheres da periferia. Outra trouxe suas memórias de uma família sem preconceitos na década de 1960 e lamentou que estejamos avançando não a passos lentos, mas “engatinhando” no combate à violência contra as mulheres.
Uma mulher trans relatou as dores de ver companheiras retalhadas, agredidas e mortas no caminho sem que lhe tenham sido reconhecidas sequer a identidade de gênero. Outra, aposentada do sistema de saúde, rememorou tantos casos de mulheres trans e cis agredidas que presenciou e disse: “Nem sei de que políticas públicas precisamos”.
Coube a mim expor um pouco sobre a lei do feminicídio e o que nós, do Observatório, defendemos como visão mais ampla do entendimento sobre este crime brutal. Uma coisa me parece clara: leis podem cercear comportamentos, mas não mudam a cultura. E o machismo que mata é cultural, estrutural. Para alcançar mudanças estruturais precisamos contar com coletivos como Néias, Frente Feminista de Londrina, Rede Feminista de Saúde, Frente Trans, e precisamos, urgentemente, requisitar políticas públicas voltadas para a educação sobre gênero, palavra que virou palavrão no Brasil, mas que rege nossas construções sociais.
Ontem éramos cinco ou seis falando sobre violência(s) contra todas as mulheres. Pode parecer pouco, mas ocupamos um espaço e isso nunca será irrelevante. Agora, peço que você, mulher, pense nas violências que já sofreu – infelizmente creio que todas terão alguma história para lembrar – e as convido a transformar a revolta em luta por uma sociedade igualitária, que nos ouça, reconheça nossas forças e fraquezas e entenda nossas multiplicidades; que reconheça e acolha quais dentre nós precise de mais cuidados por estarem na base da pirâmide social. Uma sociedade onde ser mulher deixe de ser um risco.
*Jornalista, editora da Rede Lume, pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global, integrante do coletivo Néias-Observatório de Feminicídios Londrina.
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