Beatriz Herkenhoff*
Dando continuidade à crônica anterior, quero refletir sobre o poder do amor em espaços onde predomina a dor e o abandono.
A força do amor que toca silenciosamente, que humaniza e transforma.
Amor que possibilita uma doação plena, que ultrapassa obstáculos, que transforma o caos e faz nascer a esperança e a confiança.
Trabalhar com o social é algo desafiante e muitas vezes suga a energia do profissional, que se sente impotente diante da miséria humana, da institucionalização da loucura, da indiferença e do desamor.
Fui convidada a assessorar educadoras de um abrigo que acolhia crianças de zero a 12 anos. Crianças que foram afastadas dos pais provisória ou definitivamente.
Inúmeras são as razões que levam um juiz a decidir por esse afastamento: abuso físico e psíquico, dependência química, tráfico de drogas, situação de rua, entre outros.
Ao inserir-me nesse contexto, entrei em contato com um abandono que fere a alma da criança. Que clama por amor, cuidado e proteção.
Mas, como dar amor se não o encontro em mim?
Na primeira visita ao abrigo observei que o ambiente era frio, as paredes brancas, sem enfeites ou pinturas que gerassem uma identidade com o universo infantil.
Por maior que fosse a competência e o compromisso ético das educadoras, havia uma barreira que impedia que a luz entrasse e fluísse.
O abrigo parecia um presídio, possuía grades para conter as fugas das adolescentes. As revoltas eram permanentes. Elas quebravam portas, fugiam pelo telhado, agrediam as educadoras.
Seus corpos falavam, gritavam, pediam socorro, expressavam o que as palavras não conseguiam definir.
Muitas educadoras escolheram trabalhar com o acolhimento porque sentiam um chamado para estar nesse espaço. Queriam fazer a diferença, mas o amor se esvaia diante do caos, era enfraquecido diante da raiva das crianças, por não entenderem por que os pais não vinham buscá-las.
Algumas já estavam no abrigo há anos e, provavelmente, nunca seriam adotadas. Após completarem 12 anos, seriam transferidas para outro abrigo.
Como trabalhar esse vazio existencial imensurável? Como inundá-las com um amor que resgatasse a autoestima e o valor de suas vidas? Qual a contribuição das educadoras do abrigo para a construção de um projeto de vida para essas crianças e adolescentes?
Por mais que as educadoras se esforçassem, não havia diálogo, só brigas e agressões.
Quando falo de educadoras, incluo todas que trabalhavam no abrigo: assistentes sociais, pedagogas, profissionais que cuidavam das crianças, cozinheiras, faxineiras, motorista etc.
Sozinha eu não daria conta desse universo, por isso envolvi profissionais de diferentes áreas para realizar um curso comigo: assistentes sociais, psicólogas, pedagogas, entre outros.
Planejei um curso com o título: “Jogos cooperativos, tecendo vidas”.
Realizamos várias oficinas. Optamos por vivências corporais, com técnicas do Teatro do Oprimido, da arte terapia e de jogos lúdicos.
Construindo objetivos
Traçamos coletivamente alguns objetivos: compreender o que estava acontecendo naquele espaço, identificar os obstáculos para o bom funcionamento do grupo e construir estratégias coletivas para sua superação. Fortalecer o vínculo da equipe, o autoconhecimento, a autoestima e a construção da identidade grupal. Desenvolver a confiança, a cooperação, a comunicação e a motivação para criar um ambiente de pertencimento e inclusão para as crianças e adolescentes. Despertar para o autocuidado como forma de cuidar de outros. Construir um relacionamento igualitário entre as educadoras e as crianças e adolescentes.
A psicóloga trabalhou também situações de agressividade, medo, sexualidade infantil, ciúme, dificuldades nos relacionamentos, bem como a formação da corporeidade e seus reflexos na subjetividade da criança em agrupamento institucional.
Mudanças acontecendo
Um resultado lindo, envolvente, emocionante. Muito choro, encontros consigo mesmas, uma catarse grupal. O despertar das potencialidades, o resgate da esperança e da alegria de viver.
Ao final, as educadoras construíram um projeto político pedagógico que passou a orientar suas ações. Desenvolveram metodologias que possibilitaram a construção de regras para o funcionamento do grupo. Facilitando o diálogo e avaliações frequentes.
As educadoras puderam reproduzir essas experiências no trabalho com as crianças. Passaram a se amar mais, e por isso a colocar limites com assertividade.
Ao amar a si mesmas, puderam amar as crianças com mais liberdade e menos medo.
Os resultados foram impactantes. Houve uma mudança no ambiente de trabalho que se tornou mais humanizado.
Com a participação das crianças e adolescente, foi construído um cardápio para as refeições (até então, fonte de muitos confrontos). As mesmas participaram também da decisão sobre a pintura da casa, a escolha das cores das paredes e da decoração.
Irmãs que dormiam em quartos separados puderam dormir juntas, resgatando o vínculo familiar que estava enfraquecido.
Nessa dinâmica de melhorar as relações internas, foi identificado que as crianças saíam pouco de casa, em geral só para ir à escola. A equipe começou a organizar passeios em sítios (de amigos), piqueniques, atividades com arte terapia, teatro, música, dança. Frente ao limite financeiro da instituição, foram realizadas várias campanhas, entre elas, de doação de bicicletas, As crianças e adolescentes passaram a andar de bicicleta nas redondezas com o acompanhamento das educadoras. Conquistaram a liberdade para ir e vir.
Ao perceber a importância de registrar a história das crianças, as educadoras passaram a fotografar os passeios e festas realizadas no abrigo.
Com a contribuição de amigos, passamos a revelar as fotos e cada criança ganhou um álbum que levavam quando saíam do abrigo. Os quartos passaram a ser enfeitados com as fotos.
A história de cada uma passou a ser valorizada. Construíram a identidade com o local onde moravam. Não sentiam mais necessidade de fugir. Passaram a ter liberdade para expressar sentimentos e emoções.
Fortalecendo laços fora da instituição
As educadoras desenvolveram também um trabalho de apadrinhamento, possibilitando que as crianças passassem os feriados (Natal, Ano Novo, Carnaval, Páscoa, etc) com as famílias que assumiram um cuidado especial com as mesmas.
A inclusão em ambientes familiares calorosos, alegres e inclusivos preencheu muitos vazios e carências. As crianças sentiram-se amadas. As educadoras apoiadas e respaldadas em suas ações e gestos de amor.
A equipe estreitou os laços com a Vara da Infância, com o objetivo de aperfeiçoar e intensificar os processos de adoção. Muitas crianças foram adotadas pelos padrinhos e madrinhas.
Um trabalho que envolveu dedicação, persistência, resiliência, determinação, amor, compaixão, paciência e altruísmo.
O ambiente de aprisionamento desapareceu. Cores se espalharam e dissiparam o caos. Gestos transformaram e libertaram vidas. Barreiras foram rompidas.
Ao revisitar esse espaço anos depois, percebi que o trabalho realizado não sofreu retrocessos. Pelo contrário, profissionais que vieram depois deram continuidade a essa proposta com compromisso e responsabilidade.
O resultado foi consolidado. Os espaços de acolhimento foram organizados considerando essas conquistas e aprimorando cada vez mais um olhar humanizado.
Eu sempre afirmo que o amor não pode se limitar a quatro paredes. Por isso, convido cada um/uma a pensar como pode expandir sua capacidade de amar colocando-se a serviço.
Eu tive minha vida transformada a partir dessa experiência. Sou imensamente grata por ter partilhado meus conhecimentos, mas, principalmente, por ter aprendido mais do que ensinei.
* Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da Ufes. Com doutorado pela PUC-SP. Autora do livro: “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021).
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